11 de julho de 2006
Nouilles Tchajang. Chi, Kyu-Sok e Byun, Ki-Hyun, d'aprés Ahn, Do-Hyun (Kana, Dargaud-Lombard)
Num dos trechos deste livro, a personagem principal – um “eu” sem nome, que tanto representaria o autor do conto literário original como todos os jovens da sua geração -, enquanto estudante da escola secundária, tem um trabalho de casa para fazer, para Artes Visuais: desenhar o mar. Como vive em frente do mar, pensava que não lhe seria difícil, mas não consegue desenhar uma linha e entrega uma folha em branco. O professor diz que não faz mal e pede que faça um esforço, pois basta “pintar o que se vê”. O rapaz entrega então uma folha totalmente pintada a aguarela, em tons de azul. O professor é apanhado de surpresa, mas pede-lhe que tente de novo, “com mais detalhes”. O rapaz não quer cair em “clichés” (barcos, sereias, etc.) e entrega então um desenho no qual se vêem três listras: uma amarela para a areia, e duas azuis, para o mar e o céu. O professor perde a paciência e bate no aluno, para que aprenda a fazer o que se lhe pede e se espera dele...
Os dois artistas que fizeram este livro, Chi, Kyu-Sok e Byun, Ki-Hyun, parecem ser precisamente esse tipo de aluno que aprendeu bem a lição para sempre. Tendo em conta que Jajangmyón é uma adaptação de uma novela literária de Ahn, Do-Hyun (escritor da nova geração, pós-guerra, e que dá voz a toda uma geração que não vive o mesmo tipo de conflitos – internos, psicológicos, históricos - das gerações mais velhas), os autores da banda desenhada optaram pelas fórmulas mais seguras, pelas estratégias mais banais, garantindo que a “história” fosse preservada e transmitida pelo mínimo de transformação necessária (para além da que existe numa adaptação à banda desenhada).
A arte perde-se numa série de opções diversas mas que não se complementam, e que acabam mesmo por atropelar em várias pranchas – desenho realista permanente com “torções” que não parecem equilibradas, efeitos de cor ou de computador que não abonam em favor da arte mas só de uma (pequena) espectacularidade, entre outros gestos menos acabados. A opção por traduzir as onomatopeias, mas imprimi-las por sobre as vinhetas originais, sem apagar as originais, leva a uma concatenação de “ruído” (literalmente!, mas sobretudo gráfico, visual...) pouco feliz, e que não seria desejada pelos autores (julgo), apesar das onomatopeias originais já serem pouco equilibradas.
Como será óbvio, ou mesmo nulo dizê-lo, o livro permite um olhar interessante para os “forasteiros”, isto é, é um possível retrato da Coreia moderna, uma visão descomplexada de alguns dos cidadãos mais comuns, das paixões que movem os mais jovens – que não pode ser idêntica à dos “filhos da guerra da Coreia” - e de uma série de características que nos poderão parecer estranhas, até mesmo “exóticas”, mas que fazem parte, de facto, da mais profunda realidade daquele país. Até mesmo o acto de pintar o cabelo sucessivas vezes é um pequeno acto de rebelião, mas precisamente o acto de rebelião que lhe é acessível, sem passar um limite – de violência, crime, ou outro qualquer – e que é cumprido por muitos dos jovens coreanos (homens, sobretudo).
Há um trocadilho no título, já no original, e que segue o modo como se diz oralmente o nome deste prato chinês, de massa, tão adorada pelos coreanos, em vez da sua grafia mais correcta, “Jja-Jang-Myóng”. Mas a diferença desses dois modos de falar são talvez um sintoma da brecha entre as duas gerações de que se fala tangencialmente no livro, e da qual emerge um novo tipo de adulto. É pena que a banda desenhada em si, a manhwá, não tenha respirado também uma maturidade maior, e se opte por uma linguagem básica e, por isso, neutra.
Everyday. Kiriko Nananan (Sakka)
Tendo já aqui falado de Blue, editado na mesma colecção, remeto a essoutro texto as maiores considerações das especificidades do trabalho de Nananan, que aqui se mantêm, já que este também é um livro de uma novela, que foi sendo editada em curtos episódios (9, mais epílogo) desde 1988 até 99, logo, mantendo as mesmas características gráficas e narrativas.
A voz que estas imagens e este tom de escrita transmitem é de um olhar para a intimidade que existe entre as pessoas, o espaço que se constrói entre um casal (seja este "oficial" ou não, e até mesmo "momentâneo")... A mera quantidade de vinhetas "silenciosas", e a sua integração nas vinhetas, o esparso e contido uso de figurações onde as personagens trocam olhares ou os dirigem ao seu interlocutor, o súbito movimento do olhar (do foco, do leitor), desviando-o dos actores humanos, são algumas das estratégias de Nananan para mostrar o proverbial "outro lado" da psique das relações humanas.
