Aqui ficam os agradecimentos e a promessa de encontros futuros, para novas aprendizagens da nossa parte.
23 de junho de 2010
Leal da Câmara: pequenas adendas.
Aqui ficam os agradecimentos e a promessa de encontros futuros, para novas aprendizagens da nossa parte.
16 de junho de 2010
120, Rue de la Gare. Léo Malet e Jacques Tardi (Casterman).

Mas, voltando atrás, e precisamente pelo papel e destaque que esta editora tem no seu mercado particular, é-lhe possível também fazer apostas que têm a ver com a repetição da sua oferta de títulos através de estratégias que passam pelo “repackaging”, pela reformatação, associando cada um desses diferentes formatos a um nicho específico do mercado (sem que se entre na própria reformatação das pranchas, o que acontecia com colecções tais como J’ai lu, por exemplo, ou outras de bolso; quer dizer, esta estratégia não é nova, mas agora é mais rápida). A importância do formato para o que conduz é alvo de um estudo interessante de Pascal Lefèvre (“The importance of Being ‘Published’. A Comparative Study of Different Comics Formats”, in Comics Culture. Analytical and Theoretical Approaches to Comics, 2000). Os casos paradigmáticos encontra-se em títulos de grande sucesso comercial, os ditos “clássicos” e também outros títulos que, roçando a mediocridade, alcançam um grande público. Se nos primeiros casos, podemos olhar para o Corto Maltese de Pratt, que é alvo de variadíssimas edições (a preto-e-branco em formato de livro brochado, em álbum cartonado, a cores, uma nova colecção com dossiers introdutórios, uma colecção de bolso a cores, e agora esta nova versão BD/DT – idêntica à do livro aqui e discussão – , a preto-e-branco, mais barata, num formato pequeno), e se o próprio Tardi vê a sua colecção mais comercial, Adèle Blanc-Sec, com honras de álbuns de luxo por associação ao filme recente de Besson, nos segundos vemos o mesmo tipo de abordagens (livros da capa dura, em formato romance, “integral” ou pelo menos agregando vários volumes) a coisas inenarráveis como Le Tueur, de Matz e Luc Jacamon, ou... outras coisas. Como dissemos acima, a manutenção do património não terá nada de mal em si mesmo, mas é às custas do silêncio em relação a outros autores, títulos, atitudes, até mesmo da pertença do catálogo antigo da casa... Exemplos: Jean Teulé, Francis Masse, os quais, se foram recuperados, o foram por outras editoras mais atentas a linguagens verdadeiramente desviantes e modernas.

Esta novela é um exemplo excelente daquela expressão “the plot thickens”, e tendo em cnsideração que o caso de desenrola e é investigado por Burma no período em que está em convalescença em Lyon, torna ainda mais as conturbadas pistas multiplicadas e falsas resoluções mais divertidas.

Essa consciência passa por vezes pela própria personagem, a qual se cruza ou emite ela mesmo o slogan da sua agência, “Nestor Burma, o homem que põe o mistério em K.O.”, assumindo totalmente os contornos de folhetim da sua actividade e vida.
Nota final: agradecimentos à editora, pelo envio do livro. Este volume foi recebido em conjunto com a edição na mesma colecção/formato que Le Grand pouvoir du Chninkel (1988), de Van Hamme e Rosinski, uma pobre derivação de outros textos anteriores, d’O Incal a 2001, passando pelo Senhor dos Anéis; um inenarrável Du plomb dans la tête, de Wilson e Matz; e A Balada do Mar Salgado (ed. livro, 1975) de Hugo Pratt, cuja releitura neste formato em nada vem reescrever as suas fraquezas nem as suas forças. Aliás, se o “polar” de Tardi se presta a esta maior intimidade do livro de bolso, todos os outros, inscritos numa banda desenhada que pretende maior espectacularidade e lições de moral, é o álbum a sua província mais correcta.
