Poderíamos começar a perguntarmo-nos como é que Filipe Abranches se atreve a criar imagens, ilustrações, interpretações gráficas de Poe, depois de nomes tais como os de Gustave Doré, Harry Clarke, Arthur Rackham, Edmund Dulac, William Heath Robinson, depois das litografias coloridas de Federico Castellon....? A impertinência de uma atitude dessas seria imediatamente desarmada pela própria possibilidade de arrolar estes nomes em torno de interpretações visuais da prosa (e poesia) de Edgar Allan Poe, demonstrando-se ao mesmo tempo que não há como que uma opção canónica pelas quais as outras versões de deveriam pautar – um pouco como sucede em relação ao Tenniel de Alice – mas abre antes a possibilidade, ou mesmo a obrigatoriedade, de acedermos a várias versões. Às quais se juntará agora, pelo menos no nosso pequeno círculo português, de Filipe Abranches. (Mais)
28 de maio de 2009
19 de maio de 2009
FUKT # 7
Desta feita, a nota vai para a antologia de desenho contemporâneo FUKT, que já vai no seu sétimo número.
Existem cada vez mais acções que se assestam em exclusivo ao gesto do desenho, entendido quase sempre como (in)disciplina particular. Mas se Vitamin D. New Perspectives on Drawing, Drawing now: eight propositions e a recente exposição Desenhos de A a Z no Museu da Cidade apontam para uma escolha subsumida aos ditames do dito "mercado da arte" (mais ou menos intelectualizado pelos discursos da contemporaneidade, mais ou menos comercializado pelos valores de troca), e se antologias como a Rojo se preocupam mais com a concatenação de pulsões de uma cultura urbana, FUKT parece perseguir com uma maior simplicidade - e talvez com mais eficiência - o valor do desenho como forma de expressão quase exclusivamente. Isto é, não há dúvida de que um desenho é uma forma de expressão, mas as formas de expressão são normalmente acompanhadas por algo mais - um conceito, uma vontade, uma direcção, uma qualquer aquiescência para uma outra dimensão...
Em FUKT há uma energia que parece somente flutuar na expressão pura. É claro que isso é impossível. E seremos todos imediatamente capazes de associações e leituras que prendam estes desenhos e autores em tradições, linguagens específicas, buscas particulares, preocupações comuns... tipologias, axiologias, taxonomias, ontologias...
A revista é editada e coordenada por Björn Hegardt e conta com uma dezena de autores, muito diversos entre si (em termos de técnicas, origens, formações, materiais e verves) mas unidos nesta bandeira. Através do site da revista poderão descobrir toda uma rede de referências, assim como adquiri-la.
Fiz uma escolha reduzida para este post; por ordem temos aqui os desenhos de Michelle Oosterbaan (uma espécie de Hildegard von Bingen contemporânea, na qual o misticismo se forma em nuvens de lápis de cor), Martin Skauen (que recordará um perturbante taxonomista mais interessado em mutantes e teratologias), Anna Ling (que apresenta uma série de obscuros interiores, promissores de uma história que não virá) e Björn Hegardt (que opera um cruzamento entre objectos improváveis na esteira dos escritores do absurdo e do fantástico).
Nota: agradecimentos a Isabel Baraona por me ter colocado na senda da FUKT, e a Björn Hegardt pela troca.
Existem cada vez mais acções que se assestam em exclusivo ao gesto do desenho, entendido quase sempre como (in)disciplina particular. Mas se Vitamin D. New Perspectives on Drawing, Drawing now: eight propositions e a recente exposição Desenhos de A a Z no Museu da Cidade apontam para uma escolha subsumida aos ditames do dito "mercado da arte" (mais ou menos intelectualizado pelos discursos da contemporaneidade, mais ou menos comercializado pelos valores de troca), e se antologias como a Rojo se preocupam mais com a concatenação de pulsões de uma cultura urbana, FUKT parece perseguir com uma maior simplicidade - e talvez com mais eficiência - o valor do desenho como forma de expressão quase exclusivamente. Isto é, não há dúvida de que um desenho é uma forma de expressão, mas as formas de expressão são normalmente acompanhadas por algo mais - um conceito, uma vontade, uma direcção, uma qualquer aquiescência para uma outra dimensão...
Em FUKT há uma energia que parece somente flutuar na expressão pura. É claro que isso é impossível. E seremos todos imediatamente capazes de associações e leituras que prendam estes desenhos e autores em tradições, linguagens específicas, buscas particulares, preocupações comuns... tipologias, axiologias, taxonomias, ontologias...
A revista é editada e coordenada por Björn Hegardt e conta com uma dezena de autores, muito diversos entre si (em termos de técnicas, origens, formações, materiais e verves) mas unidos nesta bandeira. Através do site da revista poderão descobrir toda uma rede de referências, assim como adquiri-la.
Fiz uma escolha reduzida para este post; por ordem temos aqui os desenhos de Michelle Oosterbaan (uma espécie de Hildegard von Bingen contemporânea, na qual o misticismo se forma em nuvens de lápis de cor), Martin Skauen (que recordará um perturbante taxonomista mais interessado em mutantes e teratologias), Anna Ling (que apresenta uma série de obscuros interiores, promissores de uma história que não virá) e Björn Hegardt (que opera um cruzamento entre objectos improváveis na esteira dos escritores do absurdo e do fantástico).
Nota: agradecimentos a Isabel Baraona por me ter colocado na senda da FUKT, e a Björn Hegardt pela troca.
Ângulo Morto. João Fazenda (Ao Norte)
Esta brevíssima sere para dar conta do lançamento do quarto volume desta colecção, que temos estado a acompanhar. Desta feita, trata-se da "tradução" em banda desenhada/ilustração de Vertigo de Hitchcock por João Fazenda.
No entanto, devemos confessar que não encontramos aqui o mesmo entusiasmo na criação de imagens que julgamos pertencer ao Fazenda do terceiro volume de Loverboy (com Marte), de Tu és a mulher da minha vida, ela a mulher dos meus sonhos (com Pedro Brito), da pequena história escrita por Gonçalo M. Tavares para a antologia Movimentos Perpétuos e muitas das ilustrações no Público... Em primeiro lugar, nota-se como que uma estratégia interessante em "dobrar" o filme em dois, para que possamos acompanhar dois momentos segregados que convergirão, e serão coroados, pelas duas mortes de Madeleine/Judy, mas que a torna demasiado atreita à tradução portuguesa do filme - A mulher que viveu duas vezes (e morreu duas vezes)- e menos propensa à procura de outros elementos que poderiam servir de leit-motiv visual para a trasformação.
Algumas das imagens mostram uma soltura atrevida e livre que constrói imagens magníficas, sobretudo as de "paisagens", sejam estas as de interiores (a sala de Scottie, a florista, a Missão, o museu) ou exteriores (o parque das coníferas gigantes), mas as figuras humanas parecem demasiado controladas e como que reduzidas a meras instâncias do que tem de ser contado. E tendo em conta que são elas quem ocupam a maior parte das "cenas", as quais não sobrevivem sem que haja uma permanente rememoração do filme - caindo-se no perigo da ilegibilidade narrativa - são demasiados os "ângulos mortos" criados aqui... Não "cegos", os quais deixariam ainda a potencialidade de serem preenchidos de vários modos, meio-adivinhados, fantasmáticos; "mortos", impedindo uma reconstrução com alguma autonomia em relação ao filme que lhes deram origem.
