Permitam-nos começar com uma impressão
totalmente superficial e que o mais certo é não ter grande
sustentação real. Estamos em crer que a recepção deste livro
poderá vir a ser dividida em quase dois pólos opostos e contrários.
Por um lado, a esmagadora maioria das pessoas que medeiam a recepção
e discussão da banda desenhada, de várias gerações, estará
demasiado familiarizada com muitas das peças capturadas nesta
antologia para serem por elas surpreendidas ou então julgarão de
imediato estar em falta algo (uma outra peça, um outro autor, uma
outra natureza de trabalhos, etc.). Se nos permitem, graças ao
desenvolvimento de trabalhos como o documentário VerBd, a
exposição Tinta nos Nervos e uma colaboração de uma mostra de trabalhos de Carlos Zíngaro, ganhámos um conhecimento de alguns
destes autores mais profundo do que a mera leitura da própria
revista Visão e outras publicações que aqui se juntam. Não
tendo sido aquela revista, publicada entre 1975 e 1976, algo que
lemos nessa mesma época (até pela idade, seria impossível), a
circulação do seu nome era já mítica quando nos tornámos
leitores mais intensos de banda desenhada, e era com facilidade que
se encontravam exemplares em segunda mão. Ou seja, a Visão,
em si mesma, era até certo ponto uma referência “viva” nas
discussões sobre história da banda desenhada portuguesa, ao
contrário de algumas outras revistas da mesma época, como a Jacaré
ou a Audácia, etc. (Mais)
28 de agosto de 2016
26 de agosto de 2016
After Nothing Comes/Little Angels. Aidan Koch (Koyama/MoMA PS1)
Tal qual como ocorre em qualquer outro
território artístico e criativo, ou até mesmo da actividade
humana, existe uma diversidade de gestos, intentos, alcances e
intensidades que deve ser compreendida por ela mesma, não se
pautando uma forma de cumprir um papel pelos princípios de outra.
Mesmo assim, não deixa de ser uma fonte de felicidade quando nos
deparamos com gestos que abandonam as preocupações usuais e
clássicas da banda desenhada, como a de “contar histórias” ou
até “mostrar relevância”, para lavrarem explorações da
própria matéria que constitui a banda desenhada, ou com ela atingem
contornos bem diversos dos usuais. De uma forma nem sempre clara,
decisiva, passível de continuidade, ou totalmente subsumível a
categorizações, e muitas vezes votadas ao desinteresse geral, até
sobretudo por aqueles que mais dedicação parecem demonstrar à
banda desenhada (nas suas prestações mais arregimentadas), são
aqueles trabalhos que merecem o apodo, torto, historicamente erróneo
e complicado, insuficiente, de “experimental”. (Mais)
23 de agosto de 2016
O beijo adolescente. Rafael Coutinho (Cachalote)
A adolescência é uma fase da vida dos
seres humanos (pelo menos no “primeiro” mundo “ocidental”)
caracterizada pela total turbulência. Não é mais a inocência da
infância, pautada por um qualquer grau de protecção, mas também
de maravilha, encantamento e potencialidade total do mundo, mas não
é ainda a segurança e acalmia que a vida adulta poderá
eventualmente permitir, com maior ou menor encantamento. É uma fase
em que o medo do futuro, que surge como um peso inexorável e uma
inconstante incerteza, vem traficar medos, ímpetos, vontades em
formação, conturbadas insatisfações, e ensejos contraditórios.
Mas é ao mesmo tempo um momento de potencialidade de desenvolvimento
incrível. “Energia em estado bruto”, como explica uma das
personagens. Um acesso a poderes especiais. (Mais)
19 de agosto de 2016
Les enfants de Sitting Bull. Baudoin (Bayou)
Como em quase toda a sua obra, como se
se tratasse do seu baixo contínuo, quando Baudoin explora a memória
nos seus livros não a faz com o intuito da sua exposição, mas sim
no de a transformar numa forma de inquirição não apenas do passado
mas da própria individuação de quem a possui. Em que medida é que
a memória não nos pertence somente, mas nos faz? Que
responsabilidades éticas temos nós de nos lembrarmos de uma certa
forma? Que permite a recordação para repensar a história, seja ela
pessoal ou familiar, histórica ou colectiva, cultural ou política?
Colocando a pergunta de uma forma mais simplista e associada ao
título do livro, modo pouco oblíquo de Baudoin sublinhar uma das
questões principais do livro mas que não surge como matéria
central: quem são os filhos de Sitting Bull? (Mais)
17 de agosto de 2016
Tempestade sobre Galveston. Pasquale Ruju e Massimo Rotundo (Polvo)
Em mais do que uma
dimensão, Tempestade em Galveston é uma mais tipificada aventura de western
do que Patagónia, de que faláramos antes. Se ambas estarão subsumias a
uma economia de produção bem mais vasta, a saber, os livros maiores da casa
Bonelli e, ainda mais, toda o historial de Tex Willer, é inevitável que façamos
aqui uma leitura bem mais limitada entre estes dois textos, o que provavelmente
incorrerá numa injustiça interpretativa, assim como uma capacidade limitada da
apreciação de elementos específicos à obra assinada por Rujo e Rotundo. Seja
como for, pensamos que essa via é não só inevitável como necessária no interior
do nosso contexto, e haver uma vontade da parte da Polvo em, ao abrir-se esta
oferta particular, fazer chegar estes livros a um público que não o
especializado texiano. Basta ponderar na diferença abissal entre o tratamento
original, mais inclinado para assinalar a presença e continuidade da
personagem-marca registada, do que este caso, em que é o título específico,
individualizado, que ganha proeminência. (Mais)
16 de agosto de 2016
Resenha de Adjusted Margin. Kate Eichhorn (Cambridge)
Conforme outros casos anteriores, voltamos aqui a divulgar um trabalho de resenhas de cariz académico de um livro teórico-histórico sobre um tema que, de forma bastante significativa, se intersecciona com o campo da banda desenhada. Adjusted Margin. Xerography, Art, and Activism in the Late
Twentieth Century,
de Kate Eichhorn, é um livro que vive na encruzilhada de várias disciplinas, desde a história da tecnologia à mediologia, passando pela sociologia, a crítica da arte, a crítica cultural, estudos feministas, de género e de culturas marginais.