15 de junho de 2010
Naissances de la bande dessinée. Thierry Smolderen (Les Impressions Nouvelles)

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Por outro lado, se a contextualização histórica, quer falando de desenvolvimentos tecnológicos aplicados à vida quotidiana e às artes quer se discutindo certos princípios sócio-políticos (isto sempre no palco europeu ou ocidental, compreendendo que se deixa em suspenso todas as restantes áreas do mundo), é completa, existem outros aspectos que gostaríamos de ter visto desenvolvidos de uma forma mais central ou esclarecedora.
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Mas, se é esse o caso e natureza de Naissances, porque é que se resolveu utilizar na capa uma imagem (de Frederick Opper) representando um homem das cavernas a lapidar qualquer coisa? Não servirá essa imagem paa uma espécie de promessa de se falar dos exemplos mais recuados possível da criação humana para aí auscultar processos ou objectos que pudessem ser resgatados para uma história alargada da banda desenhada? Seja como for, tal como a total acronia de um ser humano junto a um dinossáurio, também haverá por este volume alguns saltos de fé que eclipsam outras cronologias e linhas de desenvolvimento igualmente pertinentes.
Apesar de Smolderen contribuir para uma correcção de que a banda desenhada seria uma invenção acabada nascida nos cadinhos da imprensa moderna e popular norte-americana – ideia propagada sobretudo nos Estados Unidos mas que se esvai e continua a impor numa certa tendência americanófila (repetindo a importância de Eisner nas “graphic novels”, na preponderância do mainstream pela conquista em várias frentes populares a outras linguagens, etc.) - a atenção é ainda concentrada num espaço relativamente reduzido e concentrado de referências. Encontrar-se-ão aqui exemplos das estampas de Hogarth, exemplo forte de um encontro entre a popularidade e a mestria artística, dos bilderbogen alemães e das imagens de Épinal, e muitos outros exemplos de artes gráficas que se cruzam, polinizam, repetem em contextos diferentes, reinventam. A lição importante terá a ver com uma certa desmistificação em relação à invenção totalmente original, genial, dos artistas individuais, e demonstrar – a seu modo – a contínua e aberta negociação entre a experimentação gráfica, artística e técnica, a auscultação junto ao público (curiosamente, ou não, pelas formas rapidamente encontradas de divulgação massiva, sobretudo o jornal/revista, mas também as estampas populares, as caricaturas em folhetim, etc.), e as relações com outras instâncias da criatividade e desenvolvimento social. Se bem que pelo formato e edição material se assemelhe mais a um livro de celebração do que de exposição e argumentação académica, a profusa inclusão de imagens serve para sublinhar a perspectiva e ideias de Smolderen, e não somente surgir como uma colecção de “pequenas maravilhas”. Nesse aspecto, Naissances de la Bande Dessinée é um contributo condigno para a discussão sem fim sobre as suas origens, que deveria ser sempre pautada por aquela frase de Wittgenstein, em Da Certeza: “É muito difícil encontrar o princípio. Ou melhor, é difícil começar no princípio. E não querer ir mais para trás”.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
12 de junho de 2010
Jack Survives. Jerry Moriarty (Buenaventura Press)
Na Comic Art # 9 (Outono de 2007) surgiu um artigo anunciando a edição para breve de Jack Survives, uma mão-cheia de trabalhos de histórias curtas de banda desenhada de um dos mais interessantes, ainda que relativamente obscuro (em relação ao “grande público”, mas não a outros círculos) e de baixa produção, autores norte-americanos da modernidade, Jerry Moriarty. Os leitores conheceram-no através da mítica revista RAW, editada por Art Spiegelman e Françoise Mouly nos anos 1980, a qual se tornou num ponto de viragem importante que nasceu das cinzas dos underground comix, mais interessados em explorar temas de contra-cultura (sexo, drogas e rock’n’roll) do que na fabricação de projectos sustentáveis a longo prazo de banda desenhada (com a ressalva para um punhado de artistas maiores que sobreviveram), e desembocaria mais tarde na banda desenhada alternativa dos anos 90. Esse ponto de viragem foi também palco de toda uma série de experiências dirigidas sobretudo à estrutura da banda desenhada, ao experimentalismo gráfico e formal, à colação de novas ou pelo menos diferentes linguagens gráficas ao meio da banda desenhada, começando com o próprio Spiegelman, mas agregando muitos outros nomes. Moriarty, neste caso, está lado a lado com Richard McGuire no círculo da RAW, enquanto autor que, com a sua pouca produção, criou um trabalho de grande influência mais junto a outros autores do que entre o grande público (de certa forma como Saul Steinberg ou Kliban, todos eles “artistas de artistas”). Para além de um punhado de páginas publicadas (apenas) na primeira versão da revista de Spiegelman e Mouly, estes editores juntariam muito desse material num dos seus famosos “one shots” (o terceiro, datado de 1984), monografias de autores que lhe estavam associados e que não teriam a oportunidade de editar o seu trabalho noutras plataformas mais convencionais.
