Na Ler no. 66, da Primavera de 2005, João Ramalho Santos apontava para que, tendo morrido Will Eisner, se esperariam demonstrações de crítica, análise, saudosismo, balanços, crestomacias, hagiografias, desconstruções, que se balançariam entre a “sob-” e a “sobrevalorização”, o que é muito bem visto, por um lado porque ao criticarmo-lo perante fãs incorreremos num crime de lesa-majestade, e ao canonizá-lo perante os detractores estaremos a “chover no molhado”, e por outro a obra e o legado de Eisner é também, ela e ele próprios, participantes em assombrosas invenções, descobertas formadoras, linguagens inaugurais, e generalidades pouco surpreendentes, continuidades de moralismos esperados, reflexões de uma mundana técnica (que é a origem da arte, via etimológica).
Não conhecer Eisner, ao falar-se e pensar-se na banda desenhada, não é um pecadilho nem uma questão de gosto pessoal, já o sabemos, é ignorância dura. Não apreciá-lo não é um crime, mas resultará talvez do desconhecimento do largo espectro da sua criação, que tanto pode alegrar estes como aqueles leitores, os segundos mais atreitos a uma moderna concepção, mais livre e pessoal da banda desenhada, os primeiros apertados pelo escapismo e o culto do (super-)herói. As aventuras de The Spirit e To the Heart of the Storm foram pensados, escritos e desenhados pela mesma pessoa, sim (apesar dos colaboradores em The Spirit), mas estamos perante duas produções muito diversas.
The Plot. The Secret Story of The Protocols of the Elders of Zion, surgido postumamente, não deixará portanto de ser alvo de significativas interpretações, como todas as obras póstumas e Nachlasser de grandes autores. Não falarei muito do conteúdo, pois o livro de Eisner é completo precisamente nesse fim: fazer um retrato e a biografia de um falso escrito, atribuído a uma suposta organização secreta judaica, cujo intuito seria conquistar o mundo, mas cuja falsidade alimentou nos finais do século XIX e no século XX o contínuo e crescente anti-semitismo que culminou, esperemos, na II Guerra Mundial. Essa ideia ganhou muitos avatares, e na exposição recente sobre Erich Kahn no Museu de Arte Moderna em Sintra há uma série de documentos da Alemanha Nazi que demonstram essa influência: por exemplo, a capa do Der Stürmer de 12 de Agosto de 1934, com uma caricatura de uma suposta reunião dos “Velhos do Sião” na capa. Portugal não escapou a essa atitude, não esqueçamos o famoso, polémico e mal-compreendido (será “anti-semita”? ou simplesmente racista nos seus pressupostos?) A Invasão dos Judeus, escrito pelo modernista Mário Saa e publicado em 1925 (com a foto de Fernando Pessoa, entre outros, na capa, poeta pertencente à “raça social judaico-luso-britânica”).
Pelo que entendemos, a desconstrução desta mentira foi uma das preocupações que Eisner acalentou durante largos anos da sua vida (“immense personal concern”, diz ele). Aliás, a saga dos judeus nova-iorquinos é um tema sobejamente discutido em Eisner, o problema da representação do judeu também, sobretudo com Fagin, the Jew (a partir de Dickens), já para não entrarmos na discutida mitificação de Cole como avatar do ficcional “Judeu Errante”. Fruto de investigação, obsessão, trabalho, discussão, este livro último foi construído com o propósito de “expurgo” do mundo de uma mentira, como as melhores e de maior sucesso, tão bem urdida que passa por verdade (não é mais simples acreditar numa conspiração milenar sobre códigos, Grais e Priorados do que nas circunstâncias reais sócio-políticas da Palestina nos séculos de passagem das Eras?). A razão é simples, e suscita frases feitas, desde a ficção ser mais forte que a realidade e que quando se deseja contar uma mentira, mais vale torná-la enorme e espatafúrdia, que mais êxito terá que uma pequena.