Nota: agradecimentos ao editor, pelo envio do livro.
No entanto, devemos confessar que não encontramos aqui o mesmo entusiasmo na criação de imagens que julgamos pertencer ao Fazenda do terceiro volume de Loverboy (com Marte), de Tu és a mulher da minha vida, ela a mulher dos meus sonhos (com Pedro Brito), da pequena história escrita por Gonçalo M. Tavares para a antologia Movimentos Perpétuos e muitas das ilustrações no Público... Em primeiro lugar, nota-se como que uma estratégia interessante em "dobrar" o filme em dois, para que possamos acompanhar dois momentos segregados que convergirão, e serão coroados, pelas duas mortes de Madeleine/Judy, mas que a torna demasiado atreita à tradução portuguesa do filme - A mulher que viveu duas vezes (e morreu duas vezes)- e menos propensa à procura de outros elementos que poderiam servir de leit-motiv visual para a trasformação.
Algumas das imagens mostram uma soltura atrevida e livre que constrói imagens magníficas, sobretudo as de "paisagens", sejam estas as de interiores (a sala de Scottie, a florista, a Missão, o museu) ou exteriores (o parque das coníferas gigantes), mas as figuras humanas parecem demasiado controladas e como que reduzidas a meras instâncias do que tem de ser contado. E tendo em conta que são elas quem ocupam a maior parte das "cenas", as quais não sobrevivem sem que haja uma permanente rememoração do filme - caindo-se no perigo da ilegibilidade narrativa - são demasiados os "ângulos mortos" criados aqui... Não "cegos", os quais deixariam ainda a potencialidade de serem preenchidos de vários modos, meio-adivinhados, fantasmáticos; "mortos", impedindo uma reconstrução com alguma autonomia em relação ao filme que lhes deram origem.
Nota: agradecimentos ao editor, pelo envio do livro.
17 de maio de 2009
Démoniak. Gal Yacinthe Galbet? (Frémok)
O fascínio da personagem de Fantômas, uma das primeiras personagens, senão a genuinamente primeira, a ocupar o papel dos protagonistas da ficção “pulp” quer literária quer fílmica (ainda que a palavra esteja a ser utiliza retrospectivamente), sempre chegou perto de nomes que construíram a história da arte, seja esta entendida de modos mais espartilhados ou livres, e para que se crie uma tradição mínima, citem-se os nomes de Feuillade, de Magritte, de Julio Cortázar e da banda de Mike Patton do mesmo nome. Na década de 60, na Itália, mansão de imaginários gialli, surgiria a tipologia da banda desenhada de crime conhecida por fumetti neri, que contaria com pequenas variações do Fantômas (num encontro entre o Ladrão e o Fantasma de Lee Falk) com personagens cujos nomes, trajes e modus operandi operariam como verdadeiras variações em torno de um modelo comum. Até os nomes gravitavam em torno de um mesmo molde: Diabolik, Fantax, Fantasm, Kriminal, Satanik, Demoniak, Sadik, e outros jogos minimamente paralelos com Zakimort ou Jnfernal...
O subtítulo da publicação presente, que já em si reúne outras publicações menores, “protohistoire pour adultes” remete às publicações de foto-novelas (“photohistoires”) a preto-e-branco, de baixa qualidade (gráfica, de impressão, de complexidade narrativa, atrever-nos-emos a acrescentar artística?) que se vendiam em quiosques, ficção de estação de comboio, inclusive em Portugal e que, as mais das vezes, se faziam preencher com conteúdos eróticos e violentos. A tipologia dos fumetti referida acima era também populada por esse meio (as francesas Wampyr e Satanik tinham precisamente esse subtítulo). Uma anarquia de bolso, sem dúvida, quer quanto aos métodos quer quanto aos frutos. Seja como for, digamos que providenciava uma rebelião portátil, satisfatória por esse curto momento em que se lia e experimentava essa fantasia de poder, de crime, de incorrer nos pecados anti-sociais com que se sonhavam – acordado - mas jamais se atreveriam a ser cometidos. Poder-se-ia, rapidamente, acrescentar que existe aqui igualmente uma fantasia politicamente incorrecta, ou horrorosa, super-machista: mesmo quando as personagens se tratavam de mulheres, como Satanika e Zakimort (“heroína”, esta), trata-se de uma fantasia “de homem”. Todavia, ao mesmo tempo, há uma espécie de pulsão à qual se dá vazão com estas histórias, como se servisse de válvula de escape (escapismo?) a fantasias de violência e ódio em relação a tudo aquilo que nos pode amofinar, desde as razões egoístas às mais pertinentes.
É óbvio que, nas mãos de Magritte, de Cortázar, de Mike Patton, o paradigma de anarquismo pop a que Fantômas e a sua prole permitem atinge outra espécie de linguagens, de apropriações e de cruzamentos entre as culturas highbrow e lowbrow, apenas apreciáveis e talvez mesmo inteligíveis por quem participar, com gosto e conhecimento, em ambas, a um só tempo apercebendo-se do que as divide e da ilusão dessa mesma divisão. Este livrinho pertence à Frémok, à sua nova colecção Flore, e parece fazer parte mesmo de um grande projecto de continuação. Existe mesmo um blog específico: http://demoniak.wordpress.com/ Nenhum nome de autor é avançado, mas se os editores apontam à possibilidade de se tratar de um projecto a várias mãos, estamos em crer que Alagbé estará no centro dessa actividade, ou melhor, Gal Yacinthe Galbet (anagrama que aponta de imediato para toda uma série de associações, irónicas, com a ideia de transvestismo, disfarce, camuflagem, dissimulação, previstos em Fantômas e ca., nos anarquismos, e na “ficção de estação de comboio”).
Para além dos pressupostos editoriais, físicos e regulares desta edição – que procuram talvez uma recuperação por um certo círculo da “vanguarda da banda desenhada” por um imaginário e estratégias comerciais de baixo nível, mas que não deixam de ter uma faceta nostálgica, quiçá -, o que importa é notar como o material visual e narrativo de Mort à Babylone (o episódio de Démoniak que conseguimos ler) segue a via da apropriação. Reportagem, temas contemporâneos, notícias de última hora, colagem, transfers, trocadilhos são os elementos. O texto oscila entre o francês (a narração, algumas falas), o inglês (algumas falas) e até um finlandês “ao acaso” (algumas falas, sobretudo de Démoniak ele/ela-mesmo – o sexo é indeterminado). Podemos ler este(s) texto(s) e, até certo ponto, reconstruir um sentido linear, com um fito claro (sem perder “os próximos episódios”), mas parece-nos que os autores querem antes fabricar um sentido fantasmático. Os rostos de algumas personagens são claras referências a personagens reais que pertencem ao círculo do irreal mediático – as notícias e os filmes: John Travolta, Tom Cruise, Ingrid Betancourt, Sarkozy, Bernard Kouchner, Rumsfeld, Saddam Hussein, a princesa Diana... Como se ambos os mundos – o ficcional e o noticiado – colapsassem um sobre o outro (“finalmente?”, poderíamos perguntar, pois não é esse o objectivo de cada um à sua maneira? Qual a diferença do infotainment do noticiário da SIC das falsas notícias que se espalham pelas inúmeras séries televisivas? E não querem muitos dos filmes “baseados em factos reais” fazer espraiar-se uma perspectiva sobre esse tema?). Os trocadilhos – Dirty Diana, Tom Cruz, John Paul Trovalto, Rhumsteak, Soddom Hossein – apenas corroboram essa perspectiva.