Apenas o tipo de personagens se altera em relação à "novela" anterior, pois aqui temos como protagonista uma jovem mulher, deste Japão moderno que aprende a lidar com o mesmo tipo de crises de papéis sociais e morais do mundo contemporâneo, e que obriga a repensar toda ma História, dos chamados "valores" e "tradições"... Trata-de uma novela de uma mulher dividida entre o amor, a paixão, os enganos a que esses sentimentos levam, e a permanente incógnita em relação aos caminhos que se abrem à nossa frente pelas escolhas tomadas: será mesmo necessário erguermos uma dicotomia entre a relação amorosa que se tem, "normalizada", "quotidianizada", mas de alguém que vamos conhecendo em profundidade e uma intimidade muito especial, por um lado, opondo-a a uma relação fogosa, louca, com alguém que nos incendeia os sentidos e embriaga a razão? Ou existirão todos os territórios pelo meio? E que tipo de sacrifícios estaremos dispostos a fazer para ter a certeza dessas escolhas? E haverá alguns sacrifícios que se tornam ridículos quando os fazemos, por serem mais dramáticos do que certeiros?
É toda essa espécie de perguntas que Miho, a personagem principal, parece procurar, em primeiro lugar, fazer... mesmo que, no fim, não tenha respoistas definitivas. Pelo menos valeu-lhe o ter caminhado pelo campo dessas questões.
Edgar P. Jacobs & Le Secret de l'Explosion. Renaud Chavannes (PLG)
Este é um livro de tese, de um dos contribuidores da Critix, sobre o famoso autor das aventuras de Blake e Mortimer. A tese que o move é simples e directa: Renaud Chavanne aponta para que a base da organização da composição (gráfica, estrutural) de Jacobs é a “strip”, isto é, a “tira”, e não a página, conforme se acreditaria a partir das leituras de trabalhos teóricos como os de Benoît Peeters, por exemplo. Jacobs trabalha a tira, começando com uma estrutura simples de (duas fileiras) de três vinhetas de dimensões iguais, no seu pastiche do Flash Gordon de Alex Raymond, O Raio U, nas páginas da revista onde trabalhou, a Bravo!. À medida que avançaria na sua obra, nomeadamente na primeira aventura do duo inglês, O Segredo do Espadão, Jacobs experimentaria variações no seio dessa tira, o que Chavanne chama de “fragmentação” (e da qual o autor do estudo avança propostas de nomes para os modelos mais verificados, como “1/2/1” ou “2/1/2”), até atingir o momento da “explosão”, narrativa – a da sede do poder do ditador tibetano Basam-Damdu – e gráfica – quando surge, mais do que uma prancha composta por três níveis de tiras, uma verdadeira prancha “tabular” (ver imagem incluída abaixo). Apesar dessa “descoberta” literalmente fulgurante, Jacobs optará por seguir, em toda a sua obra, essa implícita regra de trabalhar a tira. O livro de Chavanne é um estudo minucioso, se não exaustivo, do modo como Jacobs procedeu a essa fragmentação, e o modo como ela se relaciona com os restantes elementos composicionais da sua obra. Trata-se, portanto, de um livro teórico, uma leitura pormenorizada, analítica do funcionamento dessas tiras. Para isso, Chavanne apoia-se a uma série de estatísticas, cômputos, comparações, gráficos, que pululam pelas páginas deste livro – e não será surpreendente ver o quão envolvido está Chavanne em actividades computacionais.
Não deixa o analista de relacionar o trabalho de Jacobs com a cena de banda desenhada onde se inscrevia, aquando da criação das suas histórias, se bem que sem menções directas, já que não se trata este de um estudo comparativista, mas sim do modo que Jacobs segue para a sua composição. É muito sagaz a análise que o autor faz dos vários níveis de leituras possíveis: não só destes modelos imagéticos e compositivos que avança como a(s) matriz(es) de Jacobs, mas ainda aspectos relativos aos tamanhos das vinhetas e suas razões, dos espaços intervinhetais, da cores, dos textos que englobam, dos elementos gráficos, representacionais, narrativos, etc. Os formalismos constantes, apenas aparentemente excessivos, nem sempre são associados a uma interpretação narrativa que corrobore, de imediato, a sua pertinência estrutural... é a sua recorrência regular e o seu ritmo de “respiração” (palavras do autor) que tornam essa análise pertinente e, de um modo global, revertendo ao valor que exercem sobre toda a obra do mestre belga.
