30 de junho de 2006
Masters of American Comics. (Yale University Press)
Este livro deve ser entendido não como um catálogo da exposição dos Museus indicados como co-publicadores institucionais (o Hammer Museum e The Museum of Contemporary Art, L.A.), apesar de ter sido a propósito dessa mesma exposição que este livro viu a luz do dia, mas antes como o complemento textual, ensaístico, crítico, da mesma.
O propósito era reunir o máximo de material relativo a um grupo restrito mas significativo de “mestres” da banda desenhada norte-americana. Como todas as escolhas, é natural que leve a posições determinadas, que poderá eventualmente não agradar a todos, especialmente quando não se inclui um “nosso” favorito (nesse aspecto é como a atitude perante uma selecção de futebol, que é feita por um responsável, mas existem sempre “alternativas” verbalizadas pelos que estão de fora). No entanto, a escolha deste 15 autores parece-me extremamente pertinente, quer em termos históricos, atravessando paulatina e modelarmente os períodos históricos em questão, como, não estando todos eles em relações directas uns com os outros, mostram porém um fluido entendimento da história. Só para nos situarmos, fala-se centralmente de Winsor McKay, Lyonel Feininger, George Herriman, E.C. Segar, Frank King, Chester Gould, Milton Caniff, Charles M. Shulz, Will Eisner, Jack Kirby, Harvey Kurtzman, R. Crumb, Art Spiegelman, Gary Panter e Chris Ware. E a apresentação é feita do seguinte modo: em primeiro lugar, um longo ensaio dividido em pequenos capítulos que fazem um retrato da história da banda desenhada nos Estados Unidos, concentrando-se sobretudo nesses autores, por um dos editores, John Carlin (que escreve extensivamente sobre arte norte-americana contemporânea; os outros dois editores são Paul Karasik, artista de que já falámos, e Brian Walker, filho do Mort Walker do Beetle Bailey/Recruta Zero e autor de alguns livros sobre a história da banda desenhada no seu país). Em segundo lugar, segue-se uma série de curtos textos, escritos por vários autores - desde autores como Jules Feiffer, Patrick McDonell, Matt Groening, a editores como Françoise Mouly, escritore como Tom De Haven, e malta do mundo das artes “sérias”, desde o comissário Robert Storr ao artista Raymond Pettibon, entre outros. Estes textos oscilam entre o breve ensaio, a colecção de factos, a alucinação teórica e desabafo criativo (Pettibon, who else?), as notas pessoais, a magnífica ainda que curta leitura....
Apesar destes nomes centrais, e o estabelecimento não só de uma espécie de “fio vermelho” que os une numa espécie de, não diria continuidade (uma visão historicista de progresso que não se adapta à fluidez e metamorfoses da arte), mas de campo de forças, o autor do maior ensaio mostra preocupação em apontar os nomes de outros que não foram “convidados” a estarem nesta linha de apresentação, mas cujo trabalho ou significação foi central. Por exemplo, o facto de Shuster e Siegel e de Bob Kane não estarem presentes é natural, já que no território artístico de ambos, Milton Caniff e Chester Gould (respectivamente?) são de facto superiores, e no que diz respeito ao género dos super-heróis, foi Jack Kirby quem melhor expressou uma visão e uma voz pessoal. A ausência de Barks, de Floyd Gottfredson ou de John Stanley dever-se-á talvez à presença de Shulz e, quiçá, ao mais central papel de influência deste último, dos trabalhos infanto-juvenis possíveis (se bem que Peanuts escapa desse campo...), ou talvez ao facto de que as personagens desses artistas não lhes pertencessem, mas a uma companhia? Mas Kirby... Bom, o mesmo se diria de Charles Forbell, de Hal Foster, de Pekar, de fulano e sicrano... Estas justificações serão seguramente balizadas e multiplicadas para a inclusão destes artistas e a exclusão de outros; tinha de se fazer uma escolha, e ela é pertinente.
Esse “fio vermelho” é constante através de pequenas frases, escolhas de características de um artista para falar das ou contrastar com as de outro, num texto que não só se lê muito facilmente como revela grande inteligência e equilíbrio de recursos intelectuais. O trabalho de integração de Carlin é verdadeiramente a pérola deste volume, se bem que não seja nada displicente a inclusão dos restantes textos, e todas as imagens (reproduções de arte original – mas atenção a Spiegelman! – antes de serem impressas finalmente) são uma magnífica visão destes mesmos artistas. São breves, como não podia deixar de ser, as leituras que Carlin faz de cada um dos autores focados, mas elas são de análise, o que se chama de “close readings” (de uma página de Domingo, por exemplo, ou de um trecho narrativo, como no caso de Segar), extremamente completas e atentas, e que rasgam um sulco por onde será possível continuar a trilhar no estudo desses mesmos trabalhos.
Este livro é muito mais compreensivo do que muitos outros livros análogos, por um lado por não se dispersar em todas as direcções possíveis, mas por estar balizado com um trabalho de extrema competência de equipa – a que Carlin serve de “cabeça”, de “testa de ferro”. No sentido histórico de que falei, lembrará o livro de Joseph Witek, Comic Books as History, em que há uma integração das obras de Jack Jackson, Spiegelman e Pekar como vozes dissonantes da História (enquanto discurso hegemónico e oficial), ou outros títulos que versam o mesmo tema (há um sobre a revista MAD, mas não me recordo – nem tenho – do título). Por outro lado, deste lado do Atlântico, melhor dizendo, recordará o volume Maîtres de la bande dessinée européenne, editado por T. Groensteen, mas quer o aspecto textual e contextualizador quer o aspecto gráfico deste livro presente é bem superior ao europeu.