O artigo a que me refiro é na verdade constituído por um punhado de imagens (fotografias, reprodução de pranchas e telas de Moriarty, e outras curiosidades) acompanhado por umas quantas notas feitas pelo próprio autor: visita-se a sua infância, as suas primeiras influências e experiências artísticas e de banda desenhada, os primeiros trabalhos e aspectos mais recentes da sua obra. Esta nova edição (feita pela mesma equipa dessa revista) publica o material da RAW e mais algumas novas e inéditas pranchas, mas por razões que espero tornar claras, a exploração dos trabalhos apresentados na Comic Art são um importante complemento a este livro presente: são uma sua inflexão, expansão e material de interpretação.

Quer a edição da RAW quer a presente reúnem todas as pranchas intituladas “Jack Survives”, assim como desenhos soltos com a mesma personagem, pinturas, versões a cores, que tanto podem ser lidos como trabalhos preparatórios como extensões, variações ou correcções. Nada é definitivo e a própria paginação, que demonstra não existi uma ordems equencial absoluta de prancha para prancha, assinala essa negociação constante.
Chris Ware, na sua introdução, falta de uma certa “falta de estilo” (stylelessness) da pate de Moriarty, que lhe incute uma espécie de atemporalidade. Cita Edward Hopper, cujas escolhas cromáticas, composições descentradas e episódios aparentemente inócuos e silenciosos se aparentam com as imagens de Moriarty. O próprio Moriarty confessa ser essa uma das fontes do seu lado “conservador”, juntamente com Norman Rockwell: uma América que nunca existiu, utópica, de saudável e descomplexada felicidade urbana, negadora de tensões de vária índole. Mas por outro, fala de uma outra metade, “idealista”, nas quais agrega os nomes de Ernie Bushmiller, sobretudo na sua aproximação estilizada e seca de Nancy, e Philip Guston, que depois de uma fase abstracta se relançou no território da figuração procurando auscultar precisamente as tensões indizíveis dos Estados Unidos através de figuras provindo do universo dos cartoons. E é essa mesma tensão, por dizer, que se sente nas histórias de Jack. Apesar de haver um ou outro episódio mais directo (uma menção ao cinema pornográfico como forma de escape, as antipatias de Jack em relação aos mais jovens, culturas que não partilha, uma certa ideia de ateísmo e niilismo [daí que tenhamos incluído no vídeo a primeira história que conhecemos na totalidade]), a esmagadora maioria deles parece concentrar-se em pequenos faits divers domésticos e inócuos, os quais, no fundo, são apenas um finíssimo véu que pretende “dourar a pílula”. Essa ideia de véu sobre um objecto, de camadas, é mesmo palpável na qualidade das imagens...
