Quando lemos um livro, vamos descobrindo, página a página, frase a frase, e desenho a desenho (no casos dos nossos livros) os pequenos elementos que se vão coalescendo até uma ideia final, quando o fechamos (se bem que ela possa ir ganhando qualificações e novos contornos ao longo da sua vida nas nossas memórias, releituras, erros de interpretação e rememoração, novas leituras e intertextualidades)… Uma das questões mais interessantes e complexas é a relação entre a ordem do que nos é contado e a ordem pela qual recriamos esse universo quando nos lembramos dele, depois da leitura. Imaginem ou recordem-se de todas aquelas histórias que leram, viram, escutaram, que iam seguindo uma ordem cronológica muito própria, uma desarrumação criativa, ou até mesmo uma impossibilidade temporal (as metalepses): quando a desejam recontar a outra pessoa, as mais das vezes apagamos essa estranheza e reconstruímos essa narrativa numa estrutura linear e suave (“é sobre um homem que se esquece do nome da mulher e depois…”, “esta história é sobre um homem morto que não sabe que está morto e…”). É, por exemplo, o problema clássico da narratologia entre o tempo da história e o tempo da narrativa, ou entre a fabula e o sjuzhet, ou outros pares desta natureza. O problema é que essa discrepância é, nesse recontar nosso posterior, apagada e nega profundamente muito do prazer sentido no próprio momento da leitura. Quer dizer, parte do prazer, senão o imo desse mesmo prazer, está no percurso tacteante que perseguimos ao longo da leitura, na sensação de perdidos no denso bosque, nas promessas goradas de entendimento da ficção.
Este pequeno livro, oblongo, tem duas partes, separáveis e identificáveis fisicamente. Uma a que daremos o nome de “ficção”. A outra a que chamaremos de “explicação”. A primeira é-nos narrada por um narrador, tal qual, a segunda, pelo autor. A primeira pauta-se pelos contornos da ficção, a segunda tenta apresentar elos à realidade. A parte da ficção revela-se ser uma adaptação de um texto de Stefana Serafina, “The Daughter of Time”. Pequeno melodrama entre um professor de artes visuais norte-americano a dar aulas na FBAUL e uma das suas alunas, que se apaixona por ele, aventuras e fuga para a Zambujeira. A parte “explicativa” revela-se como diário do autor (António Pedro Monteiro Ribeiro, assinando Topedro), em que se explora um momento fugaz de férias na Zambujeira, quando o autor se cruza com uma vizinhas de arrendamento, búlgaras (uma delas, Stefana Serafina), e estas lhe enviam mais tarde, como forma de agradecimento e resposta a um breve desentendimento, “um argumento para um filme inspirado na minha figura”. Apesar do autor terminar com uma nota auto-derisória (“vanitas vanitatum…”), o jogo de reflexos entre as pessoas envolvidas é por demais claro. Retornos e devoluções de vários actos criativos cruzados, da realidade para a ficção e de regresso à realidade (ou vice-versa, o que não é a mesma coisa). E são estas informações finais aquelas patinas que se estendem por todo o livro, por toda(s) a(s) narrativa(s), que nos impedem de as poder ler aqui, de as interpretar e partilhar com os demais leitores, ou promessas de leitor, sem amalgamar toda essa experiência. Isto é, não é possível devolver essa inocência que se vai desfazendo ao longo da leitura. De novo, repetimos o que já foi dito tantas vezes, a crítica nunca é de livros a ler, mas lidos - aquele é o erro com que as recensões jornalísticas se revestem, pois servem apenas de aperitivo, de publicidade secundária, de uma espécie de exercício de empatia e simpatia para com o autor e os leitores, ambos pólos absolutamente secundários no combate com a própria obra, já que a intenção dos primeiros e dos segundos em nada pode coarctar a leitura efectiva da obra. Essa inocência desaparece para sempre no acto crítico.
Apesar do autor ter algumas relações com círculos independentes da banda desenhada (via Gambuzine), esta é, parece-nos, a sua primeira incursão no objecto impresso (por sinal, uma óptima escolha no mercado do print-on-demand). E este, o livro, leva logo a uma leitura muito particular, íntima, que nenhum outro objecto poderá permitir da mesma maneira tão física.