Voltemos atrás. Como se entenderá, uma das características mais importantes desta antologia, e que os textos de Carlin corroboram, é a diversidade dos estilos, objectivos, públicos, e linhas pelas quais se cosem os trabalhos incluídos. As naturezas são tão diferentes que ocorreria um perigo de trazer à colação objectos absolutamente diversos. Mas aí reside a inteligência da escolha: são trabalhos diferentes, para públicos diferentes, de suportes e circunstâncias diferentes, mas nada disso leva a que sejam, em si, ou entre si, inferiores em termos de qualidade estética. Carlin sublinha os aspectos em que cada uma das obras seleccionadas é excelsa. A beleza operática de McKay não é idêntica ao minimalismo de Shulz, e as aventuras para jovens adultos de Caniff nada têm a ver com os experimentalismos gráficos de Spiegelman, tal como a poeticidade de Herriman é bem diversa da de Chris Ware... Mas cada um deles, a seu modo, cumpre o grande papel da sua arte particular, que é precisamente o de serem surpreendentes, ao mesmo tempo que mantêm um estranho nível de familiaridade. Contribui essa forma de pensar para evitar os perigos de instituir um qualquer discurso a priori, ou pior, exterior, para procurar justificações de valor da banda desenhada, mas antes nutrir uma atenção que nasce na convivência com ela, que nasce dos seus limites e das suas forças, uma óptica, portanto, plasmada ao seu objecto. Mas uma visão que, por ser inteligente e atenta, também altera a percepção desse mesmo objecto, naturalmente.
Apenas adianto que teria sido aconselhável incluir uma espécie de bibliografia mínima para que os leitores deste livro-catálogo pudessem aceder aos trabalhos aqui apresentados. As monografias, livros de história, estudos contextualizadores e outros encontram-se referenciados ao longo do texto ou nas notas, mas falo de uma “Lista de Leitura”, que ajudaria em muito a uma primeira visita àqueles que não conhecem estes artistas. Mas esse é um pormenor pouco importante, visto o imenso e belo gesto que este livro cumpre.
99 ways to tell a story. Matt Madden (Chamberlain Bros.)
Forma. Conteúdo. Quantas vezes foi debatida a questão dessa dicotomia não levar a um conhecimento profundo da obra apresentada e antes levar a erros de percepção e falácias da inteligência?
Há muitos modos de a combater. Uma delas é através de uma aturada e contínua investigação, buscas mais ou menos balizadas por referências académicas, uma bibliografia tremenda, os passos dos outros. Outro modo é o de Matt Madden (ver aqui também). (Mais)
Free Radicals. AAVV (Paper Rodeo)
A capa, desenhada por Cybele Collins, penso que diz tudo: existem dragões diversos que saem das nossas cabeças e sopram fogos que se podem juntar num incêndio comum e brilhante. Mais do que uma metáfora, é uma imagem que preside ao gesto editorial de Leif Goldberg, um dos protagonistas da cena de Fort Thunder, de que já falámos várias vezes, por ocasião de outra antologia da Paper Rodeo, e das publicações Kramer's Ergot e The Ganzfeld.
Agregando mais de quarenta artistas, apresentam-se desenhos, ilustrações, bandas desenhadas, colagens do que parecem ser rabiscos ao telefone, páginas arrancadas de sketchbooks, etc., tudo impresso em folhas coloridas (cinco), fazendo até de um folhear rápido um caleidoscópio alucinado, como impõe a lei desta família de experiências gráficas. Nesse ponto, e noutros, estão próximos destas publicações.
Encontrar-se-ão aqui artistas nossos favoritos, desde Josh Simmons (dos demenciais Happy e All About Fucking), Mat Brinkman, Brian Chippendale, C.F., a outros novos nomes (para mim) mas que me prendem logo, como Mark Farhall e Josh Thompson. Algumas das participações não são tão significativas como estas, mesmo incorrendo em exemplos que parecem infantis, ou da pior ilustração adolescente possível, mas talvez sejam desvios kitsch ou soluções na edição... Para os cultores destas funções desarrumadoras dos zines, Free Radicals é tão fundamental como o foi, por exemplo, a publicação Coober Skeber (o segundo, o Marvel benefit issue), do mesmo grupo.
Finalmente, saliente-se ainda a participação de Sam Lopes, também da escola de Rhode Island de onde vem grupo de Fort Thunder, mas que têm participado muito no círculo galerístico com os seus trabalhos figurativos e de estranhas lições sociais... aqui apresenta uma breve parábola sexual que seguramente bebe de uma série de fundamentalismos religiosos ainda hoje visíveis.
Nota: existe uma animação abstracta de Len Lye intitulada Free Radicals (1958), que consiste em riscos brancos sobre o filme preto, os quais se parecem balancear e mover ao ritmo e melodia dos tambores Ragim (África do Sul, se não estou em erro). Não sei se haverá ou não uma ligação directa, ou se é antes com qualquer outra referência, por isso não elaboro. Mas esse filme, na sua livre convergência de elementos tão díspares aponta para uma mesma vontade neste grupo de artistas, que me parece pertinente deixar a menção.