Este desenho corrigido faz-nos recordar as técnicas de animação de um William Kentridge (sobretudo o seu trabalho com as personagens Soho Eckstein e Felix Teitlebaum), associando-se assim dois artistas que trabalham, como aponta muito bem Ware, à natureza da memória humana. Aliás, Ware aponta mesmo que a memória é a matéria por excelência da banda desenhada, o que é intrigante, interessantíssimo e que gostaríamos muito de ver desenvolvido pelo autor norte-americano. Dado o nosso interesse pessoal pelas associações possíveis entre a memória e a banda desenhada, tema recorrente neste espaço, as razões serão óbvias. Mas como funcionará em Moriarty? Como se associa a Kentridge? O que emerge dessa “correcção” visível? A nosso ver, a opção de um autor deixar visível todos os passos da constução da imagem, e não operar através das técnicas clássicas opacas, escondendo cada um dos passos (esboço a lápis, desenho, tintagem, etc.) é querer revelar que o gesto é sempre o mesmo, é querer tornar a expressão em acto comunicativo, e não acreditar num estado alcançável de pureza comunicacional (grande herança de Hergé). Com a devida distância entre o cinema de animação e a banda desenhada, que operam em pólos distintos no que diz respeito à relação com o movimento, estes dois exemplos pretendem também demonstrar uma espécie de memória interna da imagem. Se no caso da animação (Kentridge é o nosso exemplo, mas outros animadores recorrem a técnicas semelhantes, como A. Petrov, G. Schwizgebel, enfim, desenho sobre vidro, com carvão, areia, etc.) há uma espécie de permissão em transformar o tempo em espaço, deixando a sua impressão gráfica no tempo como uma memória literalmente bio-gráfica, na banda desenhada, que opera em múltiplas imagens singulares e congeladas, o que se torna visível é o depósito geológico dessa construção.
Também se poderiam falar de outros autores no campo da banda desenhada, com os quais penso existirem afinidades electivas e estéticas: Marco Mendes, Amanda Vähämäki, Vincent Fortemps... todos eles, de modos diversos, procuram deixar visível o processo de construção, as hesitações, as ideias recusadas, os desvios de direcção. Isto traz uma camada de complexidade às obras que não estava previsto na abordagem mais clássica e comercial da banda desenhada. Há pouco tempo deparámo-nos com um artigo que dava início ao seu trabalho através do queixume de que “críticos modernos” desprezavam a banda desenhada de aventuras; outra pessoa dizia que existe muita banda desenhada contemporânea que “não diz nada” e que é uma pena que ela não possa ser uma descomplexada “forma de entretenimento puro”. Não negamos que não o possa ser, nem negamos a importância (e até o valor e o nível de conquistas estéticas eventual) da banda desenhada de aventuras. Simplesmente, do nosso ponto de vista, estamos a viver um tempo excelente em termos criativos no que diz respeito à banda desenhada – já no campo de edição, de caminhos de divulgação, distribuição, etc. é outra a conversa –, dadas as liberdades existentes, a diversidade de autores e linguagens e temas, e a própria possibilidade de explorar o banal, o quotidiano, a mais humana e simples das vivências deve ser entendida como uma força, um avanço, e não como uma perda, usualmente apontada a meros desejos juvenis, presos a uma satisfação básica de pulsões por desenvolver.
São obras como as de Moriarty – para mais concebidas nos anos 80, mostrando uma constante ainda que menos visível história de bandas desenhada outras (utilize-se o adjectivo contrastante que melhor servir) – que revelam a existência de uma possibilidade de tornar este meio um modo de expressão tão complexo e variado como os demais, e que se abrem a uma exploração profunda e enleada entre a matéria de expressão da banda desenhada e os temas com que se pode defrontar e, consequentemente, que fazem pensar o próprio meio da banda desenhada, não só nos ajudando como nos obrigando a pensar com ele.