Há momentos em que se alerta para pequenas jóias, quasi-oubapiannas avant la lettre, na obra de Jacobs, como o exemplo da pg. 92 (correspondendo à tira de baixo da pg. 28 do 2º volume de O Segredo... – sigo a edição portuguesa da Bertrand; v. ainda nota 103 de Chavanne). E há uma grande atenção em relação aos aspectos estritamente textuais. Para já, a insistência do autor em incluir as vinhetas somente de texto sem qualquer distinção ou preconceito, contabilizando-as de igual modo para a fragmentação das tiras, reforça a consideração que Chavanne tem para a convivência destas duas “línguas” – texto e imagem – no campo da banda desenhada. Se, nalguns momentos – a defesa dos longos e por vezes, mas as mais das vezes apenas aparentemente, redundantes textos narrativos de Jacobs – poderá parecer que Chavanne não é mais do que um fã de Jacobs que o defenderá a qualquer custo, tendo criado um discurso altamente especializado e teorizado para isso, a verdade é que as suas leituras e análises são tão exaustivas (e como!) mas tão seguras e certeiras, que iluminam, de facto, essas mesmas dúvidas, dissipando-as. Vejam-se as páginas 73 e seguintes, tal como, obviamente, o capítulo que lhe é especificamente dedicado (“Rôle du texte”) para a importância que o texto assume em Jacobs, esclarecendo assim as relações entre os textos (narrativos ou das falas) e as imagens, em que os primeiros se tornam dinamizadores e organizadores, não só da acção, como da própria estruturação (agencement) das vinhetas, das tiras, etc. Não pode, portanto, haver um corte das considerações dos textos e das imagens, em prol de uma tabularidade (cf. Peeters) – o que se notará pelas potenciais leituras em “W” ou “U” no que Chavanne chama de “modelo 2/1/12” das tiras.
Há um outro aspecto picuinhas de censura, mas que notarão ser pertinente: para um livro cujo tema é a composição (seja da banda, da prancha, do livro...), revela-se uma frouxa relação entre o texto, digamos, corrido, e as legendas das figuras e das ilustrações, entre as notas de fim de volume e as informações trazidas pelos gráficos, tornando alguns passos algo redundantes... a menos que se trate de uma nada involuntária imitatio do mestre belga nesse aspecto.
A leitura deste livro não é propriamente fácil, e ajuda sobremaneira lê-lo com os livros de Jacobs abertos e prontos a folhear ao lado (complementaridade compulsiva desdobrada pelos materiais disponíveis no site companheiro deste livro) – mas o mesmo se passa, por exemplo e no campo da banda desenhada, com o Pour Une Lecture Moderne de la Bande Dessinée, de J. Baetens e P. Lefèvre, ou com qualquer livro de análise literária (textual). É aí que reside o busílis: esta é uma obra analítica e, enquanto tal, irrepreensível. Não se trata (somente) de uma monografia de encómio. A leitura é, desde já, obrigatória a quem desejar dedicar-se à leitura crítica da banda desenhada, pelo menos no seio de um discurso mais académico, mais balizado.
No entanto, a aplicação deste tipo de análise e dos instrumentos desenvolvidos pode ser relativamente difícil em relação a autores que já trabalham numa fase posterior... Chavanne aponta, a medo, mas abrindo a questão, alguns exemplos de modelos análogos aos de Jacobs em outros autores, bem mais contemporâneos, e de várias proveniências geográficas e narrativas. Apenas um exame tão próximo a esses autores em conformidade com o caminho de Chavanne confirmaria essa hipótese de aproximação. A minha dúvida é que, trabalhando esse autores já a prancha como sua unidade de composição (mesmo que trabalhem tiras), e tendo também acesso a toda uma série de estratégias estruturais posteriormente inventadas (inclusive por Jacobs), a própria palavra “fragmentação” parece não se aplicar, uma vez que nada de anteriormente “inteiro” de fragmentou. O resultado pode ser análogo, superficialmente idêntico, mas o caminho de pensamento não poderá ter sido, forçosamente, o mesmo. Todavia, é a atitude e a possibilidade desta natureza de análise sobre a linguagem de outros autores que se aventa.