Mas há ainda um outro nível da linguagem empregue em Démoniak: “Como num sonho, a Flor dos sentidos adverte a Alma maldita/e, no mais fundo dos seus pensamentos,/a Matéria obscura chora a perda da sua Shékinah”; “No meio dessa folia demente, a Tentadora celeste foi amarrada e encapuçada”... Se se podem interpretar algumas dessas frases de um modo literal em relação às imagens, seguindo um sentido claro de intriga porno-policial, outros há que se prestam a trocadilhos ainda mais obscenos (quando a imagem do ministro francês prestes a lamber um pénis é coroada pelas palavras de “beber a notícia como se fosse leitinho...”). Num sentido mais profundo, porém, poder-se-á transformar toda a linguagem e trama, sobretudo através dos nomes das personagens (Mãe-refém, A Sombra das Eras, Princesa das Febres, muitas vezes vários nomes para a mesma personagem, como se se revelassem as suas facetas/funções/potencialidades), numa espécie de alegoria alquímica e esotérica em que se desenrola algo de maior. Enfim, precisamente o sentido a que os seguidores de teorias de conspiração se entregam.
Démoniak pode ser visto então – mesmo que deste modo abstrusamente operático, obsceno e hiperbólico – como uma forma de posicionamento político crítico, oposicionista, radical mesmo, mas não directo: bem pelo contrário, que procura a sua eficiência particular através do desvio a que se propõe, ganhando humor e pertinência de um modo que não conquistaria se pretendesse uma construção mais dentro das regras (P. Squarzoni e Ted Rall são dois autores de banda desenhada que o fazem, por exemplo). Uma forma de, nesse humor, fazer notar que a Babilónia... já estamos nela.
Nota: agradecimentos a Joana Figueiredo, pelo empréstimo da publicação.
O subtítulo da publicação presente, que já em si reúne outras publicações menores, “protohistoire pour adultes” remete às publicações de foto-novelas (“photohistoires”) a preto-e-branco, de baixa qualidade (gráfica, de impressão, de complexidade narrativa, atrever-nos-emos a acrescentar artística?) que se vendiam em quiosques, ficção de estação de comboio, inclusive em Portugal e que, as mais das vezes, se faziam preencher com conteúdos eróticos e violentos. A tipologia dos fumetti referida acima era também populada por esse meio (as francesas Wampyr e Satanik tinham precisamente esse subtítulo). Uma anarquia de bolso, sem dúvida, quer quanto aos métodos quer quanto aos frutos. Seja como for, digamos que providenciava uma rebelião portátil, satisfatória por esse curto momento em que se lia e experimentava essa fantasia de poder, de crime, de incorrer nos pecados anti-sociais com que se sonhavam – acordado - mas jamais se atreveriam a ser cometidos. Poder-se-ia, rapidamente, acrescentar que existe aqui igualmente uma fantasia politicamente incorrecta, ou horrorosa, super-machista: mesmo quando as personagens se tratavam de mulheres, como Satanika e Zakimort (“heroína”, esta), trata-se de uma fantasia “de homem”. Todavia, ao mesmo tempo, há uma espécie de pulsão à qual se dá vazão com estas histórias, como se servisse de válvula de escape (escapismo?) a fantasias de violência e ódio em relação a tudo aquilo que nos pode amofinar, desde as razões egoístas às mais pertinentes.
É óbvio que, nas mãos de Magritte, de Cortázar, de Mike Patton, o paradigma de anarquismo pop a que Fantômas e a sua prole permitem atinge outra espécie de linguagens, de apropriações e de cruzamentos entre as culturas highbrow e lowbrow, apenas apreciáveis e talvez mesmo inteligíveis por quem participar, com gosto e conhecimento, em ambas, a um só tempo apercebendo-se do que as divide e da ilusão dessa mesma divisão. Este livrinho pertence à Frémok, à sua nova colecção Flore, e parece fazer parte mesmo de um grande projecto de continuação. Existe mesmo um blog específico: http://demoniak.wordpress.com/ Nenhum nome de autor é avançado, mas se os editores apontam à possibilidade de se tratar de um projecto a várias mãos, estamos em crer que Alagbé estará no centro dessa actividade, ou melhor, Gal Yacinthe Galbet (anagrama que aponta de imediato para toda uma série de associações, irónicas, com a ideia de transvestismo, disfarce, camuflagem, dissimulação, previstos em Fantômas e ca., nos anarquismos, e na “ficção de estação de comboio”).
Para além dos pressupostos editoriais, físicos e regulares desta edição – que procuram talvez uma recuperação por um certo círculo da “vanguarda da banda desenhada” por um imaginário e estratégias comerciais de baixo nível, mas que não deixam de ter uma faceta nostálgica, quiçá -, o que importa é notar como o material visual e narrativo de Mort à Babylone (o episódio de Démoniak que conseguimos ler) segue a via da apropriação. Reportagem, temas contemporâneos, notícias de última hora, colagem, transfers, trocadilhos são os elementos. O texto oscila entre o francês (a narração, algumas falas), o inglês (algumas falas) e até um finlandês “ao acaso” (algumas falas, sobretudo de Démoniak ele/ela-mesmo – o sexo é indeterminado). Podemos ler este(s) texto(s) e, até certo ponto, reconstruir um sentido linear, com um fito claro (sem perder “os próximos episódios”), mas parece-nos que os autores querem antes fabricar um sentido fantasmático. Os rostos de algumas personagens são claras referências a personagens reais que pertencem ao círculo do irreal mediático – as notícias e os filmes: John Travolta, Tom Cruise, Ingrid Betancourt, Sarkozy, Bernard Kouchner, Rumsfeld, Saddam Hussein, a princesa Diana... Como se ambos os mundos – o ficcional e o noticiado – colapsassem um sobre o outro (“finalmente?”, poderíamos perguntar, pois não é esse o objectivo de cada um à sua maneira? Qual a diferença do infotainment do noticiário da SIC das falsas notícias que se espalham pelas inúmeras séries televisivas? E não querem muitos dos filmes “baseados em factos reais” fazer espraiar-se uma perspectiva sobre esse tema?). Os trocadilhos – Dirty Diana, Tom Cruz, John Paul Trovalto, Rhumsteak, Soddom Hossein – apenas corroboram essa perspectiva.
