Depois das duas primeiras grandes aventuras (a do feudo entre o Professor Moriarty e Fu Manchu e a da “invasão marciana”), apercebemo-nos de que a Liga se havia desfeito, desligado dos seus superiores, e que as personagens principais, Mina Harker e Allan Quartermain, estão agora (uma Inglaterra paralela, ficcional, da década de 1950) de volta para reaverem o titular “Dossier Negro”, onde constam documentos que recontam todas as informações referentes à Liga, ou melhor, às Ligas, as quais, também descobrimos, afinal existia há já séculos antes da que julgávamos a “primeira”, sendo a primeira fundada por Prospero (de Shakespeare). Este volume, portanto, serve com uma espécie de reescrever da história anteriormente conhecida, mergulhando ainda mais na ficção (dita) universal, para tornar a malha referida ainda mais diminuta e coesa. Mais, existem “contra-ligas”, duas versões, francesa [procurem os dois volumes Shadowmen, de Jean-Marc e Randy Lofficier, para ainda mais uma peça...] e alemã, de arqui-inimigos, que ainda tornam esta dança de torsões, reinvenções e jogos especulares ainda mais entretidos e interessantes. Estou em crer que o próprio território da banda desenhada, mormente da variedade dos super-heróis, é intrinsecamente de desconstrução contínua, e Moore não mais fez do que aumentar exponencialmente a velocidade do que já acontecia. Fica aqui anotado, pour prendre date, mas para desenvolver mais tarde... E, já agora, como mote a um desafio [vem em baixo].
De um modo idêntico àquele que Moore havia explorado em Watchmen e nos anteriores volumes de League, para além da aventura central apresentada em banda desenhada, de um modo mais ou menos clássico e regular (para melhor distinção com a parte final, muito devedora a McKay), o próprio dossier ganha corpo e presença no livro, e acedemos aos documentos do mesmo através da sua aparição sob a forma de uma edição original de uma peça (perdida) de Shakespeare, artigos escritos por Aleister Crowley, uma nova versão de Fanny Hill (contada pela própria e aqui apresentada num papel mais grosso que o restante), caricaturas à la Cruikshank, uma “Tijuana Bible” do regime do Grande Irmão orwelliano, um excerto de uma novela beat (escrita pelo narrador do famosíssimo livro de Kerouac), e postais de muitos lugares-que-nunca-foram. Apenas lendo, e com atenção, essas outras narrativas, é que atingimos um ponto (e, como vimos, nem sempre suficientes para tecer a malha na sua completude) onde desvendamos toda a trama. Há mesmo informações que não são desvendadas na “banda desenhada”, mas nesses outros canais de informação: por exemplo, como é que Harker e Quartermain parecem tão jovens apesar de deverem parecer muito mais velhos, senão mesmo mortos.
Alan Moore tem uma capacidade olímpica de tecer estas tapeçarias monumentais a partir de borbotos catados um pouco por todo o lado. Existem muitos outros autores a fazerem exercícios similares, de revisitação, reemprego e revitalização de personagens de um imaginário perdido, uns com grande felicidade autoral e criativa, como Warren Ellis [também *] e a série Planetary (com John Cassiday), outras a atingirem estranhos limiares (penso em Wisdom, de Paul Cornell e Trevor Hairsine), outros ainda para apenas elaborarem clichés cansados de erro e redenção (penso sobretudo em Agents of Atlas, de Jeff Parker et al.). Moore acaba por elaborar as suas ficções de um modo tão coeso e tão elaborado que uma sua primeira leitura acaba por se revelar quase como seca, maçuda, enfim, verdadeiramente indigesta: é demais. Por isso, uma sua leitura pausada, ritmada com pesquisas externas, confronto com as fontes originais, acaba por se revelar como a melhor forma de degustar esta obra. Georges Steiner disse que os clássicos se devem ler com um lápis na mão. É cedo demais para nos apercebemos se Black Dossier constará dessa elite de obras, mas não podemos escapar à imediata sensação de que ela nos obriga a nos munirmos com um lápis para a poder desbravar e, com essa acção, reconstruí-la com esse poder, como disse, monumental.