Nota final: agradecimentos a Nuno Franco, pelo empréstimo da edição RAW de 1980 de Jack Survives. O vídeo mostra não apenas a edição contemporânea, mas ainda materiais e comparações com a edição anterior.
11 de junho de 2010
Krazy + Ignatz + Pupp. George Herriman (Librimpressi)
A história do aparecimento, da publicação, das transformações, da “evolução” do trabalho de George Herriman é extremamente complexa, alongada, mas também fascinante e informativa até chegarmos aos gloriosos anos da série Krazy Kat. A emergência lenta, paulatina, d@ gat@ Krazy, terror de toda a população de roedores da casa dos Dingbats, seguido pelo vingador Ignatz que descobriu no tijolo a melhor arma de defesa, a transformação de ambos numa rotineira dupla cómica (aparentado com os actos de vaudeville da época) em torno de piadas patetas de Krazy, a flutuação entre a composição da própria banda desenhada – primeiro como filler de outra tira (The Dingbat Family/The Family Upstairs), depois como tira autónoma, conhecendo vários formatos, do vertical ao panorâmico, às pranchas imensas de Domingo – e mais tarde o fechamento do triângulo com Offissa Pup, não é algo que tivesse surgido de atacado, mas antes um processo de apuramento da parte de Herriman em termos de escrita e desenho. Essa longa história começa a ser-nos facilmente disponível, graças a toda uma série de publicações importantes, com alguns arranques em falso, que garantem a defesa da memória e do património histórico da banda desenhada junto a um público mais alargado. Os destaques especiais vão naturalmente para a maravilhosa colecção editada por Bill Blackbeard, e desenhada por Chris Ware (ainda em curso, estando quase a terminar a colecção de todas as páginas de Domingo e depois passando para as tiras diárias e outros títulos anteriores de Herriman), o volume The Kat who Walked in Beauty, editado por Derya Ataker (ambos projectos publicados pela Fantagraphics), ainda um recente Krazy + Ignatz, “Tiger Tea” (que apresenta uma fracção da única “aventura de continuidade” da série, re-apresentada a um público moderno, no qual nos incluímos, através da RAW) e o volume da Sunday Press que está para sair (e acrescente-se ainda o projecto da biografia do autor por Michael Tisserand). Também existe um punhado de outras edições menos recomendáveis apreoveitando o “domínio público” de parte da série, e alguma da tecnologia disponível nos nossos dias... Neste contexto editorial, o que significa o acto editorial de Manuel Caldas?
Para além do mais, sendo uma edição para leitores portugueses, temos a questão da tradução.
Já muito foi escrito e repetido sobre esta séria. Chama-se “génio” a Herriman sem procurar onde esse espírito se encontra. Utiliza-se a palavra “surreal”, sem querer empregar esse adjectivo de um modo historicamente sustentável nem explicado (mas sim do mesmo modo como se contaria algo que nos aconteceu no autocarro). Insiste-se no “triângulo amoroso” sem ver que o amor não transita de criatura para criatura, nem que é perene. Falam-se das “paisagens mutáveis” sem que se apontem as ausências gritantes das culturas locais que supostamente Herriman admirava. Centremo-nos apenas no trio central (sem com isso derimir todas as outras memoráveis personagens, dos peixitos-gatitos a Joe Stork). Existem variadíssimas teorias de personagem, e Paul Wells cruzou três delas para procurar estabelecer uma grelha de apreciação de muitos dos formatos de relação entre personagens da animação. Por um lado, temos a tipologia de personagens da animação por Norman Klein, que se divide nos papéis do “Controlador”, do “Polícia” e do “Aborrecedor”, por outro a tipologia teórica da personagem na comédia em geral, de Henry Jenkins, que encontra os papéis do “Palhaço”, do “Tanso” ou do “Chato” (ambos os antagonistas cómicos do palhaço) e finalmente o “Falso”. Quer num caso, quer no outro, deparamo-nos sempre aqui com uma classe de personagens: a A, que está sempre no controle da situação, e que procura a satisfação dos seus apetites e desejos, mesmo sem histronismo (casos