Hanashippanashi, Patati Patata. Daisuké Igarashi (Sakka)
Uma das mais prementes características do absurdo, enquanto categoria ou género literário, é o pacto que se estabelece entre o universo diegético, as suas personagens e os leitores. Não se trata de um simples mergulho no que agora se chama à boca cheia de “surrealismo” que tanto pode servir para descrever trabalhos que genuinamente trabalham a co-existência de elementos díspares para criar uma nova realidade, tão bela “quanto o encontro fortuito entre uma máquina de costura e um guarda-chuva numa mesa de dissecação” (Lautréamont), como para pessoas que simplesmente têm falta de direcção do pensamento e atribuem ao “acaso” a emergência da sua arte, sem notar que esse acaso nem sempre leva a bom porto. Esse pacto leva a que existam elementos nesse universo diegético, os quais provocariam a derrocada absoluta da lógica do mundo, o nosso mundo, que são perfeitamente aceites como reais pelas personagens e, logo, por nós mesmos, os seus leitores. Se o primeiro tipo de “surrealismo” pode ser encontrado em Edward Lear, por exemplo, este tipo de absurdo a que me refiro surge no Italo Calvino das Cosmicómicas (e o presente livro tem mais que uma afinidade com esse título do italiano), em Daniil Harms, em Samuel Johnson, no nosso Mário-Henrique Leiria, e naquele escritor checo que todos citam mas poucos (re)lêem. As histórias incluídas neste primeiro volume de Hanashippanashi, do jovem artista Daisuké Igarashi, cujos trabalhos surgiram nas publicações japonesas mais atentas às tendências mundiais da banda desenhada e a novas vozes extremamente pessoais, participam precisamente dessa natureza do absurdo.
Mais, é um livro maravilhoso, ou melhor, do maravilhoso, mais uma vez entendido como categoria literária: na qual os milagres presentes são “reais” no interior do universo da história. São mais de vinte histórias, todas muito curtas, relativamente independentes (“L’announciateur de printemps” pode servir de envelope e explicação da origem das histórias, para além do capítulo-epílogo), usualmente protagonizadas por crianças deixadas sós ou vagueando em pares pelos seus próprios passos numa cidade que se esconde nas dobras da cidade (veja-se particularmente "Les Chats de Derrière") - mas se Taniguchi também as caminha para descobrir a poeticidade do mais singelo dos quotidianos, Igarashi deambula pelos mesmos caminhos para descobrir estes obakemonos – até que tropeçam, sem surpresa para elas (daí o absurdo, o maravilhoso), em criaturas ou realidades inusitadas.
A palavra “poesia” surge várias vezes para definir este livro, na sua publicidade, mas não revela aí problemas de maior, se bem que se a cinja à sua capacidade de criar imagens, mais uma vez, maravilhosas, e que nos farão inveja de viver num mundo limitado pela gravidade, a biologia, a lógica, e não num caos de possibilidades, para depois apagarmos essa inveja e aceitarmos a felicidade de podermos ver, no nosso mundo, os cantos onde esses sonhos poderão existir. Na badana do livro faz-se uma piscadela ao “universo de Hayao Miyazaki”, mas se formos mais atrás, notar-se-á que a fonte comum são todas essas criaturas que pululam pelas paisagens do imaginário tradicional, folclórico japonês, sob a sombra do crescente panteão dos kami do Shinto (essas referências são, aqui e ali, o mais directas possível).
Os traços de Igarashi são muito simples, com as figuras humanas de um leve traço mais caricatural que realista, assim como a estruturação das vinhetas, mas revelam uma personalidade vincada e que apresentam um seguro domínio da linguagem da banda desenhada e da sua aplicação. Eu diria que está num traço “nervoso” entre um Tsuge e um Koruda... porém, é profuso no uso de tramas artificiais ou a lápis ou tinta, e a encher as paisagens de pormenores e volutas e padrões (como se notará neste exemplo de splashpage espectacular que dá conta do combate entre as nuvens e o nevoeiro), ou por vezes a combinar duas linguagens formais numa mesma vinheta, para poder criar os ambientes mais ou menos complexos que deseja. Precisamente retratando a harmoniosa convivência entre extremos ou opostos que ocorre nos sonhos, no absurdo, na “semente que germina no [n]osso imaginário”, última frase do livro, que expressa o desejo do autor da relação que estas histórias estabelecerão connosco. O que ocorrerá, decerto.
26 de junho de 2006
Le Moral des Troupes. Jimmy Beaulieu (Mécanique générale/les 400 coups)
O catálogo desta editora canadiana é largamente ocupado pelos livros deste seu autor e editor, e poderão ler na sua biografia que Jimmy Beaulieu é “hiperactivo”, preferindo por isso na suas histórias fazer como que um “elogio da lentidão”. Abramos, como ponto de partida, portanto, A Lentidão, de Milan Kundera (Asa): “Há um certo elo entre a lentidão e a memória (...): um homem caminha na rua. De repente, quer lembrar-se de qualquer coisa, mas a lembrança escapa-lhe. Nesse momento, maquinalmente, o homem atrasa o passo.” Este livro não é uma narrativa una e coesa, seguindo a regra das três unidades, ou coisa que o valha. É feito antes de partes (mais que capítulos) que tanto funcionam de modo independente como que integradas num todo, e esse todo são pequenos troços do interior da mente do protagonista.-narrador, sobretudo da memória. O curioso é que, mais uma vez como Proust (será a figura tutelar de facto das letras francófonas nestes territórios...), começa com um capítulo onde a personagem principal, passando uma noite na casa e infância, recua a essa mesma infância, de um modo desagregado e meta-referente ao modo como a memória funciona, vive e sobrevive.
Em termos de acção, testemunhamos toda uma série de acontecimentos, que podem ser vistos como o progresso natural dos dias das personagens: uma viagem até do Québec até Montreal, por causa de um festival de bd, encontros com amigos de longa data, o regresso, a vida e alguns passeios na cidade, umas férias bem merecidas, um epílogo que pondera tudo isso. Mas todos esses acontecimentos servem como ocasião para outro tipo de passeios, como dissemos, no interior da mente da personagem.