A atenção para com as novidades e variações que Jacobs vai introduzindo progressivamente na sua obra faz-nos retornar à atmosfera “anódina” que é quase assumida por qualquer realidade na qual recai o epíteto de “clássico”, como se se tratasse de algo que já não nos surpreende, mas isto faz-nos a nós regressar à reconsideração do que são os clássicos, já uma vez feita também pela mão de Italo Calvino. Ora é essa precisamente a maravilha deste livro de Chavanne, que nos obriga a regressar aos livros de Jacobs e redescobrir neles a frescura do nosso próprio olhar sobre eles – agora educado com os instrumentos que Chavanne nos proporcionou. De certa forma, ao sublinhar o papel matricial da tira, isto é, da banda, - “a página é portanto uma inteligente estruturação de mais de uma tira” (pg. 176) - Chavanne acaba por (re)indicar Jacobs como um verdadeiro mestre, literalmente, da banda desenhada.
Nota: agradecimentos a Domingos Isabelinho, por me ter emprestado o livro.
8 de julho de 2006
He Done Her Wrong. Milt Gross (Fantagraphics)
Esta é a nova edição do livro de Milt Gross, He done her wrong, cuja primeira edição é de 1930, mas que a respeita integralmente, ao contrário de outras edições de permeio, pelo menos de acordo com estes editores. A primeira coisa a se dizer deste livro é o que sempre se repete. Tratando-se de um livro “sem palavras” (mas já lá iremos), inscreve-se numa tradição que, nos Estados Unidos, tem o seu cultor em Lynd Ward, mas que veio de Frans Masereel, na Europa. Não estando numeradas, este livro de Gross tem quase 250 pranchas, e, em muitos passos, mais de uma vinheta (ou pelo menos desenhos) por prancha. Nesse ponto, é muito diferente dos relativamente curtos trabalhos dos artistas anteriores (A Cidade, do artista belga, tem entre as 50 e as 60 gravuras). Todavia, isso não pode ser matéria de surpresa, já que essoutros artistas trabalhavam a xilogravura, uma arte que exige uma disciplina e um esforço tremendos (por isso, a sua utilização contemporânea na banda desenhada leva a frutos magníficos), e Gross emprega um lápis ligeiramente diferente do que costumava empregar nas suas tiras, digamos que mais “nervoso”, rápido e, por isso, expressivo, fluido, quase diáfano nalguns momentos. Quer a introdução de Craig Yoe, que me parece cada vez mais ser um fã endinheirado e com poder para transformar os seus gostos e discursos acríticos em discurso visível, quer o excelente ensaio de Paul Karasik (excelente enquanto “close reading”, se bem que o objectivo não seja, aqui, crítico; no entanto, vindo de quem vem, sabemos ter uma explícita atenção ao modo de trabalho de Milt Gross) apontam para as ligações contemporâneas que esta narrativa estabelece, bebendo do imaginário do tempo – mas que ainda hoje é facilmente entendível e repetível – e ainda para o facto de que este livro seria uma resposta bem-humorada de Gross em relação aos primos “sérios”, Ward e Masereel. Seja. Mas por mais que se desdobrem como as personagens de Gross, este livro não tem de facto o mesmo nível de sofisticação que o de Ward, e muito menos o de Masereel. E um dos aspectos que o torna “pesado”, perdendo passos em relação aos outros, é precisamente esse riso, mas também a associação ao imaginário de então.
A história é mais ou menos uma construção de clichés da altura: começamos no norte dos Estados Unidos da América ou no Canadá (fala-se do Klondike); no cabaré local dos lenhadores, para além das choir girls, há uma rapariga (mais pura?) que os leva às lágrimas, mas não deixa de exercer um desejo sexual; um lenhador particular (não o é explicitamente, mas chamemo-lo assim), diferente dos restantes (não tem barba, é mais alto, é mais puro?, e moral), salva a moça, e ambos têm um fraquinho mútuo. Entra o vilão, que o convence a trabalhar para ele, abusando da sua confiança de ingénuo para enriquecer sozinho, fugir e casar com a moça, deslocando-se então para a cidade. Começará aí um novo episódio, de riches to rags, num episódio absolutamente irónico em relação aos jogos de azar e da bolsa... com uma máquina de pastilhas elásticas. O lenhador viajará à cidade, onde passará vergonhas por ser um campónio – há como que uma mistura do Aurora, de Murnau de 1927, e uma cena no alfaiate que me lembra o que se passará num dos filmes do Tarzan, com Johnny Weissmuller, em Nova Iorque. Seguem-se mil e uma peripécias até à resolução final, com a moral restaurada e até recompensada, já que o “lenhador” redescobre o pai (não o sabíamos perdido, porém), adopta os filhos do vilão e tem novos com a sua amada... No entanto, precisamente por todos estes episódios serem apresentados num contínuo contexto de slapstick, todos estes nós narrativos surgem como ex machina, numa paródia sem fim dos clichés fílmicos, mais do que necessidades integrais a uma narrativa coesa. Por exemplo, não se percebe de todo a transição de empregos da heroína, a não ser a sua necessidade para poder empregar mais chavões narrativos epocais. Mais uma vez: pode ser divertido enquanto exercício inteligente de gozo, mas não contribui para uma sofisticação estética perene.