Mas que desejará Moore monumentalizar?
O livro termina com um discurso de despedida de Prospero, muito similar ao da mesma personagem na peça A Tempestade. Curiosamente, há aqui um fortíssimo paralelo quer com a peça de Shakespeare, uma vez que esse epílogo quase serve de fecho igualmente à própria escrita do bardo inglês (seria a última peça, o último texto), quer com a conclusão da série The Sandman, de Gaiman, que também termina com esse epílogo. No entanto, se na peça o texto é uma despedida das artes arcanas da parte do mago, e em The Sandman é o próprio Shakespeare a despedir-se do seu pacto com o senhor dos Sonhos, em Black Dossier o tom é bem mais positivo, uma espécie de elegia à imaginação. É bem possível que as palavras de Prospero (aqui) sejam as de Moore ele-mesmo.
Alan Moore tem uma capacidade olímpica de tecer estas tapeçarias monumentais a partir de borbotos catados um pouco por todo o lado. Existem muitos outros autores a fazerem exercícios similares, de revisitação, reemprego e revitalização de personagens de um imaginário perdido, uns com grande felicidade autoral e criativa, como Warren Ellis [também *] e a série Planetary (com John Cassiday), outras a atingirem estranhos limiares (penso em Wisdom, de Paul Cornell e Trevor Hairsine), outros ainda para apenas elaborarem clichés cansados de erro e redenção (penso sobretudo em Agents of Atlas, de Jeff Parker et al.). Moore acaba por elaborar as suas ficções de um modo tão coeso e tão elaborado que uma sua primeira leitura acaba por se revelar quase como seca, maçuda, enfim, verdadeiramente indigesta: é demais. Por isso, uma sua leitura pausada, ritmada com pesquisas externas, confronto com as fontes originais, acaba por se revelar como a melhor forma de degustar esta obra. Georges Steiner disse que os clássicos se devem ler com um lápis na mão. É cedo demais para nos apercebemos se Black Dossier constará dessa elite de obras, mas não podemos escapar à imediata sensação de que ela nos obriga a nos munirmos com um lápis para a poder desbravar e, com essa acção, reconstruí-la com esse poder, como disse, monumental.
Mas que desejará Moore monumentalizar?
O livro termina com um discurso de despedida de Prospero, muito similar ao da mesma personagem na peça A Tempestade. Curiosamente, há aqui um fortíssimo paralelo quer com a peça de Shakespeare, uma vez que esse epílogo quase serve de fecho igualmente à própria escrita do bardo inglês (seria a última peça, o último texto), quer com a conclusão da série The Sandman, de Gaiman, que também termina com esse epílogo. No entanto, se na peça o texto é uma despedida das artes arcanas da parte do mago, e em The Sandman é o próprio Shakespeare a despedir-se do seu pacto com o senhor dos Sonhos, em Black Dossier o tom é bem mais positivo, uma espécie de elegia à imaginação. É bem possível que as palavras de Prospero (aqui) sejam as de Moore ele-mesmo.