As únicas ressalvas, a meu ver, são duas. A primeira prende-se com a atitude geral perante a banda desenhada, por este autor, e que se expressa no seu prefácio. Já com Comics & Sequential Art e Graphic Storytelling & Visual Narrative Eisner tinha avançado algumas das suas ideias sobre o que se pode fazer com a banda desenhada, mas por melhores que sejam os seus conselhos não podemos deixar de ver esses volumes como manuais mais técnicos do que de reflexão teórica ou análise. As suas ideias mantêm-se em expressões como “a form of narrative language”, “vehicle of popular literature” e “accessible language” (v. o último parágrafo do prefácio a The Plot). Quer dizer, o seu programa de criação, que se foi complexificando ao longo dos anos, e que o período de utilização da bd durante a guerra como instrutiva – a educação dos soldados americanos passou muito pela utilização destas “tecnologias de informação”: a esmagadora maioria da produção de animação da Disney entre 1943 e 45 era dirigida a um só cliente, o Exército dos E.U. – jamais abandonou um grande débito para com a literatura propriamente dita, e toda a inventabilidade gráfica de Eisner foi feita sob o domínio da diegese, e não de um qualquer experimentalismo gráfico puramente visual. Os seus temas, personagens, tratamentos, ambientes, também bebem de um certo realismo americano, que não apresentaria grande choques aos seus leitores. É a sua obra, enquanto total, não obstante as suas diferenças internas, que o define como referência incontornável (completada por aspectos externos às suas bandas desenhadas, como a sua escola, as conferências, as conversas, etc.), mas é difícil fazer uma escolha mais estreita de qual dos seus livros se torna o mais significativo: a escolha poderia cair em A Contract with God, The Building, To The Heart..., ou o mais recente The Name of the Game, que parece repescar todos os temas soltos anteriores num só livro.
A ver se nos entendemos: Eisner contribuiu sem dúvida para um amadurecimento mental da banda desenhada, mas não se lhe pode atribuir essa responsabilidade por ser mais velho que outros autores e muito menos fazer brilhar a sua carreira com o brilho de trabalhos mais tardios. A Contract with God é sempre apresentado como a primeira “graphic novel”: mas para além de se tratar de uma colagem de histórias independentes, mas não una, e ter sido publicado em 1978, com a Europa já com uma larga tradição de álbuns (diferenças, há, mas assim tão impeditivas dessa comparação, não), já Eisner não estava sozinho na sua escrita de bd madura, mas acompanhado por autores como Robert Crumb, Justin Green, Jack Jackson, e isto apenas nos Estados Unidos e sem recorrer aos restantes hippies produzindo histórias de apenas “sexo, drogas e rock’n’roll”... Já para não falar de experiências mais obscuras e artísticas, e por isso menos visíveis. E The Spirit, se ainda merece uma atenta leitura da nossa parte, não pode essa leitura ser acrítica e deixar de notar no peso histórico que tem: os clichés do género, o tratamento de Ebony White, a moral, etc.
O mais indicativo da sua atitude geral perante o que a banda desenhada pode/deve ser expressa-se, porém, nestas suas algo limitadas associações à narração. É discutível, em termos filosóficos, que tudo o que nos é mostrado narra alguma coisa. Mesmo uma imagem simples, até abstracta. Tudo narra, por existir e ser fruída no tempo, de cuja experiência não podemos escapar. No entanto, parece-me que quando Eisner se refere a “narração”, está a prender-se sobretudo à estratégia literária, o que colocaria de lado outras experiências menos “narrativas”, e que não importa agora estar a ilustrar com uma infindável lista. E quando se diz dedicar a “um veículo de literatura popular”, implicará, mesmo que diagonal e indirectamente, que uma banda desenhada mais complexa, logo, menos popular, não merecerá grande espaço. Outra lista se seguiria, sem grande interesse.
A segunda ressalva tem a ver com política. Este é um livro, como muitos outros, que apenas servirá a “pregar aos convertidos”. O anti-semitismo, quer o geral, ignorante, puramente racista e mentalmente retrógrado, quer o que mistura “zionismo” com “direitos palestinianos” com “capitalismo selvagem” com “usura”, etc., mas não menos ignorante, continuará a descobrir formas de manter este mito vivo. Se bem que não se fale mais em poços envenenados e a necessidade de misturar, nos ingredientes do pão ázimo, o sangue de cristãos inocentes, as generalizações sobre “judeus” (que tanto podem abarcar camponeses pobres de Ponte da Barca como endinheirados de Silicon Valley, de colonos israelitas a cabreiros etíopes) continuarão a servir propósitos menos honestos. No entanto, é possível, se for editado em formatos mais acessíveis – tal como os “Chick tracts” que rodam pelo mundo inteiro à espera que abracemos Jesus Cristo nos nossos corações – é possível que essa mentira se desfaça... Não nego que algumas destas ressalvas são apenas um breve apalpar terreno que serviria a uma longa e abalizada discussão, mas terminarei com as palavras que utilizei noutro artigo, o qual dedicara a Will Eisner: “Não sendo o primeiro, nem o segundo nem o último autor de banda desenhada a pensar criticamente o modo em que trabalhava, foi no entanto um dos seus mais brilhantes maître artisan en métier d'art. Aquando da sua passagem pela Amadora [anos atrás], troquei umas brevíssimas palavras com Eisner. E é a sua forma de gigante se apequenar junto a nós, anões, que nos torna ainda mais pequenos.”
1 de setembro de 2005
The Plot. The Secret Story of "The Protocols of the Elders of Zion". Will Eisner (W. W. Norton)
Publicada por Pedro Moura à(s) 12:35 da tarde
Etiquetas: EUA
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