claros – em triunviratos – são os de Bugs Bunny, Popeye); outra B, que são aquelas que tentam impor princípios e regras aceites da sociedade, usualmente não o conseguindo e acabando por ser castigado por isso (Elmer Fudd, Olívia Palito?); e a C, a qual tenta também impor certas regras que ela mesma não cumpre (Daffy Duck, Donald Duck, Brutus). Um outro eco destas tríades poderia ser procurado na divisão freudiana da personalidade nas camadas do Id, do Super-Ego e do Ego. Pensando no caso particular de Krazy Kat + Ignatz + Pupp, como encontrar os papéis respectivos? Krazy Kat cumpre, sem sombra de dúvida, o papel do “Palhaço”, pois é elæ quem é a fonte dos trocadilhos, mal-entendidos, erros de percepção, trapalhadas e, quem sabe, da fluida composição em seu torno (os cenários mutáveis, as criaturas híbridas, a concentração de representantes de populações migrantes, misturadas e sempre à margem da “normalidade” da sociedade norte-americana), mas não possui um grama sequer do poder de controlador de um Bugs Bunny. Na verdade, os acidentes é que lhe acontecem: ainda que demonstre o seu maior poder ao aceitar receber os tijolos na cabeça como uma “carta de amor”. Quem erra? Krazy, ao recebê-los, ou Ignatz, ao insistir enviá-los? Por sua vez, Ignatz é o “Polícia” (over-reactor, no termo de Klein), o antagonista de Krazy, que lhe nega as piadas e as descobertas inusitadas, que procura impedir a felicidade delæ sem se aperceber, porém, que contribui para a mesma (são demasiados os episódios em que sucedem comédias de erros deste tipo para os contar). No entanto, na ordem da psicanálise, se Krazy é de facto a expressão desabrida dos desejos, Ignatz não consegue funcionar como força de pressão e correcção social, já que todas e quaisquer acções correctivas que faça apenas aumenta o desejo de Krazy... Finalmente, Pupp cumpre o papel de “Aborrecedor” e de “Falso”: no primeiro sentido, pois “empata” a relação, mais antiga, complexa, dúbia, entre Krazy e Ignatz (ambos já sonharam em casar, já partilharam uma cama, já se mataram um ao outro, já se perseguiram e perderam, etc.); no segundo, pois não muito diferentemente de Daffy Duck ou do Califa (de Goscinny e Tabary), ele quer ocupar o lugar de Ignatz, impondo uma lei por vezes arbitrária (a “prisão preventiva”, sem julgamento e sem, muitas vezes, crime, é constante). À luz da psicanálise, Offissa Pupp ocuparia o lugar do “princípio de realidade”, e é ele de facto quem tem o papel mais conformado com a realidade histórica – uma profissão, um sentido perene do que é correcto, a inscrição numa hierarquia e autoridade, etc. –, mas essa realidade é-lhe completamente alheia e fora do seu controle.
10 de junho de 2010
The Complete Milt Gross Comics Books. Milt Gross (IDW Publishing)
Craig Yoe já havia alertado em experiências anteriores, sobretudo na revista que edita (Modern Arf e os outros títulos alternativos), para o diálogo entre os cartoonistas e as artes visuais eruditas do seu tempo. Como já afirmámos aqui várias vezes, as mais das vezes esse diálogo é de derisão e incompreensão da parte dos artistas de banda desenhada: a matéria das artes plásticas serve para criar um qualquer tipo de humor, às custas das técnicas pictóricas (o cubismo, um favorito), cromáticas (monocromáticos de Klein, cores anti-naturalistas de Gauguin, etc.), representativas (o surrealismo de Dali), ou simplesmente da percepção generalizada de uma certa arrogância social e discursiva da parte dos círculos que a cultivavam. Nalgumas das páginas destes comics, Gross mostra algumas dessas obras no centro do seu humor, com um especial destaque para um famoso quadro norte-americano, Arrangement in Grey and Black: The Artist's Mother, de James M Whistler, que surge uma vez numa das histórias, e nouta numa colecção de versões sobre pinturas famosas. Gross faz parte daquele grupo de autores que construíram a sua verve cómica – como toda a criação da comédia – sobre os outros: a sua própria “graphic novel” He Done Her Wrong é uma espécie de resposta, sarcástica, aos livos de Lynd Ward.