Mas há ainda um outro nível da linguagem empregue em Démoniak: “Como num sonho, a Flor dos sentidos adverte a Alma maldita/e, no mais fundo dos seus pensamentos,/a Matéria obscura chora a perda da sua Shékinah”; “No meio dessa folia demente, a Tentadora celeste foi amarrada e encapuçada”... Se se podem interpretar algumas dessas frases de um modo literal em relação às imagens, seguindo um sentido claro de intriga porno-policial, outros há que se prestam a trocadilhos ainda mais obscenos (quando a imagem do ministro francês prestes a lamber um pénis é coroada pelas palavras de “beber a notícia como se fosse leitinho...”). Num sentido mais profundo, porém, poder-se-á transformar toda a linguagem e trama, sobretudo através dos nomes das personagens (Mãe-refém, A Sombra das Eras, Princesa das Febres, muitas vezes vários nomes para a mesma personagem, como se se revelassem as suas facetas/funções/potencialidades), numa espécie de alegoria alquímica e esotérica em que se desenrola algo de maior. Enfim, precisamente o sentido a que os seguidores de teorias de conspiração se entregam.
Démoniak pode ser visto então – mesmo que deste modo abstrusamente operático, obsceno e hiperbólico – como uma forma de posicionamento político crítico, oposicionista, radical mesmo, mas não directo: bem pelo contrário, que procura a sua eficiência particular através do desvio a que se propõe, ganhando humor e pertinência de um modo que não conquistaria se pretendesse uma construção mais dentro das regras (P. Squarzoni e Ted Rall são dois autores de banda desenhada que o fazem, por exemplo). Uma forma de, nesse humor, fazer notar que a Babilónia... já estamos nela.
Nota: agradecimentos a Joana Figueiredo, pelo empréstimo da publicação.
Le Goût du Chlore e Dans mes yeux. Bastien Vivès (Casterman)
Estes dois livros estão na sequência da “tendência” que discutimos no post anterior, fazendo parte, portanto, de aproximações estilísticas, narrativas e de atitudes que encontraram a sua origem em editores e autores trabalhando em plataformas independentes, que foram posteriormente apropriadas pelos grandes agentes do mercado da banda desenhada, apropriação essa que tem tanto de inevitável como de expansão como de deterioramento da pulsão real dos movimentos originais.
Bastien Vivés parece aproximar-se de estruturas narrativas cada vez menos clássicas, se bem que o tipo de liberdade ou experimentação a que se entrega não ser radical, mas de um desvio controlado, afável, cartografável, e ponderado, permitindo sempre a sua reconstrução, e a emergência de um sentido nítido, o qual aceita sempre um grau determinado de respostas suspensas, de aspectos jamais revelados, e até mesmo de irresoluções, daquelas mais expectáveis por pertencerem à esfera das que ocorrem na vida de todos os dias.
Le Goût du Chlore é visto como uma redução do Bildungsroman, e com razão. Toda a sua estrutura fulcral se encontra aqui, se bem que despojada de todos os parâmetros usuais (longos, complexos, detalhados) dos romances que pertencem a essa tipologia literária. Um jovem homem vê-se obrigado a utilizar uma piscina como local de terapia, mas rapidamente esse local se torna palco de, a um só tempo, ritual de passagem e de descoberta do amor. O livro não é totalmente desprovido de diálogos, mas estes ou se vêem reduzidos ao estritamente necessário ou ganham contornos secundários, e há longas sequências – as da natação propriamente ditas – sem quaisquer diálogos ou palavras. Não são “mudas”, pois a perspectiva do protagonista, a forma como essas observações nos vão ajudando à construção da sua visão de tudo o que o rodeia, e especialmente a atenção que se vai centrando na rapariga (mais madura, livre) que lá conhece, como se costuma dizer, “diz muito”. A piscina é tratada como um microcosmo, ou pelo menos uma micro-pólis na qual as relações estabelecidas mimam aquelas que ocorrem em círculos maiores, mas na qual também não se estabelecem laços de verdadeira sociabilização: são mais ténues as relações que todos nós estabelecemos no interior de uma outra relação social (aulas, ginásio, igrejas, lojas, etc.), e desejos tais como o amor, que depreende um maior conhecimento mútuo, não podem de modo algum funcionar aí. É o que acontece na piscina, de “gosto de cloro”.
Dans mes yeux é ligeiramente diferente mas parece também desejar explorar margens da narrativa clássica, e o silêncio ganha um corpo particular, a saber, o do protagonista: apesar de vermos tudo “dans ses yeux”, sendo o objecto do possessivo o “ele” que deveria constituir-se no protagonista mas se preenche com a ilusão de um “eu” que vê tal como “nós”, os leitores, nunca escutamos a sua palavra. Eventualmente poderíamos encontrar nessa narrativa também o cumprimento da ideia de ritual de passagem, se assumirmos que todas e quaisquer experiências no amor que tenhamos – a sua primeva queda e a eventualidade de uma subsequente felicidade ou privação – constituem uma passagem desse tipo.
Ambas as narrativas parecem colocar – de modos diversos, em graus diversos – os seus protagonistas na senda de algo (em ambos os casos, uma mulher, um amor), de um modo expresso, para depois se o poder perder, igualmente de modo expresso. Ou seja, é como se o intuito de ambas as obras fosse dar a ver a perda no momento da sua formação. Nada disto tem a ver com uma reacção, que se o fosse seria ingénua e inócua, contra o “final feliz”, mas sim com uma tenção particular para com a constituição dessa perda. E se em Le Goût du Chlore esse “encontro” jamais é feito (isto é, não se dá início a uma relação amorosa correspondida ou cumprida de qualquer modo), em Dans mes yeux o signo da perda está permanentemente presente mesmo nessa relação. A ausência da representação do protagonista enquanto “na terceira pessoa” apenas torna essa inevitabilidade mais pungente. Penso que esta “terceira pessoa” é fácil de entender: mesmo quando estamos perante um livro cuja personagem principal relata os acontecimentos ou os comanda, mesmo quando estamos perante uma autobiografia, em banda desenhada essas personagens são representadas no mesmo plano visual que as restantes. No caso de Dans mes yeux, todo o plano visual é aquele que corresponde ao que é visível pelo protagonista, por isso jamais o “vemos”, correspondendo a nossa visão, ponto por ponto, à dele (Eisner e Marco Mendes têm histórias com esta estratégia visual, mas Vivès transforma-a permanente ao longo destas mais de 100 páginas).
Apesar de partilharmos o campo visual com o protagonista, na verdade, nada sabemos dele, ou pouco: nem o aspecto físico, pois jamais “nos vemos” ao espelho, nem o que pensa, pois não temos acesso a nenhuma voz narrativa... No entanto, isto não é totalmente verdade: algumas das frases ditas pela rapariga com quem o protagonista constrói a sua relação permitem-nos adivinhar, com algum grau de segurança, aquilo que teria sido dito por ele. Muitas das sequências, dando-nos a ver aquilo que “ele” observa, o modo como observa, o modo como apaga os rostos e as palavras de quem rodeia a rapariga levam-nos à construção a posteriori de uma personalidade não apenas apaixonada mas que coloca essa paixão no centro do que ele mesmo é. Ou seja, é um puro personagem ficcional, reduzido à função necessária para a construção da ficção em que se insere, da qual é motor, charneira, pedra de toque e de fecho. E também é uma prova de que um diálogo, para ocorrer, entre dois ou mais interlocutores não tem necessariamente de ser feito verbalmente... (tornado ainda mais claro no "diálogo subaquático" do primeiro livro).