E não são apenas memórias. Tudo serve de desculpa para tecer considerações alongadas sobre variadíssimos temas: a música pop, a tensão entre elogiar uma mulher e ser-se machista, o racismo, a cultura do consumo, o urbanismo capitalista de Montreal, a fugacidade do tempo e a imposição da nostalgia e, acima de tudo, a marcha inexorável da idade, e o peso que ele exerce sobre as percepções do mundo. Precisamente como abre o livro, “o efeito da paralaxe”. O curioso, associando-o mais uma vez a Proust e a Kundera, é que todas estas considerações, passeios mentais, invasões da memória no presente, são feitas em momentos em que o protagonista pára: quando está sentado num táxi, quando, apesar de estar num bar, se “afasta” mentalmente, quando está na varanda da sua casa, quando está à espera que a “amoreuse” escolha uma peça de roupa numa loja. Isso leva a que a verborreia dos balões e das caixas de texto, em relação às vinhetas, possam lembrar o exemplo clássico de Jacobs, mas é aqui empregue para uma modelar discrepância entre as considerações que faz, que mencionámos, e a acção presente nas imagens. As suas opiniões são por vezes enfáticas e proclamadas, o que se pode tornar algo desconcertante e anulador da simpatia que se sente usualmente para com o protagonista (o que torna interessante a ascensão da sua personalidade como impenetrável, desarrumando a conhecida teoria da identificação).
Em alguns aspectos, este Le Moral des Troupes faz-me recordar Le Journal d’un Album, de Dupuy e Berbérian (L’Association), na medida em que autores com experiências noutros territórios narrativos se afastam desses mesmos campos para entrar num outro tipo de relação com a banda desenhada, com as suas actividades, tornando estes livros num exercício metareferente sobre tudo. O desenho de Beaulieu parece ser feito de traços de lápis, sem tinta, acreditemos que com correcções, mas seguro, onde tudo é construído pela presença do carvão, das linhas às sombras. Pelo site, e pelo livro, notar-se-á o prazer que sente em desenhar jovens raparigas belas de todos os feitios, recordando essa bela obsessão presente também em Nuno Saraiva, Paulo Patrício, Rui Ricardo, Paul Pope, Adrian Tomine, Jim Mahfood, etc. & tal...
Anakeila. AAVV (Bruno Monteiro & Christina Casnellie)
Pequeno fanzine serigrafado, em cartolina azul, Anakeila está, a um só tempo, na família dos Opuntia books e na grande família dos fanzines do Porto de que tenho aqui falado mais ou menos regularmente.
Apresenta ilustrações de dez autores (para além dos editores, a já conhecida Isabel Carvalho, e trabalhos notáveis, ou que me pareceram a mim mais acabados, de Délia Silva, Pedro Augusto e Rui Silva) sem quaisquer restrições de tema, aproximação gráfica, resultados narrativos, taras que se explorem, atalhos ou trabalhos. Havendo apenas 55 exemplares, é provável que se tenham de desunhar para apanhar um. Não tem nenhum contacto, mas eventualmente posso ajudar-vos a pescar um, se estiverem interessados.
Nota: dou-vos o email de uma das editoras: christinacasnellie@alfaiataria.org
Trapalhadas Fantásticas, O Verdadeiro Destino do Senhor Adiposino. 3 x E.R.(Edições Éterogémeas)
Este não será mais do que um breve "recado" sobre esta publicação, pois creio ser parte de toda uma série criada por estes mesmos autores - acredito que estes 3 Rs sejam psudónimos, mas isso pouco importa - e editadas por Luís Mendonça, na sua pessoalíssima Edições Éterogémeas. Logo, desconheço se existirão outros livros, sabendo-os porém ilustrados, se se coadunarão às minhas contínuas leituras, mesmo no seu sentido mais amplo, de "banda desenhada".
Trata-se este, portanto, de um pequeno livro, quadrado, impresso num laranja de onde se destacam manchas (aguarelas?) e linhas mais escuras que perfazem as figuras humanas e de objectos que povoam esta história curta, em que cada duas páginas fazem uma vinheta, num total de 13...
A história é deste Senhor Adoposino que tem e não tem espaço na sua própria história, que tem e não tem protagonismo nesta aventura mais de linhas do que de personagens, que alcança e não alcança a felicidade na forma como persegue nuvens e borboletas, e sabe e não sabe o que fazer das árvores, do sol, deste livro.
Nota: se desejarem contactar o editor, façam-no através deste endereço: luismendonca@netcabo.pt
Allgirlz. AAVV (Daniel Maia)
Já aqui havia dito o que acho de antologias que partem de pressupostos que não os estéticos ou os de um valor que serve de convergência dos trabalhos apresentados, sobretudo no que diz respeito às mulheres...
Assim, passo a louvar, em primeiro lugar, o gesto de Daniel Maia em editar este AllGirlzine, Banda Desenhada Portuguesa no Feminino (por lapso, o meu scan cortou este supra-título). Em primeiro lugar, porque Maia está, conjuntamente com toda uma série de outros editores, e dos modos mais diversos (André Lemos, Geraldes Lino, a equipa da Blazt, da Sketchbook, os fanzinistas desunidos ou não, e tantos outros) em permanente busca de soluções editoriais que trilham os seus próprios caminhos, sem uma centralidade de preocupações meramente comercial. Estes gestos não me parecem ser feitos “contra” o incipiente mercado nem “contra” as grandes editoras, mas simplesmente num paralelo algo desviado (uns mais que outros, naturalmente, mas todos de forma salutar). Mais, e concretamente sobre a AllGirlz, o objecto é muito simpático, impresso a preto e branco de uma forma que é melhor com algumas histórias (as de Rosa Baptista e Joana Lafuente, esta última participante do Kzine) do que outras (perde-se o “grão” da de Cláudia Dias ou a qualidade da grattage da ilustração de Ana Biscaia), com uma trintena de páginas, e uma capa a cores... Apresentando-se como “no. 1”, sabemos que as diligências para um segundo e terceiro número já começaram. Aliás, leiam-se os pequenos textos biográficos do fim a publicação e entendam-se as forças presentes e as ausentes.