Emprestando algumas das palavras que Jan Švankmajer, o mestre checo da animação, empregou para explicar o seu próprio trabalho, e que consciente e directamente se incluía na escola do Surrealismo – entendendo esta como um movimento alargado que segue alguns princípios comuns e não como um mero e vago descritivo, usado hoje a torto e a direito, as mais das vezes sem acuidade nem pertinência – existem actividades humanas que ultrapassam a actividade conhecida como arte (já de si e em si múltipla). O que interessava a Švankmajer era a imaginação e não a arte, o que depreende uma importante distinção, devolvendo a imaginação à esfera de todos os seres humanos e todas as suas acções, e não apenas àquela capacidade que socialmente se aceita como sendo superior de algum ponto de vista (material, espiritual, económico, referencial, estético, etc.). Imaginação aqui tem de ser entendido da forma mais profunda e séria possível, e não somente nos contentarmos com o seu uso banal de todos os dias. Quando se diz que alguém tem uma “imaginação prodigiosa” ou “fantástica”, são raras as vezes que também essa palavra esteja a ser utilizada na sua propriedade; o que querem com isso dizer é somente uma capacidade, normalmente transmitida através de uma qualquer expressão artística, de fantasiar. Mas a imaginação é uma faculdade humana cuja etimologia explica quase cabalmente: imaginare, em latim, significa a capacidade de representar, de forma uma imagem, uma faculdade mental de formar, engendrar, combinar, desenvolver imagens. Esta faculdade é partilhada por todos os seres humanos, sem excepção, e a diferenciação apenas começa nas formas socializadas em como ela é utilizada, canalizada, até permitida e, finalmente, expressa. Os sonhos já foram mais “levados a sério”, como contendo significados reais no mundo tangível; hoje são apenas relegados, se tanto, à esfera do Inconsciente, dos “significados ocultos”, etc., mas não é aceite à luz do dia, da razão, da lógica social, que eles sejam uma forma de engendrar formas e imagens que tenham direito à cidadania do sentido como têm as obras de arte (aceites como tal). Existem outras esferas, mas deixemo-los por agora. A questão é entender que a imaginação é um território vastíssimo que apenas ganha corpo no mundo numa fracção menor, negociada conforme a sociedade – e a sua mentalidade – em que se encontra. Moore revela, continuamente, estar também interessado em todo esse continente, e não apenas nas pequenas docas a que nos permitimos aportar.
Ainda seguindo as pistas de pensamento de Švankmajer, chegamos a um modo de trabalhar as imagens a que se poderá propor a palavra (já utilizada por outros) de arcimboldiano (do famoso pintor italiano do século XVI, Giuseppe Arcimboldo), que consiste em acumular objectos ou díspares entre ou unidos por um qualquer princípio numa mancha que, na sua súmula, assume uma forma concreta (as mais das vezes, humana). Não será esse também o princípio de construção de Moore? Afinal, ele não apenas desconstrói mas, reutilizando elementos e partes de toda uma série de criações anteriores (talvez aquelas partes de que nos lembramos, os restos que ficam redivivos na mente, já que jamais nos recordamos das obras na sua totalidade coesa), forma uma nova criação, uma nova criatura. Teríamos que praticamente citar todos os seus títulos para ilustrar esta ideia. Todavia, sobretudo aquelas onde confluem estas ideias numa noção concreta, que ganha o carácter de um espaço narrativo. Por exemplo, o conceito de “Supremacy” na série Supreme (de resto, precisamente o tipo de limbo editorial que existe com os paradoxais acatamentos e cortes em relação à “continuidade” de cada universo narrativo-comercial – o da DC, o da Marvel, etc. – e para onde são atirados todos os “restos”, a aproveitar mais tarde ou não), da “Immateria” da Promethea, a Neopolis e a sua “Transworld Station” de Top Ten, a estranha quarta dimensão (baseada nos escritos de Charles Howard Hinton, citado textualmente) em From Hell, e que ajuda William Gull a viajar ao futuro e para além da esfera da Londres terrena. Esse espaço da imaginação seria como que uma dimensão ou um plano maior, superior à nossa, na qual existirão todas essas formas imaginárias (no sentido agora de “imaterial”). De quando em vez, graças aos poderes inerentes aos criadores ou à vontade dos seres dessa dimensão, ocorre um trânsito, provocando a inscrição de imagens no nosso mundo. Todavia, uma vez que essa é uma dimensão maior, essas mesmas existências apenas podem penetrar o nosso espaço euclidiano de uma forma fragmentária, ainda que nós não entendamos ser fragmentária: vemo-las, a essas formas, como completas, como formas da imaginação. Alan Moore tenta demonstrar como essas formas são, portanto, fragmentos de um tecido (i.e., texto-textura, de textere) mais amplo, desdobrando-o em toda a sua glória. (essa ideia de território-depositório/reservatório é também seguida por Morrison – recordemo-nos do “Comic Book Limbo” em Animal Man – e Neil Gaiman – todo reino de Morfeus parte deste pressuposto).