Gross trabalhou numa série de frentes, tendo publicado para jornais, revistas, livros, argumentos, cenários, animações (como este Jitterbug Follies), etc., mas este enorme volume colecciona o trabalho que Milt Gross fez para o formato dos comics books, não só os dois números da publicação com o seu próprio nome (Milt Gross Funnies) como outras publicações onde participou breve mas regularmente (The Killroys, Giggle Comics, Moon Mullins, ...), entre os anos 1947-48 (fazendo assim um volume com cerca de 350 páginas, no tamanho original, maior, dos comics dos anos 40 e 50).
Recordemo-nos também que esta época, os anos 40, foi um momento de grande produção de cinema (no qual Gross esteve envolvido de várias maneiras, desde argumentista a pintor de cenários, como se pode ver neste clip) e de animação. Era um tempo imediatamente antes do domínio comercial e quase monopolista do naturalismo e universos cândidos da Disney, e em que a produção de um Fritz Freleng e sobretudo de um Tex Avery procurava ainda toda a liberdade e exploração de tabus nos desenhos animados. Uma espécie de tentativas em encontrar naquele meio para crianças construções mais adultas e até, subtilmente, críticas sociais e culturais. Paul Wells, um dos mais importantes e divulgados teóricos e académicos do cinema de animação, opõe uma animação que dava prioridade à comédia de personagens, e à personalidade destas, associada aos gostos de “uma população antiga e rural ‘folclórica’”, tal como preconizada pela Disney, e um outro tipo de animação, mais anárquico, modernista, associado “às culturas imigrantes não-WASP [branchas, anglo-saxónicos e protestantes”] que se tornariam parte do ‘melting pot’ norte-americano no final do século XVIII”, citando Raymond Durgnat para explicar que o humor deste outro tipo de animação era “rápido, directo, cínico, muitas vezes cruel, reflectindo um mundo mais veloz e perspicaz”. Gross não apenas pertence a essa geração como a esta tribo particular. As suas personagens não existem para serem desenvolvidas de um modo emocional, racional ou empático, no fundo: são apenas mecanismos rápidos para dar início a todo o movimento cinético das suas histórias espatafúrdias e ilógicas. Durgnat havia identificado a transformação que se operava nesses tempos modernos (e a qual parece ecoar uma lição de Walter Benjamin exposta em O Narrador, modernismo esse visitado por quase todas as instâncias da arte da sua época): “A vida torna-se cada vez mais uma rápida manipulação de sentimentos do que uma experiência total dos mesmos”.
Um aspecto curioso é a memória entre duas pequenas histórias de That’s my pop! Poderei estar redondamente enganado aqui, mas recordemo-nos que a “continuidade” a que muitos leitores da banda desenhada mainstream hoje estão habituados é algo de relativamente recente, e estas bandas desenhadas eram produzidas no seio de uma indústria que ainda considerava estes panfletos (os comic books) como algo que não mereceria arquivo, cuidados de maior, nem sequer a atenção do leitor que ultrapassasse o que era ofertado entre as capas de cada número. Mesmo assim, Gross apresenta dois episódios – empregar esta palavra já implica a ideia de continuação – dessa série (Moon Mullins #s 5 e 6, em 1948), em que os protagonistas, na segunda aventura, se recordam e reutilizam matéria da aventura anterior. Não posso, de forma alguma, afirmar que esta seja uma estratégia inovadora ou inédita nos comic books desta natureza e era, já que toda essa história é de uma convoluta rede de avanços e recuos e imitações e correcções, etc. Existiam as tiras de continuidade, mas também existiam reutilizações de personagens secundárias e vilões nos títulos dos super-heróis, por exemplo... Fica a nota.