É fabulosa, sem dúvida, a profusão de efeitos gráficos, a multiplicidade de perspectivas, a repetição e variação de fórmulas internas (a chegada do herói à cidade, o implorar da heroína por emprego, os pais das mulheres enganadas pelo vilão), a convivência num mesmo espaço de diferentes desenhos ou estádios de uma acção... Mais uma vez, o ensaio de Karasik é muito claro neste aspecto. Se há momento em que essa dinâmica torna o “diálogo” entre pranchas/páginas memorável, é a cena em que o herói se despede da heroína, ao partir com o vilão para as montanhas, e ela se desdobra em três desenhos gradualmente mais triste (aqui colocado, ainda que tivesse que fazer um ajuste no tamanho das páginas); mas há muitos outros em que apenas as expectativas e o “treino” dos leitores nos clichés retratados “corrigem” a falta de completude da narrativa de Gross. Gross entrega-se mesmo ao auto-pastiche, como fará entender uma comparação da cena em que o vilão se esconde numa torre de comunicação e o episódio de Count Screwloose of Tooloose, de Outubro de 1929 (que encontro no The Smithsonian Collection of Newspaper Comics, editado por B. Blackbeard e M. Williams)
O herói não é totalmente correcto, e a sua atitude perante os animais e os mensageiros de más notícias poderão recordar-nos do temperamento irado de Hércules ou de Sansão. É o típico “matéria sobre a mente” que define, por natureza, a esmagadora maioria, senão toda, a banda desenhada norte-americana de heróis. Quanto à heroína, ela é bela, mas tão pouco individualizada quanto todas as heroínas e beldades das bandas desenhadas da mesma época, como já o havia mencionado a propósito de Frank King. Mas poderíamos acrescentar a esse exemplo, sem ordem, Moon Mullins de Frank Willard, Bringing Up Father de George McManus, Polly and Her Pals, de Cliff Sterrett, e, mais tarde, Betty de Charles Voight (estes três últimos exemplos consultados dos excelentes The ‘Nemo’ Booklets of Classic Comics, de Manuel Caldas). Aliás, a discrepância da beleza “única” e o tratamento “caricatura-como-real” é muito clara na cena em que a heroína está na fila de emprego; e o contraste apenas aumenta com o tratamento gráfico das restantes personagens, sobretudo o herói e o vilão, havendo apenas a correcção-para-o-realismo com o “pai perdido”.
Falámos cima que já se debateria o tema do “sem palavras”. E citámos Sterrett. Este último (também no tal caderno citado) tem uma tira de 22 de Junho de 1924, em que o pouco sofisticado mas honesto Paw vai com a sua família parvenu a uma peça de pantomina: das 12 vinhetas, 9 são ocupadas pela dita pantomina, com os actores sem falarem, e na última, Paw invade a boca de cena (e a vinheta, uma mistura magistral), dizendo: “Possa! Falem mais alto, não se percebe uma palavra do que dizem”. Mas esta piada de Sterrett é muito inteligente, e aplicável a este livro de Gross. A ausência de palavras só faz sentido, num momento histórico em que as palavras são conta-corrente, mesmo na banda desenhada, se as forças dos significados forem exponenciadas por esse silêncio, ou se a natureza desses significados se alterar substancialmente. E isso não ocorre em He Done Her Wrong.
Para já, é falso que não existam palavras, já que existem várias informações que nos são transmitidas pela escrita, mesmo que ela não esteja a representar a fala oral: o facto de estarmos perante uma vila que alberga trabalhadores nos momentos de lazer, a companhia do vilão com o herói, as peles à venda, o arrendamento da casa, a “agência” de emprego, o fabuloso desencontro na esquina provocado pelo cartaz de “Fate” (“Destino”), um anúncio de emprego, um hospital... e há mesmo uma instância de “fala”, quando um lenhador testemunha ao herói o que ocorreu na vila nas faldas da montanha, dizendo, em enigma gráfico, “Eu vi” (“Eye” + “Saw” = “I saw”). Mas estas pequenas presenças de texto não são o que torna o “silêncio” do livro pouco marcante – que como todos os que seguiriam estes passos, até a Peter Kuper nos nossos dias, reforçam os artifícios expressivos. É antes a ausência de uma expressividade que torne todos estes momentos silenciosos como emblemáticos de uma comunicação mais universal, mais profunda, mais humana enfim... que os leitores de Masereel saberão ser possível. Isto deve-se a Gross estar, de facto, bem mais preocupado com uma sequência, e acelerada!, de situações, do que um retrato da psique humana. Afinal, Masereel era cristão e moral, e não tão maniqueísta como Ward (aliás, este é moralizador através do dogma, mais do que pelo ecumenismo); Gross era judeu, e He Done Her Wrong está na linha de humor judeu nova-iorquino (ele nasceu no Bronx) que ainda hoje faz as delícias de fãs de Seinfeld ou de Jon Stewart, um humor cheio de chutzpah e kvetching...