Os leitores de Moore (e de Grant Morrison, ou de outros muitos autores) conhecerão decerto as referências meio-veladas e invertidas à novela filosófico-matemática Flatland, de Edwin Abbott Abbott, e se conhecerem o terceiro livro da série de Moore e tal. 1963, com a história do Hypernaut a cruzar-se com uma criatura da 4ª Dimensão, saberão identificar de uma forma simples em como essa associação não é de todo casual. E que melhor maneira de fazer representar, como indicaram alguns dos leitores de Black Dossier, a entrada de criaturas da terceira dimensão na quarta do que introduzir a terceira dimensão num meio de representação, a banda desenhada, que emprega duas? A técnica da 3D (do artista Ray Zone, que já havia participado em outros projectos idênticos) e todo o ritual e estranhamento que implica (os óculos que vêm com o livro têm um “terceiro olho”) pretende ser assim uma representação, fragmentária, claro, do que será o acesso a essa outra divisão superior da existência. Adenda: de todo o modo, já Baudelaire havia dito o mesmo, por outras palavras, mais atentas: "A imaginação não é a fantasia... A Imaginação é uma faculdade quasi-divina que se apercebe...da relações íntimas e secretas das coisas, das correspondência e das analogias".
Ainda seguindo as pistas de pensamento de Švankmajer, chegamos a um modo de trabalhar as imagens a que se poderá propor a palavra (já utilizada por outros) de arcimboldiano (do famoso pintor italiano do século XVI, Giuseppe Arcimboldo), que consiste em acumular objectos ou díspares entre ou unidos por um qualquer princípio numa mancha que, na sua súmula, assume uma forma concreta (as mais das vezes, humana). Não será esse também o princípio de construção de Moore? Afinal, ele não apenas desconstrói mas, reutilizando elementos e partes de toda uma série de criações anteriores (talvez aquelas partes de que nos lembramos, os restos que ficam redivivos na mente, já que jamais nos recordamos das obras na sua totalidade coesa), forma uma nova criação, uma nova criatura. Teríamos que praticamente citar todos os seus títulos para ilustrar esta ideia. Todavia, sobretudo aquelas onde confluem estas ideias numa noção concreta, que ganha o carácter de um espaço narrativo. Por exemplo, o conceito de “Supremacy” na série Supreme (de resto, precisamente o tipo de limbo editorial que existe com os paradoxais acatamentos e cortes em relação à “continuidade” de cada universo narrativo-comercial – o da DC, o da Marvel, etc. – e para onde são atirados todos os “restos”, a aproveitar mais tarde ou não), da “Immateria” da Promethea, a Neopolis e a sua “Transworld Station” de Top Ten, a estranha quarta dimensão (baseada nos escritos de Charles Howard Hinton, citado textualmente) em From Hell, e que ajuda William Gull a viajar ao futuro e para além da esfera da Londres terrena. Esse espaço da imaginação seria como que uma dimensão ou um plano maior, superior à nossa, na qual existirão todas essas formas imaginárias (no sentido agora de “imaterial”). De quando em vez, graças aos poderes inerentes aos criadores ou à vontade dos seres dessa dimensão, ocorre um trânsito, provocando a inscrição de imagens no nosso mundo. Todavia, uma vez que essa é uma dimensão maior, essas mesmas existências apenas podem penetrar o nosso espaço euclidiano de uma forma fragmentária, ainda que nós não entendamos ser fragmentária: vemo-las, a essas formas, como completas, como formas da imaginação. Alan Moore tenta demonstrar como essas formas são, portanto, fragmentos de um tecido (i.e., texto-textura, de textere) mais amplo, desdobrando-o em toda a sua glória. (essa ideia de território-depositório/reservatório é também seguida por Morrison – recordemo-nos do “Comic Book Limbo” em Animal Man – e Neil Gaiman – todo reino de Morfeus parte deste pressuposto).