A antologia apresenta-se como bastante democrática, não havendo qualquer tipo de limitação em termos de temas ou forma, de idades ou dos currículos das participantes. Assim, surgem-nos pessoas com algum renome no mundo da ilustração e jovens, outras com alguma experiência no mundo dos zines, e ainda algumas desconhecidas de um maior público, mas cujos passos no mundo da banda desenhada não são nada titubeantes.
As minhas preferências vão, em termos globais, para os trabalhos de Carla Pott e de Rosa Baptista. A primeira está aqui com uma história muito curiosa de Alan Corbel, bretão que vê bem o coração negro que os portugueses podem acalentar, e que Pott com mínimos elementos narrativos faz presente. Rosa Baptista (participante em Memórias 10, Néscio, etc.) apresenta uma excelente versão pop da Bíblia enquanto lição das relações entre os sexos. Depois, em termos estilísticos, o trabalho de Andreia Rechena é obviamente apelativo, de uma simples eficiência, se bem que “perdido” nas vagueações poéticas quanto a personagem destas quatro páginas, e as tiras de Joana Sobrinho são muito curiosas, mas deveria ler mais a GQ para me aperceber se existe um universo narrativo a emergir a partir desta personagem, ou se se limitam a pequenos chistes das “neuras-fêmeas”. Em termos estritamente narrativos, é óbvio que o destaque focaria em KzzZ, de Sara Mena Gomes e Ricardo Silva, mas a sua intencionalidade é mais forte que a execução. Seguramente que novas aventuras e esforços serão recompensados com trabalhos mais acabados.
Finalmente, gostaria de salientar que a história de Cláudia Dias, O diário de um diletante, trabalhando também nesse território de vago fim-de-sonho de que se sai necessariamente em direcção à maturidade (gráfica, literária, poética, etc.), é uma banda desenhada que esteve exposta na íntegra em Almada há uns anos atrás, e a sua estruturação lembrou-me então (e ainda hoje o faz) Chan Woo Kim, uma história de Kevin Huizenga a qual, também quando publicada em papel (no primeiro Or Else) perdeu a inventabilidade formal original e acaba por se “desencaixar” na publicação... É o que se passa com o trabalho de Cláudia Dias, que não se apresenta da melhor maneira em AllGirlz, pois aponta preocupações de criar banda desenhada não-em-papel.
Em suma, mais um gesto salutar e bem-vindo em termos de edição, e política, sem dúvida, mas que em estritos termos estéticos – que são aquele que mais me parecem ser os que deverão ser cultivados – não trilha os caminhos mais arriscados... Talvez mesmo a grafia do zine, “girlz”, diga muito dessa atitude, quando o que se sonharia era com mais “grrrrls”. Esperemos os próximos números e mulheres com pêlo na venta.
1 de junho de 2006
Dragonslippers. Rosalind B. Penfold (Black Cat)
É muito difícil abordarmos obras desta natureza por uma perspectiva estética, sem com isso atropelar os ímpetos criados por ela que são alheios à estética, que procuram transmitir afecções de outras esferas da existência humana. Que misturam a vida na arte e não permitem que se fale só da arte sem secundarizar a vida real que pretendem representar, ou que se instalam de tal maneira que ao procurarmos apontar algo sobre a vida representada acabamos por parecer estar a atacar aspectos sobre essa mesma vida real. Como críticos, a nossa actividade consiste em contornar os obstáculos que o biografismo ergue, evitar as armadilhas do facilitismo em colar o que se conta na obra com o que ocorre no mundo real, e a partir daí criar um qualquer parâmetro de leitura, interpretação, vide, juízo de valor.
Dragonslippers é um livro de uma autora que assina com o pseudónimo de Rosalind B. Penfold, no qual relata, como o próprio subtítulo explicita, “o que uma relação abusiva é”. Trata-se, neste caso, da relação de uma mulher, com uma carreira estável e de sucesso, independente e inteligente, com o ardil pouco subtil de um homem desequilibrado emocional se não humanamente. Por alguma razão, ela vive uma cegueira no que diz respeito aos sinais de perigo e é arrastada para uma relação de dez anos, o que é surpreendente, que se vai denegrindo à medida que o tempo passa. A surpresa em termos criativos deste livro é que os desenhos (não nos apercebemos totalmente se devemos entender as pranchas nessa equação) foram sendo feitos “no momento”, como diário imediato às crises, uma forma da autora assentar no papel os acontecimentos, para que pudesse mais tarde ponderar quais seriam as causas dessas mesmas crises, como modo de procurar onde se encerravam as “culpas”, as quais, a esmagadora maioria das vezes, ela atribui (erradamente) a si mesma. A autora indica ainda, no fim do volume, quais as estratégias que usou depois para coligir todos esses desenhos de anos num só volume, construindo uma história coesa e fechada.