A intimidade porém, faz-se auscultar de várias maneiras em O céu é meu é meu o mar. Cada página é ocupada por apenas uma imagem, sendo essa imagem, pelo menos aparentemente, um fac-simile de uma página de um bloco de desenho, possivelmente papel de aguarela, pelas texturas reveladas sob as passagens das cores diáfanas e sobrepostas, que mal se contêm no interior de linhas pretas delineadas a pincel, aparo ou caneta de tinta-da-China. (se bem que é possível que haja, aqui e ali, manipulação digital para introduzir um pormenor mais realista, um logotipo de um sobrescrito, uma fotografia). Há portanto uma passagem entre o diário gráfico - e toda a política, digamos assim, que o rege: a sua intimidade, a sua vontade em encerrar-se no mínimo tempo de partilha, talvez mesmo a invisibilidade absoluta, a despreocupação esteticizante ou estilística, a proximidade com o gesto do rápido apontamento, fugaz e desimportante - e o livro ofertado à leitura - nessa esfera, o desejo de partilha absoluta, a sua entrega e perda junto ao leitor, a sua queda no objecto público, a integração social numa tradição, num género, num estilo, etc. Um não é de forma alguma o equivalente do outro. Se fisicamente podem não aparentar quaisquer diferenças, podem até mesmo confundir-se no mesmo objecto, os seus contornos ontológicos, e portanto éticos e estéticos, não são irmanáveis. São distintos em quase todos os seus pontos. Essa transformação é já em si mesma de um interesse agudo.
A intimidade da trama narrativa também é reveladora. A história, para além dos seus vaivéns autorais ou partilhados entre os seus co-autores, ou autores espelhando-se uns aos outros de várias maneiras, é também ela mesma de um reflexo clássico, quase um cliché, entre professor e aluna, mestre e discípula, clássica transferência, variações de Pigmalião e Lolita, tudo a um só tempo. A história está centrada na primeira pessoa de Paul Ridges, professor de pintura na FBAUL, de 53 anos, procurando criar rotinas em Portugal, e Maria (como não?), a jovem estudante, eterna jovem, apaixonada, sem amanhãs e preocupações, embevecida com o professor, ou com uma ideia que tem dele, e da liberdade, ou de uma ideia de liberdade que alimenta à força de sonhos. Depois seguem-se os diálogos costumeiros, primeiros aqueles em que as pessoas se tacteiam umas às outras, à procura de recostos e reentrâncias que possam ser comuns, depois os primeiros embates directos em que as emoções surgem à flor da pele, depois o ardor do consumo, depois o lento choque da realidade, e o desfecho, não totalmente dito mas detectável, trágico.
Os diálogos entre um e outro revelam daquelas filosofias que têm tanto de inocente como de ingénuo, mas sobretudo têm de embevecido e de mergulhado no acto de viver sem mais. “A vida não acaba. Apenas muda. Como o amor, nunca acaba. Acreditas na eternidade, Paul?”, pergunta Maria. A voz de Paul, porém, é tanto reveladora do peso da existência como do cinismo que quem vive de olhos mais abertos, e talvez menos apaixonados. “Vou só regressar à minha vida”.
O autor do livro opta por utilizar, para a “voz” de Paul, letras maiúsculas, e para a de Maria, regras mais normalizadas. Essa flutuação é algo desequilibrada, tornando a presença de Paul, já de si central, focalizadora da acção, demasiado pesada em relação à da sua jovem amante. O facto de serem letras mecânicas sobrepostas aos desenhos, sem traços de manualidade, tornam a sua presença visível algo fria e desligada da matéria visual. Esta pauta-se pelas características já apontadas, da leveza e brevidade do desenho ou da aguarela à vista dos objectos e das paisagens próprias do diário gráfico (mas há pelo menos um caso em que num só plano de composição se sobrepõem duas sensações do protagonista: a sensação da realidade e as sensações do foro interior, os “turbilhões abissais”). A opção por as colocar no centro de uma mancha negra tanto nos obriga a focar na imagem, e menos na sua presença no objecto, como nos isolam nelas. Há uma oscilação entre imagens na horizontal e outras na vertical, mas tirando o conteúdo imagético, não é claro qual o modo que se pretende instaurar como esse movimento, que momentos se desejam marcar com essa diferenciação, já que não parece coincidir com a narrativa. Já o facto das imagens coincidirem quase sempre com uma perspectiva ocular da própria personagem (com uma ou duas excepções) ajudam talvez a sublinhar a construção subjectiva de toda a história, fazendo com que todos esses elementos, em discrepância ou desequilíbrio interno, se encaixem precisamente na falta de unidade - psicológica, de humor, de vivência - da experiência humana (serão opções as que estão disponibilizadas em The Daugther of Time? Caso o sejam, as do livro revelam uma escolha mais desviante mas por isso mais apropriada à proximidade da intimidade desejada). E há ainda a última imagem, da parte “ficcional”, que parece querer roubar-nos à esfera das personagens principais, mas surge como uma ponta solta.