A perda, nos dois casos, é atingida sempre na ausência de “razões”, ou melhor, de “explicações discursivas”. No primeiro livro o fecho da relação tem a ver com uma incapacidade física que se traduz na impossibilidade de conquistar a mulher, no segundo a decisão é unilateral, mas imaginamos que definitiva.
Vivès parece, logo, ser um autor que aproveita bem o caminho aberto por muitos autores que o precederam – os fundadores das “tendências contemporâneas” – para poder explorar um caminho que lhe poderá ser muito próprio. No entanto, apenas o seguimento dessa sua obra o poderá comprovar. Em suma, não sendo propriamente estes dois livros cumpridores de uma inventabilidade inédita, eles mostram-se capazes de herdar o peso dos que abriram o caminho, e sobretudo mostra-se capaz de utilizar essa abertura prévia para a continuidade de uma experimentação plausível, consolidada e sustentada.
Bastien Vivés parece aproximar-se de estruturas narrativas cada vez menos clássicas, se bem que o tipo de liberdade ou experimentação a que se entrega não ser radical, mas de um desvio controlado, afável, cartografável, e ponderado, permitindo sempre a sua reconstrução, e a emergência de um sentido nítido, o qual aceita sempre um grau determinado de respostas suspensas, de aspectos jamais revelados, e até mesmo de irresoluções, daquelas mais expectáveis por pertencerem à esfera das que ocorrem na vida de todos os dias.
Le Goût du Chlore é visto como uma redução do Bildungsroman, e com razão. Toda a sua estrutura fulcral se encontra aqui, se bem que despojada de todos os parâmetros usuais (longos, complexos, detalhados) dos romances que pertencem a essa tipologia literária. Um jovem homem vê-se obrigado a utilizar uma piscina como local de terapia, mas rapidamente esse local se torna palco de, a um só tempo, ritual de passagem e de descoberta do amor. O livro não é totalmente desprovido de diálogos, mas estes ou se vêem reduzidos ao estritamente necessário ou ganham contornos secundários, e há longas sequências – as da natação propriamente ditas – sem quaisquer diálogos ou palavras. Não são “mudas”, pois a perspectiva do protagonista, a forma como essas observações nos vão ajudando à construção da sua visão de tudo o que o rodeia, e especialmente a atenção que se vai centrando na rapariga (mais madura, livre) que lá conhece, como se costuma dizer, “diz muito”. A piscina é tratada como um microcosmo, ou pelo menos uma micro-pólis na qual as relações estabelecidas mimam aquelas que ocorrem em círculos maiores, mas na qual também não se estabelecem laços de verdadeira sociabilização: são mais ténues as relações que todos nós estabelecemos no interior de uma outra relação social (aulas, ginásio, igrejas, lojas, etc.), e desejos tais como o amor, que depreende um maior conhecimento mútuo, não podem de modo algum funcionar aí. É o que acontece na piscina, de “gosto de cloro”.
Dans mes yeux é ligeiramente diferente mas parece também desejar explorar margens da narrativa clássica, e o silêncio ganha um corpo particular, a saber, o do protagonista: apesar de vermos tudo “dans ses yeux”, sendo o objecto do possessivo o “ele” que deveria constituir-se no protagonista mas se preenche com a ilusão de um “eu” que vê tal como “nós”, os leitores, nunca escutamos a sua palavra. Eventualmente poderíamos encontrar nessa narrativa também o cumprimento da ideia de ritual de passagem, se assumirmos que todas e quaisquer experiências no amor que tenhamos – a sua primeva queda e a eventualidade de uma subsequente felicidade ou privação – constituem uma passagem desse tipo.
Ambas as narrativas parecem colocar – de modos diversos, em graus diversos – os seus protagonistas na senda de algo (em ambos os casos, uma mulher, um amor), de um modo expresso, para depois se o poder perder, igualmente de modo expresso. Ou seja, é como se o intuito de ambas as obras fosse dar a ver a perda no momento da sua formação. Nada disto tem a ver com uma reacção, que se o fosse seria ingénua e inócua, contra o “final feliz”, mas sim com uma tenção particular para com a constituição dessa perda. E se em Le Goût du Chlore esse “encontro” jamais é feito (isto é, não se dá início a uma relação amorosa correspondida ou cumprida de qualquer modo), em Dans mes yeux o signo da perda está permanentemente presente mesmo nessa relação. A ausência da representação do protagonista enquanto “na terceira pessoa” apenas torna essa inevitabilidade mais pungente. Penso que esta “terceira pessoa” é fácil de entender: mesmo quando estamos perante um livro cuja personagem principal relata os acontecimentos ou os comanda, mesmo quando estamos perante uma autobiografia, em banda desenhada essas personagens são representadas no mesmo plano visual que as restantes. No caso de Dans mes yeux, todo o plano visual é aquele que corresponde ao que é visível pelo protagonista, por isso jamais o “vemos”, correspondendo a nossa visão, ponto por ponto, à dele (Eisner e Marco Mendes têm histórias com esta estratégia visual, mas Vivès transforma-a permanente ao longo destas mais de 100 páginas).
Apesar de partilharmos o campo visual com o protagonista, na verdade, nada sabemos dele, ou pouco: nem o aspecto físico, pois jamais “nos vemos” ao espelho, nem o que pensa, pois não temos acesso a nenhuma voz narrativa... No entanto, isto não é totalmente verdade: algumas das frases ditas pela rapariga com quem o protagonista constrói a sua relação permitem-nos adivinhar, com algum grau de segurança, aquilo que teria sido dito por ele. Muitas das sequências, dando-nos a ver aquilo que “ele” observa, o modo como observa, o modo como apaga os rostos e as palavras de quem rodeia a rapariga levam-nos à construção a posteriori de uma personalidade não apenas apaixonada mas que coloca essa paixão no centro do que ele mesmo é. Ou seja, é um puro personagem ficcional, reduzido à função necessária para a construção da ficção em que se insere, da qual é motor, charneira, pedra de toque e de fecho. E também é uma prova de que um diálogo, para ocorrer, entre dois ou mais interlocutores não tem necessariamente de ser feito verbalmente... (tornado ainda mais claro no "diálogo subaquático" do primeiro livro).
A perda, nos dois casos, é atingida sempre na ausência de “razões”, ou melhor, de “explicações discursivas”. No primeiro livro o fecho da relação tem a ver com uma incapacidade física que se traduz na impossibilidade de conquistar a mulher, no segundo a decisão é unilateral, mas imaginamos que definitiva.
Vivès parece, logo, ser um autor que aproveita bem o caminho aberto por muitos autores que o precederam – os fundadores das “tendências contemporâneas” – para poder explorar um caminho que lhe poderá ser muito próprio. No entanto, apenas o seguimento dessa sua obra o poderá comprovar. Em suma, não sendo propriamente estes dois livros cumpridores de uma inventabilidade inédita, eles mostram-se capazes de herdar o peso dos que abriram o caminho, e sobretudo mostra-se capaz de utilizar essa abertura prévia para a continuidade de uma experimentação plausível, consolidada e sustentada.