Nota: agradecimentos a Nuno Franco, que me emprestou o livro. Sairá brevemente um artigo dele sobre este mesmo livro, no Público.
1 de julho de 2006
Banda Desenhada Contemporânea Sul-Coreana. alguns exemplos
A propósito do artigo sobre o livro de Seyeong O, onde discorri um pouco (uma amostra do imenso mundo) sobre a banda desenhada contemporânea que se produz na Coreia do Sul, de uma multiplicidade e quantidade respeitáveis, oferto-vos, sem comentários de grande, alguns exemplos retirados destas quatro antologias de novos talentos ou de outros valores mais ou menos reconhecidos na cena local, ainda que dentro de um certo círculo "alternativo". A influência das artes visuais ou de um novo tipo de produção faz-se cada vez mais notar nesta nova leva de autores, conforme mesmo os mais incautos se aperceberão com estas imagens...
Existem várias publicações já traduzidas em inglês ou francês sobre a banda desenhada do País Eremita, e cada vez mais traduções de trabalhos individuais em várias línguas acessíveis (inclusive o português), mas estas antologias "jjang" (cool) são fresquinhas...
Majjiké-tesê-ô! (bom apetite)
Capas:
1. "Bullta-nen Manhwa-Tcheck"/"Banda desenhada em chamas" (um segundo título em inglês, por alucinação fonética, diz Budddha is Manhwa): antologia de bandas desenhadas e ilustrações, inclusive alguns trabalhos académicos, de autores jovens, sem quaisquer regras temáticas ou formais. O livro assume-se como uma escolha editorial do que julgam o melhor dos últimos tempos. (a cores)
2. "Rimite-de Edition"/"Edição-limite": idêntico ao anterior, agrupando estudantes de vários cursos de banda desenhada de todo o país, mas cumprindo objectivos mais narrativos, classicizantes e bem mais próximos de buscas análogas de movimentos japoneses congéneres (veja-se Error. p. ex., um artigo meu na Niji). (a cores)
3. "Dó Chôen Bang-Hwyang"/"A melhor direcção": igualmente antologia de novos artistas, do grupo Anazo ("abraça-me"), do Departamento de Filme, TV & Multimedia da Korea National University of Arts, apresentando uma escolha que revela maiores procupações de inventiva formal e mesmo influências mais nítidas da experimentação gráfica artística. É deste livro que se retiraram os exemplos a cores incluídos em baixo , o primeiro de uma história intitulada Strawberry Overeat, de Yoo, Chang-woon, que me recorda, em vários aspectos, o trabalho de banda desenhada O Pinguim Blindado, do artista plástico português Eduardo Batarda; e o segundo de Dorothy Frankestein, um exercício de recriação pop de referências sobejamente conhecidas (remetendo a Junko Mizuno, por exemplo), de Lee, Son-Hwo. (a cores)
Se uno estas três primeiras antologias, é porque todas elas recebem um subsídio regular do Korea Cartoon Information Archive.
4. "Sé Manhwa Tcheck"/"Livro de nova banda desenhada": esta antologia já reúne trabalhos de artistas sul-coreanos mais famosos no burgo, como Lee, Kyung-suk e Kwon, Yong-deuk, e ainda autores estrangeiros, entre os quais os japoneses Yoshihiro Tatsumi e Hanawa Kazuichi (e tendo em conta a história recente destes dois países vizinhos e as suas relações contemporâneas culturais, é um gesto muito significativo e inaugural), e ainda Sammy Harkham e Ludovic Deboerme. É dessa antologia que são apresentados os exemplos a preto e branco. O primeiro é Dezanove, de Ancco, artista feminina e que lembrará muita da banda desenhada norte-ameriana contemporânea que trata do crescimento, da entrada na maturidade, nas crises de amor e escolares típicas da idade, conformadas à cultura em questão. O segundo é da história A história da minha mãe, de Kim, Eun-sung, que recordará quase toda a gente, até mesmo pelo tema, o tratamento, já para não falar do estilo gráfico, de Marjane Satrapi. (a preto e branco)
Buja's Diary. Seyeong O (NBM)
A tradição literária mais vetusta e respeitada, muito particular na Coreia, e contrastando com os vizinhos China e Japão, é a dos contos curtos, por oposição ao romance, forma que somente hoje começa a criar os seus vultos nas letras desse país (existindo muitos prémios, o mais prestigiante e “literário” sendo o Yi Ssang, este também um dos mais impressionantes autores modernos, senão modernistas, da Coreia). Essa especificidade cultural terá as suas repercussões noutros modos de produção cultural, sendo a banda desenhada talvez aquele em que isso mais se sente, ou pelo menos é mais visível.