de Kate Eichhorn, é um livro que vive na encruzilhada de várias disciplinas, desde a história da tecnologia à mediologia, passando pela sociologia, a crítica da arte, a crítica cultural, estudos feministas, de género e de culturas marginais.
Adjusted Margin é basicamente a história da máquina de reprodução xerográfica, vulgarmente conhecida como fotocopiadora, mas estuda a forma como essa máquina, inicialmente de uso confinado ao mundo empresarial, de forma célere se tornaria um fundamental instrumento para a expressão de toda uma série de identidades contrárias a essa cultura corporativa. Apesar de Eichhorn não falar de maneira específica e sustentada em relação à banda desenhada, os interessados nesta área aprenderão muito com a leitura deste volume, compreendo em que medida é que esta arte também procurou seguir as possibilidades que esta máquina trouxe. Além disso, e de maneira mais importante, Eichhorn demonstra também como a própria fotocópia veio alterar de maneira significativa as formas de expressão - queer up é o termo, algo difícil de traduzir: "estranhá-las"? -, se não assinalar como ela própria já o seria queer em si mesma.
A resenha foi publicada na estrema, e podem aceder à versão em pdf aqui.Agradecimentos à editora do livro em si, pela sua oferta, assim como aos editores das revistas que recebeu o nosso texto.
11 de agosto de 2016
AAVV. Under Dark Weird Fantasy Ground # 1-3 (Hollow Press)
A revista, cujo título em acróstico,
UDWFG, poderá recordar um murmúrio de afogamento e martírio
de um qualquer demónio, ou um humano nas suas mãos, é com efeito
um objecto de sortilégios macabros e nocturnos. Talvez mesmo uma
espécie de grimório narrativo cuja leitura, se exercida em
determinadas circunstâncias ritualísticas e numa ordem determinada,
destrave as cancelas de outras dimensões tenebrosas e possa fazer
deslizar sombras que nos alterem as percepções. Mas mesmo a sua
leitura comum e semi-distraída colocará os leitores seguramente num
ambiente algo incómodo, de uma maneira indefinida, que por isso
mesmo se torna mais incómoda, ao contrário de prestações mais
violentas ou directas, cujos elementos se tornam de imediato, se for
o caso, obscenos, repudiáveis, mas por isso mesmo mais permeáveis a
sensações estendidas. (Mais)
8 de agosto de 2016
História Universal da Pulhice Humana. José Vilhena (E-primatur)
Este
pequeno volume é um pequeno grande gesto. Se a obra de Vilhena,
imensa, múltipla, variada, espraiada, paroxística até, ainda
continua verificável e viva num substrato contínuo de
alfarrabistas, a sua re-apresentação e até re-formulação sobre
objectos mais “dignamente livros” poderá ser uma senda certeira
a uma necessária re-apreciação. Os seus cultores jamais o
abandonaram, é certo, pugnando mesmo pela sua importância, mas
muitas das suas características impediam, talvez, que a obra de
Vilhena tivesse as mesmas cartas de cidadania na perspectiva do
humor, da caricatura, do desenho de imprensa, da própria actividade
editorial, e até da literatura, que muitos de outros dos seus pares,
quiçá mais bem-comportados. A que deverá essa visão enviesada,
esse “semi-silêncio envergonhado” (R. Zink)? Provavelmente a
ideia de que a obra de Vilhena é “grosseira”. (Mais)
6 de agosto de 2016
Os contos do Planta no. 1. Gustavo Ravaglio (auto-edição)
Este pequeno volume parece ter
vários propósitos. O autor, alimentando a ambição de uma obra de maior fôlego
com as mesmas personagens há algum tempo, encontra nesta história de uma
trintena de páginas uma oportunidade de providenciar um público mais vasto com
a apresentação dessas mesmas personagens. Dessa forma, poderia ser visto como
uma primeira abordagem, a nível de recepção crítica, comercial e até, bem
vistas as coisas, para a própria experiência do autor em produzir de modo
completo a publicação. (Mais)
4 de agosto de 2016
A vida oculta de Fernando Pessoa. André F. Morgado e Aleandre Leoni (Bicho Carpinteiro)
Ainda
há pouco havíamos emergido de uma obra de longo fôlego que
pretendia, de uma forma ou outra, devolver, pela e na banda
desenhada, a vida e obra de Fernando Pessoa, na sua mais complexa
estratificação, sem abdicar, no entanto dessa mesma complexa rede
de travessias. Enfrentar a vida de um homem já é tarefa árdua,
quanto mais a de tentar ainda responder, de alguma forma, com uma
(só) forma, com distância, a sua obra literária. Sobretudo se ela
própria é variegada e complexa. Há outros métodos, todavia,
aparentados com o corte de Alexandre do nó górdio. A vida oculta
de Fernando Pessoa é, de certo modo, o uso de uma célere e
certeira lâmina nessa matéria vasta. (Mais)