Seguem-se então as folhas do diário do autor, apenas a linhas pretas e manchas cinzentas (aguadas?), mais caligráficas ainda, e autobiográficas, servindo de coda explicativa ou contextualizadora do acto de transformações sucessivas que acabáramos de ler. Sobre essa relação entre as duas partes, já falámos acima.
Uma breve troca de impressões com o autor levou a um entendimento que o interesse maior ou original estava no gesto que é permitido cobrir pela manutenção dos diários gráficos, cuja natureza não se presta propriamente para as narrativas, mas antes para uma acumulação de ideias desconjuntas, ou inconjuntos, como queria Pessoa, em que poderão, decerto, emergir elos temáticos, visuais, ou outros, mas a causalidade não é de forma alguma obrigatória. O emprego de uma trama narrativa oferecida permite essa associação, ainda que não seja possível chegarmos a uma ideia final - nem tal é desejável - sobre a precedência das imagens sobre o texto, ou quais as condições de produção das mesmas em relação à “adaptação”, etc. O mais importante é tomarmos o encontro de dois movimentos aparentemente contraditórios: o acto livre, despreocupado, quase votado ao silêncio e à invisibilidade do acto diário do desenho, e a programação e implicações do desejo ficcional/narrativo. No blog do autor, encontraremos outras breves narrativas, ou até mesmo adaptações de (des)troços de obras lidas, situações relâmpago, cujo fascínio é facilmente apreensível por quem partilhar das mesmas sensações. Micro-narrativas num registo ainda mais caligráfico, e sem o recurso a cores, reforçando a ideia do apontamento, da captura da vontade momentânea. O que é curioso é que se nota ainda também numa recorrência de alguns temas, talvez mais marcado o do “encontro entre a espiritualidade religiosa e outras formas de entender o universo”, como escrevemos ao autor, incluindo a ciência. Mas talvez seja mais do que isso, talvez sejam os interstícios em que essas áreas se encontram e se interseccionam e se friccionam, libertando uma nova matéria de pensamento… A veia autobiográfica, pelo menos da “2ª” parte de O céu é meu… é possivelmente um pequeno desvio, mas apenas o tempo ou novas experiências publicadas dirão qual o seu factor de permanência.
Nota final: um agradecimento ao autor, pela oferta do seu livro. Para mais informações ou obter uma cópia, ver o blog do autor. As nossas desculpas pela falta de qualidade das imagens, não imputáveis ao autor.
20 de outubro de 2011
O céu é meu é meu o mar. Topedro e Stefana (auto-edição)
Publicada por Pedro Moura à(s) 6:19 da tarde
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2 comentários:
uma meta-crítica seria um exercício interessante, mas talvez despropositado, e não me atreveria. só uma justificação da inclusão de páginas ao alto: podia ter tirado melhor partido dessa opção se tivesse conseguido dar-lhe uma pertinência narrativa, que de facto não tem, no entanto não é completamente gratuita, será redundante, a intenção era reforçar o carácter objectual, manipulável,do livro e a similitude com os diários gráficos; já um outro autor a quem mostrei uma maquete tinha duvidado da sua eficácia, reconheço que com alguma razão...
Boa tarde
O Museu da Presidência da República vai inaugurar amanhã dia 23 de Novembro, no Palácio da Cidadela de Cascais, a exposição “Jogo da Glória - o Século XX Malvisto pelo desenho de humor”, comissariada por João Paulo Cotrim. Trata-se de uma viagem pelo século XX português que retrata os principais acontecimentos políticos e sociais, públicos e privados que o marcaram, através do humor gráfico. Em paralelo a esta exposição, o Palácio da Cidadela de Cascais também vai poder ser visitado pelo público.
Caso pretendam receber informação adicional agradeço que me contactem através do mail ocasaleiro at presidencia.pt
Com os melhores cumprimentos
Óscar Casaleiro
Serviço de Comunicação do Museu da Presidência da República
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