Marilyn la Dingue, Jerome Charyn e Frédéric Rébéna (Denoël Graphic)
Quando falamos em tendências contemporâneas, é preciso entender a primeira palavra e o modo como a segunda a qualifica. No dicionário Cândido de Figueiredo, encontramos esta palavra explicada como “força que determina um movimento de um corpo”, o que faz eco com outros sinónimos aí propostos, como inclinação, propensão e até vocação, que é um movimento feito com ou pela voz. A sua origem etimológica alcançará o latim tendere, “esticar” (como quem diz, “tender a massa”) e o grego tasis, a um só tempo “tensão” e também “esticamento”. Guardemos portanto a ideia de um movimento que tende para uma mesma direcção, depreendendo-se disso que existem vários elementos convergindo nesse movimento. É costumeiro olharmos para trás, para a história, e reduzir os seus agentes, os seus objectos, a elementos tão básicos que nos permitam uma sua colação, aproximação e amalgamação, até a um ponto de sermos capazes de entender facilmente (porque, repetimo-lo, redutoramente) essas tendências, as características comuns, talvez o estilo, a temática... Erroneamente ou não, mais ou menos violentamente, essa amalgamação é, todavia, necessária e natural ao olhar taxonómico do ser humano, até mesmo imperativo se se pretende uma primeira abordagem, que depois será, deve sê-lo mesmo, corrigida, qualificada, expandida.
A associação dessoutro termo complexo, “contemporaneidade”, serve aqui apenas de complemento qualificativo, de mera baliza temporal, que procura uma coincidência com o presente tal como consensualmente experienciado por nós, que o vivemos (não significa isto “estar vivo no presente”, mas “vivê-lo” o mais intensa e implicadamente possível, sentindo-nos inscritos neles, desprovidos de nostalgias, incompreensões, e a sentimos acronológicos). Esta proximidade radical impede-nos eventualmente da distância crítica necessária para a confirmação de ideias mais redondas, mais organizadas, e poder-nos-á levar a erros de percepção e de apreciação. Porém, presumimos que a indicação deste caveat nos permite poder incorrer nesse pequeno perigo.
Não é surpresa nenhuma para ninguém que a banda desenhada, naquele pedaço do mundo a que se chama o estranho nome de “mercado franco-belga”, vive uma férrea saúde comercial, marcada por altos e baixos, é claro, mas caracterizada sobretudo por uma continuidade inabalável, isto é, pela sua própria existência. A plasticidade desse mercado à procura é também reconhecida, e são cada vez mais as estratégias para se conseguir a fabricação de livros “para todos os gostos”. É, ou deveria ser, óbvio, que essa aparente ecumenicidade é, no fundo, enganadora, e que premeia mais a existência de produtos de qualidade medíocre ou mediana, do que aquelas regidas por parâmetros de excelência – literários, estéticos, plásticos, intelectuais, filosóficos, aqueles que vos mais aprouver, mas que são sempre dominados pela “exigência” que, por mais paradoxal pareça, nos exigem, enquanto leitores. é possível que seja difícil encontrar um domínio e um acordo entre que parâmetros serão esses, e até mesmo poderão surgir acusações de elitismo, mas enquanto leitores activos deveria ser mesmo essa a direcção do nosso caminho: sermos cada vez mais exigentes. O que não nos impede de dar atenção e valor a trabalhos cujos propósitos não são os mesmos de um certo tipo de experimentalismo (menos ou mais radical, como no caso, se mo permitem, dos autores reunidos no Impera et Divide) ou de uma certa densidade existencial (como, por exemplo, em Feuchtenberger, Tsuge, Baudoin ou Vähämäki). Talvez possa insistir junto aos autores reunidos na Frémok como aqueles que exploram as linguagens mais inesperadas e, por isso, mais surpreendentes e fortes, das potencialidades artísticas da banda desenhada, mas experiências como as de Sfar ou de Hornschemeier não são de desprezar.
Já havíamos indicado a existência de uma tremenda discussão iniciada (ou coroada) por Menu, sobre o aproveitamento das grandes editoras francófonas pelas “tendências contemporâneas” trazidas a lume pela primeira vez por outras plataformas editoriais, mais independentes ou marginais (L’Association estando no papel principal dos “formadores do gosto”, já que a as linguagens propostas da Frémok são de uma ruptura tal que dificilmente são “aproveitáveis” pelo mercado... e ainda bem?; mas veja-se o caso de Deniz Deprez). Também já havíamos debatido como existiam cada vez mais artistas na esteira de uma “linha caligráfica do desenho”, a nosso ver cuja origem - se não estilística (essa primazia está nas mãos da UPA, de Feiffer, por exemplo) pelo menos em termos de ultrapassagem de um crivo de aceitação mais alargado – se encontra em Joann Sfar, e que se pode exemplificar em Mathieu Sapin, Jérôme Dupré de la Tour, Gipi, Kerascoët, Christophe Blain, Lucie Durbiano, Clément Oubrerie, Bastien Vivès, entre outros. E Frédéric Rébéna (aliás, poderíamos quase acrescentar que tem sido este estilo contemporâneo aquele que tem ocupado o papel da “linha clara” nos nossos dias, no que diz respeito à ideia de legibilidade, aceitabilidade comercial e... exacto, “tendencial”). E temos observado ainda como o mercado francês, a par do norte-americano, tem procurado cada vez mais a anulação das fronteiras entre a banda desenhada, a literatura e o cinema, de animação ou não, transformando todas essas linguagens em territórios de exploração comercial e que se cruza entre si. Como se um desses territórios servisse de modo de sedução para o outro.
Ora, é no cruzamento de todas estas tendências – aproveitamento das grandes editoras por movimentos iniciados alhures, uma maior aceitação da parte do grande público por um desenho mais solto, menos “virtuoso” no seu sentido realista, mas talvez mais sedutor, e intersecções entre os domínios literário, cinematográfico e banda desenhístico – que encontramos Marilyn la Dingue. Trata-se da adaptação para banda desenhada do romance homónimo (em francês, já que o original em língua inglesa é Marilyn the Wild) do próprio Charyn, que o havia publicado em 1976. Não será surpresa nenhuma que Charyn o adapte ele mesmo, após as suas criações para banda desenhada, pela mão de François Boucq, com A Mulher do Mágico e A Boca do Diabo (talvez os seus melhores livros?). Pelo que entendemos, este é o primeiro trabalho de banda desenhada de Rébéna. Tal como ocorreu com a série Miss Pas Touche, de Kerascoët, quando o primeiro álbum surgiu, também este livro nos fez pensar automaticamente na ideia da clonagem do traço de Sfar.