Os leitores de Moore (e de Grant Morrison, ou de outros muitos autores) conhecerão decerto as referências meio-veladas e invertidas à novela filosófico-matemática Flatland, de Edwin Abbott Abbott, e se conhecerem o terceiro livro da série de Moore e tal. 1963, com a história do Hypernaut a cruzar-se com uma criatura da 4ª Dimensão, saberão identificar de uma forma simples em como essa associação não é de todo casual. E que melhor maneira de fazer representar, como indicaram alguns dos leitores de Black Dossier, a entrada de criaturas da terceira dimensão na quarta do que introduzir a terceira dimensão num meio de representação, a banda desenhada, que emprega duas? A técnica da 3D (do artista Ray Zone, que já havia participado em outros projectos idênticos) e todo o ritual e estranhamento que implica (os óculos que vêm com o livro têm um “terceiro olho”) pretende ser assim uma representação, fragmentária, claro, do que será o acesso a essa outra divisão superior da existência. Adenda: de todo o modo, já Baudelaire havia dito o mesmo, por outras palavras, mais atentas: "A imaginação não é a fantasia... A Imaginação é uma faculdade quasi-divina que se apercebe...da relações íntimas e secretas das coisas, das correspondência e das analogias".
Contudo, esta Imaginação não ganha forma apenas através das imagens, mas igualmente através das palavras. A entrada visual no Blazing World (outra referência literário-filosófica) faz-se através de um voo de balão numa página dupla, pejada de referências (que mais uma vez o site de Jess Nevins ajuda a desvendar, e a que eu acrescento a chegada de Nemo e os seus companheiros a Nova Iorque após a aventura em Marte), sendo a mais importante os vários arcos que servem de fundo, e os quais parecem mimar o entendimento e representação cabalísticos de um Robert Fludd, apenas uma das muitas formas de sublinhar, uma vez mais, a ideia de um universo constituído por diversas camadas, empilhadas e sucessivamente mais complexas.
Já a penetração da linguagem estranhada faz-se de modos mais ou menos subtis. A personagem que responde pelo nome de Flashing Monsignor (baseada numa personagem de livros infantis da passagem do século XIX para o XX chamada Golliwog, e muito marcada pelos preconceitos rácicos que existiam patentes então) fala de uma maneira surpreendente que me recorda três linhas de associação: duas ao universo da banda desenhada, através dos sons guturais e indefinidos do Imp (outra caricatura que seria hoje considerada racista) do Little Nemo, e dos palrares temperados dos habitantes do Coconino County de Krazy Kat; a outra pela literatura, sobretudo os vórtices linguísticos de Finnegans Wake de James Joyce. Algumas das palavras são identificáveis, como “Tharblo” que servirá para “Thar she blows” (o famoso grito aquando se avista uma baleia, mas que curiosamente não existe no Moby Dick de Melville), outras remetem para um imagem, lá está, imediatamente entendível mas difícil de explicitar, como “panculiar” ou “selfsum” como neologismos por composição que representarão uma situação mais complexa que a das duas palavras separadas... Esta liberdade da linguagem parece servir de contra-ponto ideal para a sua restrição anterior, como era prevista na “Newspeak” empregue no início do livro e nalguns dos documentos apresentados, e de que a Inglaterra ficcional de que se tinha emergido (esta é a linguagem não só simplificada como mortificada do regime do Grande Irmão em 1984, de Orwell). As referências neste Blazing World sucedem-se, quer no combate entre Engelbrecht (personagem de Maurice Richardson, e cujo nome traduzido literalmente significaria “Quebrador de Anjos”, recordando um papel invertido de Jacob/Israel?) e a Poesia, a presença de Gulliver (cujas aventuras o levaram à academia de Lagado, em Balnibarbi – capítulo 5 da parte 3 - , onde se discutem maneiras de “simplificar” a linguagem), e a de Ariel e Calibão, acólitos distintos de Prospero, e que assumem cada um um modo também distinto de entender a linguagem (a grande frase de Calibão é “You taught me language, and my profit on it is I know how to curse”). E ainda algumas personagens se referem ao modo de se falar “para trás” (Mary Poppins fá-lo na breve cena em que participa) daqueles que vêm dessas dimensões superiores. A ideia com que se fica, portanto, é de que esses vários estranhamentos internos da linguagem, mas positivos, “crescendos”, são uma forma de permitir que os “sonhos” e “fantasias”, que Prospero indica, desses outros planos se introduzam para o nosso mundo.