Formalmente, este livro segue aquele estilo relativamente recente de “maus desenhos” que se sustentam precisamente por essa falta de qualidade. Não se tratam de desenhos mal feitos para poder representar, por exemplo, os desenhos que uma criança faria, ou de um demente, ou uma qualquer cena que, graças aos significados narrativos, logo colocaria esse estilo ao seu serviço. Nem sequer de uma espécie de redução gráfica, caligráfica, ideográfica, em busca de uma depuração de formas ou por um qualquer patamar de clareza e correcção mais íntima da obra. Trata-se desses desenhos que nascem da aliança entre a incompetência e a ilusão da liberdade, empregues a uma visão estreita do mundo, as mais das vezes comezinha e muito satisfeita consigo própria, porque partilha da mesma visão do coleccionador: a de que a posse de uma porção, por mais circunscrita que seja, do universo, é similar à posse do universo. Falo desses desenhos que pululam por séries como Dilbert ou Cathy.
Porém, faça-se justiça, Dragonslippers escapa à gravidade dessa monstruosa fraqueza. Em primeiro lugar pois, não obstante o aspecto tosco, errático, quase inculto e atécnico dos desenhos, que não permitem uma colação a autores como, por exemplo, Porcellino ou Trondheim, são fruto – se acreditarmos nas palavras anteriores, de uma necessidade pela imediatez da acção: o apontamento, a nota diarística, a incisão ainda “a quente” para marcar a memória. O peso da rapidez de leitura e da simplicidade gráfica passa assim a servir um propósito, uma função – à qual nenhuma arte pode ser subsumida: no caso presente, um objectivo claro... o de ajudar os outros. Ou mais que isso.
Edward S. Casey, em Remembering. A Phenomenological Study, aquando da discussão da memórias corporais traumáticas, e de como a dor que elas recolhem e reapresentam sobrevive, afirma como são elas mesmo que “tentamos reprimir, deslocar, ou pelo menos censurar”. Não saberemos – nem é central – qual a relação directa entre o relato que nos é apresentado em Dragonslippers e a realidade em que se fundamenta, se bem que tudo nos leva a crer que 1. é precisamente o contrário da repressão o que está em jogo, 2. não há deslocamento de qualquer tipo, já que a atenção é guiada para o âmago do problema, e 3. acreditamos que não haja nenhum drástico jogo de reescrita que tenha limado os acontecimentos, afora a condição necessária de disfarçar nomes, locais, todos os deícticos que levariam à acusação real das pessoas implicadas. Mas é justamente esta relação com acontecimentos reais e a existência do livro como testemunho e exemplo que faz surgir esse programa, que coloca o peso do trabalho de R. B. Penfold fora do campo (mero?) da estética, da exploração narrativa e formal, do seu diálogo com um mercado, uma estrutura de géneros, uma continuidade da banda desenhada. Na verdade, nessa sua vertente programática, está tão perto de livros como os de Citizen 13660 de Miné Okubo e de Maus de Art Spiegelman, como dos livros de divulgação científica ilustrados por Larry Gonick (alguns títulos editados entre nós pela Gradiva). Estes são apenas alguns exemplos que poderiam ser multiplicados noutras direcções. Isto é, com os primeiros na sua faceta de relação-com-o-passado, resolução-da-crise, testemunho, e com os segundos na sua qualidade de exemplo, aviso à navegação, material de alerta e ajuda... Participa, portanto, desse universo de referências de “self-help”, de literatura terapêutica, a qual, não obstante o papel que têm junto a quem os lê, participa de longe do jogo de preocupações e estratégias de procura por discursos mais esteticizantes. E, ao dizê-lo, estamos só a referir-nos a essa mesma importância na discussão estética, e não num ataque ao seu (suposto) “conteúdo”, que cada um estabelecerá ser útil ou não...
Existem, todavia, pequenos pontos onde há um claro domínio das estratégias da narratividade visual, pelas elipses (ex.: pgs. 121, 137-138), pelas inversões “em negativo”, repetições de desenhos e emergência de padrões 39 + 74 + 78, 96-97, 108-109), invenções gráficas, recurso a esquemas, simbologias, a cena do aborto que a própria autora esclarece no prefácio, etc. No entanto, repito-o, tudo isso serve o propósito programático do livro, não o tornando um exercício interessante per se, mas pelas forças que tenta estabelecer sobre a vida humana.
AAVV. Cospe Aqui (Marco Mendes e Miguel Carneiro)
Seria bem simples se existisse uma infalível categorização de princípios e parâmetros que nos ajudassem a dizer se uma obra de arte cumpre o seu papel ou não. Seria eficiente, rápido, consensual, e de uma facilidade comunicativa, se tivéssemos acesso a uma lista que pudéssemos seguir na nossa leitura. Mas a leitura de uma verdadeira obra de arte jamais é eficiente, porque é nos escolhos que se oculta a sua felicidade enquanto gesto inaugural; jamais é rápida, porque exige de nós uma lentidão e um peso na sua degustação, na sua revisitação, na permanente convivência com ela, criando junto à obra uma intimidade que nunca deixa, ao mesmo tempo, de ser estranheza; jamais é consensual, porque instala a guerra entre a percepção e o saber, a opinião e o gosto, as expectativas e a aposta; jamais é de uma fácil comunicação, porque nada tem a ver com a comunicação, e porque só traz problemas, enigmas, complicações. Não se procure a obra de arte para resolver crises da vida ou da existência. Ela apenas existe, nas palavras acutilantes, programáticas e cônscias dos editores desta publicação, enquanto “zona temporariamente autónoma”.