Este último ponto precisa de ser explicado. Não se trata de imitação, muito menos de plágio. Nada disso. Tem antes a ver com a instauração de uma possibilidade que é garantida por um autor forte, neste caso Sfar, que é aproveitada por outros autores que têm inclinações parecidas e que vêem, subitamente, aberta a possibilidade de perseguirem essa capacidade e opção de trabalho, ao invés de terem de se alterar a eles mesmos para poderem se aproximar das expectativas do mercado... Não há qualquer vergonha aqui. Muitos dos “grandes autores” começaram os seus primeiros passos sob a sombra de outros autores, e com primeiros trabalhos quase indissociáveis do estilo dos seus “mestres” respectivos: Frank Miller e Bill Sienkiewicz sob Neal Adams, Al Columbia sob Sienkiewicz, Klaus Janson sob Miller, tantos sob Breccia.... Chris Ware abriu as comportas a um tipo de experimentação que seria imediatamente perseguida por novos autores. Apenas notar-se-á em algum tipo de “problema” se os autores em questão, em vez de aproveitarem essa abertura para o desenvolvimento das suas próprias linguagens, se mantêm sob a sombra do caminho aberto pelo artista primevo, o que os levará, aí sim, ao campo dos meros “epígonos”.
Rébéna constrói composições de página simples, de múltiplas vinhetas distribuídas de modo rectilíneo, depositando no seu interior o que parecem ser as primeiras linhas em que pensou, sem necessidade de as corrigir ou alterar, deixando assim uma certa flutuação na constância do rosto das personagens, algumas linhas de contorno ou de caracterização das mesmas batalhando pela primazia, e usando uma paleta de cores que tem tanto de “linha clara”, obedecendo ao princípio da legibilidade, como de temperança luminosa, utilizando cores pouco vivas, pouco contrastantes, muitos jogos de iluminação limitada, ora por negros e cinzas (becos, interiores), ora por azuis-cinzentos (interior íntimos), ora por vermelhos (a cena no bar). As personagens vivem num alto grau de estilização, o que as torna a todas imediatamente reconhecíveis, mas sem que caiam em estereótipos, o que seria fácil, tendo em conta a fauna aqui presente, como veremos de seguida... No caso das mulheres, Rébéna parece criar uma vitrina de tipos de beleza consensual, tipicamente eroticizadas, que verificamos também em Sfar, mas igualmente em Nuno Saraiva ou Rui Ricardo.
Acabámos de falar de “fauna”. Não havendo lido o romance original, ficamos na dúvida se o jogo de clichés é propositado, numa veia irónica e até cómica, ou se se pretende mesmo criar um universo pretensamente real, palpável, do underground do crime organizado de Nova Iorque. Italianos, judeus, negros, chineses, policiais duros e policiais pouco inteligentes, prostitutas menores e chulos estilosos, fuinhas e doidos, e até um pai que rouba o corpo e o rosto e a actividade (mas não o trabalho) a Picasso, nenhum deles jamais chegando a encher as medidas do que uma “personagem” pode ser, mas somente o espaço que cada uma dessas palavras promete em si mesma e que é empregue tal qual como função imediata na narrativa construída. Monta-se um pequeno drama pessoal, uma história de amor, em torno de uma trama policial, complicam-se as voltas através de alianças, desconfianças e falsas pistas, polvilha-se tudo de referências ao “imaginário americano”, tanto o fílmico como o da cultura popular, e eis que se constrói um sedutor e leve álbum de 74 pranchas. O facto de a primeira e a última página poderem ser lidas como uma só unidade – mas apenas depois de lermos o livro inteiro – faz-nos aperceber que, muito provavelmente, toda a história central era apenas um McGuffin tremendo para contar a história de sempre, uma de amor. A falta de surpresa, a linearidade da acção e os efeitos de malabarismo, que não de condensação, da história, leva-nos a perguntar se Marylin la Dingue satisfará os cultores do policial ou se apenas aqueles que procuram no policial o que há de caricato.
Uma forma de demonstrar que as tendências têm sempre frutos dúbios?
A associação dessoutro termo complexo, “contemporaneidade”, serve aqui apenas de complemento qualificativo, de mera baliza temporal, que procura uma coincidência com o presente tal como consensualmente experienciado por nós, que o vivemos (não significa isto “estar vivo no presente”, mas “vivê-lo” o mais intensa e implicadamente possível, sentindo-nos inscritos neles, desprovidos de nostalgias, incompreensões, e a sentimos acronológicos). Esta proximidade radical impede-nos eventualmente da distância crítica necessária para a confirmação de ideias mais redondas, mais organizadas, e poder-nos-á levar a erros de percepção e de apreciação. Porém, presumimos que a indicação deste caveat nos permite poder incorrer nesse pequeno perigo.
Não é surpresa nenhuma para ninguém que a banda desenhada, naquele pedaço do mundo a que se chama o estranho nome de “mercado franco-belga”, vive uma férrea saúde comercial, marcada por altos e baixos, é claro, mas caracterizada sobretudo por uma continuidade inabalável, isto é, pela sua própria existência. A plasticidade desse mercado à procura é também reconhecida, e são cada vez mais as estratégias para se conseguir a fabricação de livros “para todos os gostos”. É, ou deveria ser, óbvio, que essa aparente ecumenicidade é, no fundo, enganadora, e que premeia mais a existência de produtos de qualidade medíocre ou mediana, do que aquelas regidas por parâmetros de excelência – literários, estéticos, plásticos, intelectuais, filosóficos, aqueles que vos mais aprouver, mas que são sempre dominados pela “exigência” que, por mais paradoxal pareça, nos exigem, enquanto leitores. é possível que seja difícil encontrar um domínio e um acordo entre que parâmetros serão esses, e até mesmo poderão surgir acusações de elitismo, mas enquanto leitores activos deveria ser mesmo essa a direcção do nosso caminho: sermos cada vez mais exigentes. O que não nos impede de dar atenção e valor a trabalhos cujos propósitos não são os mesmos de um certo tipo de experimentalismo (menos ou mais radical, como no caso, se mo permitem, dos autores reunidos no Impera et Divide) ou de uma certa densidade existencial (como, por exemplo, em Feuchtenberger, Tsuge, Baudoin ou Vähämäki). Talvez possa insistir junto aos autores reunidos na Frémok como aqueles que exploram as linguagens mais inesperadas e, por isso, mais surpreendentes e fortes, das potencialidades artísticas da banda desenhada, mas experiências como as de Sfar ou de Hornschemeier não são de desprezar.
Já havíamos indicado a existência de uma tremenda discussão iniciada (ou coroada) por Menu, sobre o aproveitamento das grandes editoras francófonas pelas “tendências contemporâneas” trazidas a lume pela primeira vez por outras plataformas editoriais, mais independentes ou marginais (L’Association estando no papel principal dos “formadores do gosto”, já que a as linguagens propostas da Frémok são de uma ruptura tal que dificilmente são “aproveitáveis” pelo mercado... e ainda bem?; mas veja-se o caso de Deniz Deprez). Também já havíamos debatido como existiam cada vez mais artistas na esteira de uma “linha caligráfica do desenho”, a nosso ver cuja origem - se não estilística (essa primazia está nas mãos da UPA, de Feiffer, por exemplo) pelo menos em termos de ultrapassagem de um crivo de aceitação mais alargado – se encontra em Joann Sfar, e que se pode exemplificar em Mathieu Sapin, Jérôme Dupré de la Tour, Gipi, Kerascoët, Christophe Blain, Lucie Durbiano, Clément Oubrerie, Bastien Vivès, entre outros. E Frédéric Rébéna (aliás, poderíamos quase acrescentar que tem sido este estilo contemporâneo aquele que tem ocupado o papel da “linha clara” nos nossos dias, no que diz respeito à ideia de legibilidade, aceitabilidade comercial e... exacto, “tendencial”). E temos observado ainda como o mercado francês, a par do norte-americano, tem procurado cada vez mais a anulação das fronteiras entre a banda desenhada, a literatura e o cinema, de animação ou não, transformando todas essas linguagens em territórios de exploração comercial e que se cruza entre si. Como se um desses territórios servisse de modo de sedução para o outro.