Para além disso, é de sublinhar que a esmagadora maioria das letras coreanas, sendo produzida num país que se auto-assume como “sofrido” e “emocional”, não será surpreendente notar como os géneros mais cultivados da literatura são o realismo, sob todos os seus domínios: sobretudo aquele em que as relações pessoais (familiares, amorosas, profissionais) retratadas servem de metonímia às mesmas paixões e crises do povo em geral, ou do país.
Este livro reúne vários contos curtos de Seyong O (ou Oh, Se-Yong) dessa veia literária. Seguindo um realismo gráfico, o autor revela uma grande preocupação por fazer representar pormenores geográficos, sociais, de vestuário ou de comportamentos, que revelem todo o peso herdado da história sobre as personagens em questão. O lenço na cabeça para prender os cabelos do protagonista de Observe, os óculos amarrados de Ahn em The Real Estate Agency, a boca permanentemente aberta de Shim em Cockfight, são aoenas alguns exemplos.
O realismo metafórico de que falei não atravessa o género a que se dá o nome de “realismo mágico”, mas não impede que não se beba de tradições do fantástico popular, das lendas locais, dos sistemas de crença particulares desta cultura: veja-se The Snake-Catcher Brother’s Dream, por exemplo, ou a presença dos feriados, dos significados dos gestos e dos animais e dos jogos para a “boa sorte” e para os “dias aziagos” ao longo de todos os relatos. Já o processo de metonimização para discutir a história mais recente da(s) Coreia(s), os exemplos de The Little Alley Watcher, Fire, The Secret of the Old Leather Pouch são os mais, digamos, evidentes, se bem que todos e quaisquer dos contos possua ecos das crises que ainda hoje subsistem e são tão centrais para a definição do país e dos seus cidadãos. Essa oscilação nota-se também na inclusão ou exclusão de cenários e na multiplicidade de estratégias organizativas das pranchas, do modo como as vinhetas se instalam na página, etc.
O realismo gráfico de que falei tem algumas excepções, presentes em parêntesis desse realismo, em expressões hiperbolizadas, em “truques” – que apenas não se podem chamar de chibi por não estar a “cumprir” as “regras” da mangá; aliás, esta banda desenhada em particular está mais próxima de uma influência chinesa (Hong Kong) que qualquer outra coisa e bebe muito de mestres realistas coreanos, os quais, tal como se passou em Portugal, criaram muita banda desenhada de adaptação de clássicos ou da História, deixando às novas gerações outros caminhos mais pessoais. Oh, a meu ver, encontra-se a meio caminho desse processo ainda em curso.