Cospe Aqui é o novo fanzine da mesma equipa do Porto de que aqui já se falou. Não haverá aqui grandes novidades de participação, afora uns quantos novos comparsas, companheiros de outros encontros. Por isso, lá estão Miguel Carneiro, Marco Mendes, Didi Vassi, Carlos Pinheiro, João Alves Marrucho, e Arlindo Silva, por um lado, e dos novos vindos, André Lemos, que esteve presente na feira/encontro A Mula, e Manuel João Vieira, que apresenta umas ilustrações que prepara para uma edição dos Sonetos de Bocage. Apresenta-se ainda uma banda desenhada de Mike Diana, enfant terrible para todas as ocasiões e preconceitos.
O discurso em relação ao Grande Mercado das Artes mantém-se, tal como o diálogo (nestas vozes, através da dissonância, a ironia, o gozo) possível que com ele pode estabelecer um fanzine de banda desenhada, ilustração e pintura. Gostaria de apenas assinalar duas coisas que me parecem marcar uma grande diferença de trabalhos individuais anteriores: 1. Marco Mendes apresenta uma página com uma mais consensual banda desenhada, de um episódio que apresenta todas as características de um “slice of real life”. 2. Didi Vassi apresenta uma banda desenhada, em que duas vinhetas apresentam uma pequena piada, mas de extremo rigor em termos metalinguísticos e dos próprios limites que ele ergue e ultrapassa (a do “cacto” e a da “pívea”).
De resto, a qualidade mantém-se, e até melhora em termos de edição e material. Neste preciso momento, conjuntamente com as propostas saídas d’O Senhorio, estes parecem-me ser os mais interessantes fanzines colectivos e, como manda a lei, com uma estupenda verve e uma saudável dose de marginalidade aguda e com humor.
AAVV. Virgin's Trip (El Pep)
Um dos mitos mais constantes nos círculos da banda desenhada é o do “autor completo”, isto é, de um autor individual que está na base da criação (e controlo) da “sua” obra, desenhando, escrevendo-a, etc. O primeiro problema desse mito está no facto de que este último “etc.” engloba várias actividades que permitem e levam à existência da própria obra (o seu suporte físico, pelo menos) e que não foram da responsabilidade do autor. O formato, por exemplo, de uma edição, pode alterar a percepção e fruição de uma obra (vejam-se as edições de Le Journal de mon pére de Taniguchi, ou as edições francesa e a norte-americana de L’Ascension de l’Haut-Mal de David B.) Outros pormenores são também fundamentais, e bastaria apontar a colorização dos álbuns em França, que não é feito pelos autores, e que muitas vezes faz ou não emergir importantes matizes de uma “personalidade” da obra final, como exemplo. O segundo problema desse mito é que parece servir de deíctico suficiente de qualidade. Ora, isso não é verdade. E seria ridículo tentarmos aqui apontar ou listar obras que nasceram de trabalhos de colaboração, quatro mãos ou de funções separadas, ou até mesmo de ateliers, e que atingem, de modo satisfatório ou de excelência, a mestria, a fluidez, a legibilidade, a arte, a completude, enfim.
Serve isto como introdução ao presente livro pois parece-me não estar em erro que estamos perante um modo de produção que não é muito, se de todo, comum no nosso país. Fruto do trabalho de um atelier, mas sem com isso apontar a uma qualquer espécie de taylorização, este é um livro cuja força criativa, não obstante uma certa cadeia de eventos ou de razões, não recai sobre uma só pessoa. A história e conceito é de uma pessoa (Pepedelrey), que foi transformada na narrativa organizada por outra (Nuno Duarte), depois desenhada por quatro artistas (Pepedelrey, JCoelho, Rui Gamito e Rui Lacas), traduzida para inglês com algumas transformações textuais (eu próprio) e tudo apresentando num pacote de design “slick and smooth” (Sérgio Duque). E ainda existem projectos de animação e de música associados ao projecto. Mas todas estas etapas – tirando a tradução, claro – foram seguramente discutidas entre todos os intervenientes para chegar ao objecto final, que é o livro, que é o texto d’“A Viagem da Virgem”.
Tratando-se de uma história que se encaixa segura e facilmente na “ficção científica”, está mais próxima de um trabalho adulto que se encontraria nas histórias curtas Metal Hurlant francesa que qualquer outro tipo de produção. A utilização de todos os elementos que fazem reconhecer esse “género” é, porém, para levar de imediato para outras paragens: estamos perante a discussão de dois companheiros, entre a obsessão de um deles por uma mulher, a qual, como alguém já disse, reescreve o conceito de “mulher-objecto”, e a busca do seu comparsa em entender essa obsessão transformando-a sua e pervertendo-a, não sem antes se repor a ordem desequilibrada. É admirável como a utilização de três artistas, de traços diversos mas que ganham alguma osmose por conviverem num mesmo espaço, e seguindo técnicas e efeitos de cor idênticos, se plasma com a história que está a ser contada, com as etapas dessa história, provocando um sentimento de estranheza, ou até de desconfiança, como diz David Kino, à entrada do livro. O formato oblongo, a vinheta por página (fora certas excepções inventivas), o amarelo-torrado e ocres contrastando com as escalas de cinzentos e os pretos brilhantes, as relações dos textos com os silêncios, e dos mesmos com os desenho, fazem de Virgin’s Trip um gesto algo inusitado neste país, sem preconceitos nem presunções, mas conseguido e que pode servir de lição a quem sofre de inércia... As várias exposições já tidas e a elaborar mostram também um interesse e um domínio existentes, ou nascentes. O facto de estar em inglês é uma estratégia comercial que espero ser de sucesso. Mas só o tempo o dirá, já que os esforços dos autores e editores são reais.
Nota: a imagem apresentada é de Rui Lacas e está ligeiramente cortada; para adquirir o livro, a esta altura do campeonato, ou lojas especializadas, ou a www.chilicomcarne.com ou contactem o autor-editor: pepedelrey@zmail.pt.