Será mais que óbvio que o cruzamento destas duas linguagens que se coligam entre si nas suas potências supradimensionais e onde ambas drenam essa imensa fonte se coaduna na perfeição com a natureza da banda desenhada. Moore explora continuamente esta possibilidade, talvez em Promethea do mais acabado modo, e com The Birth Caul e Snakes and Ladders (performance musical/spoken word/banda desenhada) explorado em direcções mais flutuantes. Mais, em várias entrevistas Alan Moore mostra o seu desagrado em como o seu trabalho de desconstrução dos superheróis e de outros clichés da banda desenhada (Watchmen, Miracleman, V for Vendetta) acabariam por desencadear um rol de cada vez mais negras criações (de que Rob Liefeld, Todd McFarlane, Jim Lee e até mesmo Frank Miller seriam altos mas, nada paradoxalmente, paupérrimos exemplos) e como pretendeu resolver e inverter essa mesma situação através da criação de obras “positivas”, nas quais se inscrevem Supreme, Top Ten, Promethea e, até um certo ponto, The League... Moore (e Morrison, ainda que o autor escocês de uma outra perspectiva) acreditam na potencialidade da banda desenhada como um efectivo instrumento de pensamento e do seu descerrar (dos limites) e abertura (para o imenso continente).
Um outro aspecto destas associações, dos blocos fragmentários retirados de outros domínios ficcionais para uma só soberania, eleva-os a todos a um fundo comum (um intertexto para criar um contexto), que é, finalmente, aquilo que penso Moore quer monumentalizar. São vários os nomes que se poderiam dar a esse fundo. Literatura Ocidental (mormente inglesa, claro está) é eventualmente um deles. Diz-se que uma vez perguntaram a Ghandi o que é que achava da Civilização Ocidental. Ele respondeu que seria uma ideia maravilhosa (parece que não é apócrifa esta anedota). Moore segue essa resposta e age como se existisse esse contínuo, maravilhoso.