A banda desenhada na Coreia do Sul tem uma grande variedade e uma cada vez maior produção (tal como acontece no cinema), e é mais recentemente que tem atingido níveis de sofisticação que poderão apelar a um público ora mais vasto – através dos títulos mais comerciais de manhwa (que não é mais do que “banda desenhada”/”mangá” em coreano) que vão sendo traduzidos por editoras europeias, brasileiras e norte-americanas – ora mais discernível – através de publicações menos visíveis, decerto, mas não menos prestigiantes, ou da troca de informação por outros canais. Se bem que a experimentação gráfica e formal exista nalguns sectores da banda desenhada coreana a grande força está no que já existe como tradução, conforme foi dito: o realismo social, o foco na realidade de todos os dias, uma revisitação das crises herdadas de um século XX que não foi de todo fácil para este país (o colonialismo japonês que foi assumindo contornos cada vez mais brutais até à Segunda Grande Guerra, esse conflito, o facto de se ter tornado no palco da primeira “guerra por procuração” da História entre os Estados Unidos e a União Soviética, a divisão cruel do país, a permanente imposição política e social de regimes militares, as dores de parto de uma economia de mercado cheia de êxitos materiais mas uma débil evolução humana...). Essa atenção não deixa de ter tons “esquerdistas” que não são muito bem-vindos na voz pública coreana (do sul): ser-se comunista é algo ainda hoje “de temer”, e só aos poucos as vozes contestatárias começam a ter presença não só nos conflitos a que assistimos na televisão como se de uma anedota se tratasse, mas também noutros sectores, sobretudo criativos. A banda desenhada, não estando no pelotão da frente, não deixa de participar dessa pequena dissidência da hegemonia existente. Estes curtos contos têm o dom de abarcar todas as pequenas divisões existentes na sociedade coreana: os conflitos de gerações (bem mais radicais que os verificados entre nós, por exemplo), o afastamento das pessoas das suas terras natais (agora na Coreia do Norte), as disparidades sociais entre os que ficaram pobres ou nunca deixaram de o ser e os sempre ricos ou recentemente enriquecidos, e o desprezo de uns pelos outros, a falta de solidariedade dos sofridos, ou a existência dela, a permanente indecisão entre manter valores o mais tradicionais, terra-a-terra, nacionais possível e a “inexorável marcha dos tempos”, como se costuma dizer... Cada uma das histórias permitiria desenvolver discussões sobre esses temas em particular, cada uma delas apresentando uma complexa posição em relação a uma complexa situação desde logo. Algumas dessas implicações são apresentadas no curto mas excelente ensaio sobre estas histórias que se encontra no fim do livro, escrito por Han Chang-Hwa, um jovem crítico, profissional e professor de banda desenhada, que pugna pela abertura da bd sul-coreana ao mundo e do mundo à bd sul-coreana.
Todavia, e sabendo que incorrendo no perigo de reduzir qualquer cultura a um símbolo (sempre oco), poder-se-ia dizer que a Coreia é uma espécie de Janus, com um rosto permanentemente em lágrimas olhando o passado e cumprindo todos os rituais culturais que lhe são próprios, como bolsas de resistência às outras culturas que lhe são impostas (japonesa, antes, norte-americana, ou pior, da “civilização moderna”, agora), e um outro, meio apático, meio curioso, atento a tudo o que se vai transformando em novidade aceitável e imediatamente aplicável.
Existem artistas sul-coreanos de uma nova geração que pugnam por trabalhos mais... estéticos, ou formais, ou experimentais (take your pick), outros que preferem trabalhar nas fórmulas mais comerciais e consensuais, seguras, junto a um público mais conservador (nisto estamos igual por aqui). Estas histórias de Oh, Se-Yong parecem representar esse Janus na perfeição.
Nota: apenas a título de ilustração sobre a banda desenhada contemporânea sul-coreana, veja-se este post.
Ups! 3. AAVV (Aquilo Teatro)
Já falei sobre este fanzine neste blog, e remeto-vos a esse texto, nas quais as descrições formais e de intuitos centrais se mantêm neste terceiro número. A convivência dos trabalhos mais díspares, quer em termos de meio, de linguagem ou de aproximação, tornam esta publicação, tais como a Cospe Aqui, a Venham Mais Cinco, ou outras, em objectos muito curiosos e salutares sobre uma espécie de democracia criativa. No caso da Ups!, porém, o campo de criatividade é bem mais alargado, não se cingindo à banda desenhada (uma da Teresa Pestana, de quem já não ouvia há muito), à ilustração (por ela mesma), ou à “intervenção gráfica” (um nome que serve de saco para aquilo para o qual não temos nome próprio...), surgindo colagens, autocolantes, fotografia, fotografia documental de performances e espectáculos (ora com legendas ora sem quaisquer explicações de maior), poesia, prosa (inclusive um descartável-desdobrável), num culto às artes que oscilam entre produções ditas marginais – isto é, não-conformes a discursos mais institucionalizados e dentro das expectativas normalizadas de cada m, mas sem com isso querer dizer que não caem noutro tipologias, precisamente a da “marginalidade assumida” – e as mais consensuais escolhas estéticas, que se relacionarão tanto com academismos como com as fórmulas de sucesso da arte contemporânea. Precisamente como a Cospe Aqui, se bem que com valências diferentes, também a Ups! trabalha como uma espécie de resposta “fora do território” a um território outro, mais amplo (?), das artes contemporâneas.
O diálogo que estabelece com esse território, com os territórios mais restritos do fanzínico, ou com o das publicações (in)dependentes – a ligação ao Aquilo Teatro aponta a uma vertente institucionalizadora do discurso, mesmo que este se mantenha “alternativo” – torna a Ups!, como sempre, num objecto digno da atenção daqueles que prezam, acima de tudo, a liberdade de se dizer aquilo que se deseja, independentemente dos consensos que jamais se encontram.