The Ticking. Reneé French (Top Shelf)
Alguns artistas permitem que se reduza todo o seu trabalho a uma única palavra. Mas essa palavra não apontará a um mero exercício de redução, uma vez que agirá, a um só tempo, como tema, direcção, matéria, ou pior, como símbolo, ou melhor, como anima. É, portanto, como se costuma dizer, “muito mais que isso”, é algo vertebral, ou uma espécie de seiva que escorre lenta mas que inexoravelmente dá a vida.
A palavra de Renée French é “taxionomia”.
A taxionomia, como se sabe, é etimologicamente a “lei da classificação”, uma arrumação, por assim dizer. As arrumações nunca são indiscutíveis, seguindo sempre uma contextualização que pode ser mais ou pode ser menos circunscrita. Assim, erguem-se pólos desde a classificação de Lineu à famosa enciclopédia chinesa de J.L. Borges. Os trabalhos de Renée French, sejam os livros aparentemente infantis (The Soap Lady), sejam narrativas mais lineares (The Ninth Gland), sejam explorações pornográficas que apenas vivem da sugestão (cf. a sua participação em Dirty Stories), parecem viver sempre de uma taxionomia empírica, que vive e se desenvolve nos limites do conhecimento (científico) porque é um conhecimento limitado. É como se fosse erguer um logos a partir de uma doxa, somente, uma heterodoxia.
Não se trata, porém, de uma ausência de lógica. Bem pelo contrário, trata-se de um abuso das regras, um seu emprego excessivo, aplicar o que é de x também em y. É como quando as crianças, ao aprenderem a falar, deduzindo regras gerais, querem empregar, por exemplo, o verbo fazer no pretérito passado e dizem “eu fazi”. Trata-se de um emprego ultra-corrector das desinências dos verbos regulares nos irregulares. Só que a aplicação da regra, do regular, sem compreender as irregularidades, leva a ainda maiores irregularidades no mundo... French aponta precisamente para esses abusos da lógica, e os monstros que (n)eles despertam.
Esta relação com a aprendizagem das crianças não é inócua, pois é também um contínuo da obra da autora que se mantém em The Ticking, já que a taxionomia que se ergue, a qual influenciará a construção do mundo a partir da “diferença” em que o protagonista, Edison Steelhead, se insere, está intimamente ligada à forma como ele é obrigado a providenciar “conhecimentos” para tapar os intervalos do saber. Edison nasce com uma deformação facial congénita, mas uma vez que esta história se insere numa apresentação que não segue as regras do realismo artístico, só nos apercebemos disso já avançados na leitura; até esse momento, depreendemos essa estranha face como parte integrante do “jogo do desenho” de French. Depois, segue-se a relação com o pai, com a “irmã” que é convidada a substituir a “humanidade perdida” ou “falha” de Edison – o facto de Patrice ser o que é não é por acaso, mas serve para sublinhar esse “aquém-da-humanidade-completa”. E a recusa final, uma redenção íntima, de Edison ver na sua “diferença” um problema, uma de-formação, e aceitá-la como simplesmente a sua própria formação.
O livro, que segue uma estrutura que nos faz recordar Chester Brown, com uma a duas vinhetas flutuando livres na prancha, com os desenhos do próprio Edison Steelhead (cabeça de aço, impenetrável, inviolável) a fazerem parte do texto que nós lemos (veja-se o exemplo aqui de duas páginas abertas), curiosas repetições de estratégias – associadas à apresentação dos espaços de acção, a aproximações drásticas de partes do corpo – e a atenção a pontos de passagem que são também de metamorfose (verificada, desejada, imposta, ultrapassada, todo um rol de níveis é apresentado), é construído com desenhos a lápis, suaves, que me parecem ser de um trabalho apuradíssimo da artista. Na cinta que acompanha o livro Gary Panter diz o seguinte, com o qual concordo em absoluto, e que já tinha apontado, noutra ocasião, em relação a um trabalho recente de Isabel Carvalho: “O mundo que a Renée French cria parece à primeira vista fofinho e querido e giro, mas rapidamente revela-se, sob a crosta bonitinha, um mundo de contornos perigosos surpreendidos por abismos existenciais e medos primais”. Steelhead já tinha sido alvo de uma outra curta banda desenhada, mas é como se este livro falasse da infância dessoutra personagem, em que há espaço para todas as diferenças.
É quase um aviso à navegação do perigo que é deixar as crianças criarem um mundo - biológico inclusive – sem atravessar as regras que o mundo impõe, as quais não impedem a liberdade, mas travam o caos que tiquetaqueia na liberdade total.
Nota: 1. mais uma vez, o meu scanner não faz justiça da capa do livro, um belo objecto, já que esses entraçados baços que vêem emoldurando a figura são em relevo e dourados, tal como a figura e o título são entalhados...
2. Mais, devo confessar que este livro me mete um bocado de medo - por algumas razões mais óbvias e outras fobias mais íntimas - e que não consigo expressar melhor do que fazi... perdão, fiz.
3. Não deixando de ser algo gratuito, eis uma foto (encontrada na internet) de Renée French, na cena que ela protagonizou, fazendo de si mesma, num filme curto de Jim Jarmusch de 1994, "Renée", e que se incluíria depois em Coffee & Cigarettes, de 2003. Neste filme, ela mostra-se como uma belíssima versão moderna da mulher fatale, uma sobrevivência de um tempo outro; ela está silenciosa o tempo todo, a folhear uma revista de armas. É como se protagonizasse, no nosso mundo real, essa mesma razão de estranheza entre beleza, silêncio, violência, o uso perigoso do corpo, que tanto vive nos seus livros...