Outro aspecto culturalmente marcado, e que expande aquela família humorística a que nos referimos acima, é a dimensão musical desta produção. Aqui, as referências teriam de ser obrigatoriamente as de Carl Stalling, o grande compositor dos filmes de animação da Warner Brothers, e de Spike Jones, autor de uma imensa lista de canções burlescas e divertidas. Jones chega mesmo a ser citado numa destas histórias de Gross, e é essa a razão que nos levou escolher uma das suas composições para banda sonora do nosso (sempre péssimo) vídeo.
O livro ainda contém uma intodução pelo filho, outra com um “fold-in” de Al Jafee, e um texto de Yoe em torno da carreira, vida, colaborações e amizades de Gross, assegurando um elemento importante de contextualização estética e histórica deste autor, a recuperar de uma forma mais central do que até agora foi possível.
Nota: agradecimentos a Filipe Leote,que há uns anos me apresentou e passou toda a discografia de Spike Jones.
7 de junho de 2010
Hans, O Cavalo Inteligente. Miguel Rocha (Polvo)
O dragão ataca. Tiago Albuquerque (Ao Norte).


No entanto, o que marcado foi, marcado está, e não há educação que a apague, ou não fossem impressões de infância/adolescência. Esse fascínio, que tem na imitação física uma das suas faces, está indicado no trabalho de Tiago Albuquerque. Tal como as crianças imitam os movimentos e os gritos de um filme desta natureza nos dias que se seguem à sua experiência, também o autor optou por apagar a possível aproximação textual para mergulhar directamente nesse jogo de estranheza. Apesar de ter começado com uma versão em que trabalhava o texto, adaptando as muitas frases citáveis do filme (“Boards don’t hit back”), Albuquerque optou por empregar textos em chinês (colhendo-os pela internet), criando um écrã impenetrável (para a esmagadora maioria dos potenciais leitores deste livro, que presumo não lerem chinês). Não é que fiquem apenas as imagens: o texto mantém-se nas legendas, nas falas dos balões, nas didascálias, mas tornam-se um obstáculo apenas superável pela imitação, pela derisão, pela brincadeira, idêntica aos gritos e algaraviada que uma criança faz imitando Bruce Lee num qualquer combate.
A trama do filme é deixada intacta em O dragão ataca, ainda que transformada em momentos-chave, fortalecidos pela opção do autor (em colaboração com Adriano Lameira, que desenhou “metade” do livro) em apresentar pranchas quase simbólicas, ora em composições esquemáticas, ora empregando princípios de perspectiva oriental, com a distribuição dos espaços pelo eixo vertical do plano, ora pela sobreposição de imagens que se pretendem mais lidas enquanto sublimação dos eventos que representação naturalista. Como é de esperar, a cena final do combate com Han recebe uma atenção maior, graças a um enorme plano desenhado por Albuquerque de um punho quebrando um espelho, e destruindo a ilusão que havia sido tecida até àquele momento, apenas se podendo seguir o dénouement e a recompensa do herói (também trabalhada pelo autor da banda desenhada de uma forma compósita).

O dragão entra e ataca neste livro. Ele surge mesmo, com o seu corpo e presença, umas quantas vezes pelas páginas, como eco simbólico da trama principal. A convivência de ambos os planos é eco da memória reconstrutiva de Albuquerque, que mostra assim a continuidade de um fascínio vivo por este filme.
Nota final: agradecimento ao editor, pela oferta do livro.