Já a penetração da linguagem estranhada faz-se de modos mais ou menos subtis. A personagem que responde pelo nome de Flashing Monsignor (baseada numa personagem de livros infantis da passagem do século XIX para o XX chamada Golliwog, e muito marcada pelos preconceitos rácicos que existiam patentes então) fala de uma maneira surpreendente que me recorda três linhas de associação: duas ao universo da banda desenhada, através dos sons guturais e indefinidos do Imp (outra caricatura que seria hoje considerada racista) do Little Nemo, e dos palrares temperados dos habitantes do Coconino County de Krazy Kat; a outra pela literatura, sobretudo os vórtices linguísticos de Finnegans Wake de James Joyce. Algumas das palavras são identificáveis, como “Tharblo” que servirá para “Thar she blows” (o famoso grito aquando se avista uma baleia, mas que curiosamente não existe no Moby Dick de Melville), outras remetem para um imagem, lá está, imediatamente entendível mas difícil de explicitar, como “panculiar” ou “selfsum” como neologismos por composição que representarão uma situação mais complexa que a das duas palavras separadas... Esta liberdade da linguagem parece servir de contra-ponto ideal para a sua restrição anterior, como era prevista na “Newspeak” empregue no início do livro e nalguns dos documentos apresentados, e de que a Inglaterra ficcional de que se tinha emergido (esta é a linguagem não só simplificada como mortificada do regime do Grande Irmão em 1984, de Orwell). As referências neste Blazing World sucedem-se, quer no combate entre Engelbrecht (personagem de Maurice Richardson, e cujo nome traduzido literalmente significaria “Quebrador de Anjos”, recordando um papel invertido de Jacob/Israel?) e a Poesia, a presença de Gulliver (cujas aventuras o levaram à academia de Lagado, em Balnibarbi – capítulo 5 da parte 3 - , onde se discutem maneiras de “simplificar” a linguagem), e a de Ariel e Calibão, acólitos distintos de Prospero, e que assumem cada um um modo também distinto de entender a linguagem (a grande frase de Calibão é “You taught me language, and my profit on it is I know how to curse”). E ainda algumas personagens se referem ao modo de se falar “para trás” (Mary Poppins fá-lo na breve cena em que participa) daqueles que vêm dessas dimensões superiores. A ideia com que se fica, portanto, é de que esses vários estranhamentos internos da linguagem, mas positivos, “crescendos”, são uma forma de permitir que os “sonhos” e “fantasias”, que Prospero indica, desses outros planos se introduzam para o nosso mundo.
Será mais que óbvio que o cruzamento destas duas linguagens que se coligam entre si nas suas potências supradimensionais e onde ambas drenam essa imensa fonte se coaduna na perfeição com a natureza da banda desenhada. Moore explora continuamente esta possibilidade, talvez em Promethea do mais acabado modo, e com The Birth Caul e Snakes and Ladders (performance musical/spoken word/banda desenhada) explorado em direcções mais flutuantes. Mais, em várias entrevistas Alan Moore mostra o seu desagrado em como o seu trabalho de desconstrução dos superheróis e de outros clichés da banda desenhada (Watchmen, Miracleman, V for Vendetta) acabariam por desencadear um rol de cada vez mais negras criações (de que Rob Liefeld, Todd McFarlane, Jim Lee e até mesmo Frank Miller seriam altos mas, nada paradoxalmente, paupérrimos exemplos) e como pretendeu resolver e inverter essa mesma situação através da criação de obras “positivas”, nas quais se inscrevem Supreme, Top Ten, Promethea e, até um certo ponto, The League... Moore (e Morrison, ainda que o autor escocês de uma outra perspectiva) acreditam na potencialidade da banda desenhada como um efectivo instrumento de pensamento e do seu descerrar (dos limites) e abertura (para o imenso continente).
Um outro aspecto destas associações, dos blocos fragmentários retirados de outros domínios ficcionais para uma só soberania, eleva-os a todos a um fundo comum (um intertexto para criar um contexto), que é, finalmente, aquilo que penso Moore quer monumentalizar. São vários os nomes que se poderiam dar a esse fundo. Literatura Ocidental (mormente inglesa, claro está) é eventualmente um deles. Diz-se que uma vez perguntaram a Ghandi o que é que achava da Civilização Ocidental. Ele respondeu que seria uma ideia maravilhosa (parece que não é apócrifa esta anedota). Moore segue essa resposta e age como se existisse esse contínuo, maravilhoso.
Desafio: propunha a que fossem apresentadas, mesclando meros prazeres juvenis de criatividade vã e algum grau de conhecimento literário e histórico nacional, Ligas de Cavalheiros (e Donas) Extraordinários portugueses... Eventualmente, as boas e pertinentes listas serão presenteadas pela sua transposição a desenhos (por artistas a convidar). Proponho, desde já, e para dar uma ajuda, a que uma Liga medieval não perdesse a presença da Besta Ladradora, e que uma que se espraiasse nos anos 20 empregasse o pobre Doutor Antena, antes da sua morte...