Ora, é no cruzamento de todas estas tendências – aproveitamento das grandes editoras por movimentos iniciados alhures, uma maior aceitação da parte do grande público por um desenho mais solto, menos “virtuoso” no seu sentido realista, mas talvez mais sedutor, e intersecções entre os domínios literário, cinematográfico e banda desenhístico – que encontramos Marilyn la Dingue. Trata-se da adaptação para banda desenhada do romance homónimo (em francês, já que o original em língua inglesa é Marilyn the Wild) do próprio Charyn, que o havia publicado em 1976. Não será surpresa nenhuma que Charyn o adapte ele mesmo, após as suas criações para banda desenhada, pela mão de François Boucq, com A Mulher do Mágico e A Boca do Diabo (talvez os seus melhores livros?). Pelo que entendemos, este é o primeiro trabalho de banda desenhada de Rébéna. Tal como ocorreu com a série Miss Pas Touche, de Kerascoët, quando o primeiro álbum surgiu, também este livro nos fez pensar automaticamente na ideia da clonagem do traço de Sfar.
Este último ponto precisa de ser explicado. Não se trata de imitação, muito menos de plágio. Nada disso. Tem antes a ver com a instauração de uma possibilidade que é garantida por um autor forte, neste caso Sfar, que é aproveitada por outros autores que têm inclinações parecidas e que vêem, subitamente, aberta a possibilidade de perseguirem essa capacidade e opção de trabalho, ao invés de terem de se alterar a eles mesmos para poderem se aproximar das expectativas do mercado... Não há qualquer vergonha aqui. Muitos dos “grandes autores” começaram os seus primeiros passos sob a sombra de outros autores, e com primeiros trabalhos quase indissociáveis do estilo dos seus “mestres” respectivos: Frank Miller e Bill Sienkiewicz sob Neal Adams, Al Columbia sob Sienkiewicz, Klaus Janson sob Miller, tantos sob Breccia.... Chris Ware abriu as comportas a um tipo de experimentação que seria imediatamente perseguida por novos autores. Apenas notar-se-á em algum tipo de “problema” se os autores em questão, em vez de aproveitarem essa abertura para o desenvolvimento das suas próprias linguagens, se mantêm sob a sombra do caminho aberto pelo artista primevo, o que os levará, aí sim, ao campo dos meros “epígonos”.
Rébéna constrói composições de página simples, de múltiplas vinhetas distribuídas de modo rectilíneo, depositando no seu interior o que parecem ser as primeiras linhas em que pensou, sem necessidade de as corrigir ou alterar, deixando assim uma certa flutuação na constância do rosto das personagens, algumas linhas de contorno ou de caracterização das mesmas batalhando pela primazia, e usando uma paleta de cores que tem tanto de “linha clara”, obedecendo ao princípio da legibilidade, como de temperança luminosa, utilizando cores pouco vivas, pouco contrastantes, muitos jogos de iluminação limitada, ora por negros e cinzas (becos, interiores), ora por azuis-cinzentos (interior íntimos), ora por vermelhos (a cena no bar). As personagens vivem num alto grau de estilização, o que as torna a todas imediatamente reconhecíveis, mas sem que caiam em estereótipos, o que seria fácil, tendo em conta a fauna aqui presente, como veremos de seguida... No caso das mulheres, Rébéna parece criar uma vitrina de tipos de beleza consensual, tipicamente eroticizadas, que verificamos também em Sfar, mas igualmente em Nuno Saraiva ou Rui Ricardo.
Acabámos de falar de “fauna”. Não havendo lido o romance original, ficamos na dúvida se o jogo de clichés é propositado, numa veia irónica e até cómica, ou se se pretende mesmo criar um universo pretensamente real, palpável, do underground do crime organizado de Nova Iorque. Italianos, judeus, negros, chineses, policiais duros e policiais pouco inteligentes, prostitutas menores e chulos estilosos, fuinhas e doidos, e até um pai que rouba o corpo e o rosto e a actividade (mas não o trabalho) a Picasso, nenhum deles jamais chegando a encher as medidas do que uma “personagem” pode ser, mas somente o espaço que cada uma dessas palavras promete em si mesma e que é empregue tal qual como função imediata na narrativa construída. Monta-se um pequeno drama pessoal, uma história de amor, em torno de uma trama policial, complicam-se as voltas através de alianças, desconfianças e falsas pistas, polvilha-se tudo de referências ao “imaginário americano”, tanto o fílmico como o da cultura popular, e eis que se constrói um sedutor e leve álbum de 74 pranchas. O facto de a primeira e a última página poderem ser lidas como uma só unidade – mas apenas depois de lermos o livro inteiro – faz-nos aperceber que, muito provavelmente, toda a história central era apenas um McGuffin tremendo para contar a história de sempre, uma de amor. A falta de surpresa, a linearidade da acção e os efeitos de malabarismo, que não de condensação, da história, leva-nos a perguntar se Marylin la Dingue satisfará os cultores do policial ou se apenas aqueles que procuram no policial o que há de caricato.
Uma forma de demonstrar que as tendências têm sempre frutos dúbios?
12 de maio de 2009
Os joelhos em sangue sobre a neve & está a morrer e não quer ver. Mauro Cerqueira (edição de autor)
Aos poucos, Mauro Cerqueira vai desdobrando o seu acto criativo por várias frentes materiais, modos de expressão, veículos, de forma a transmitir melhor ou mais desenvoltamente o seu propósito artístico, inanalisável e indeterminado, não pela razão de não existir, ou não ser claro, mas precisamente pela sua natureza artística. Assim sendo, encontramos nas suas sucessivas acções e exposições objectos a que podemos dar o nome de vídeos, esculturas, instalações, site-specific, desenhos, grafitti, e, o que mais nos importará aqui, publicações. É indispensável não desenlaçar estes projectos editoriais dos projectos artísticos nos quais se integram, ou dos quais são complemento, continuação, metástase. Mauro Cerqueira é, em primeiro lugar, um artista, e estas publicações são parte da sua pesquisa. No entanto, poderemos indubitavelmente apreciar as publicações por si mesmas, nalgum grau de autonomia em relação ao restante dos projectos, nem que pela simples razão de nos evitarem entrar num discurso que não nos compete.
O primeiro, está a morrer e não quer ver, foi lançado numa exposição colectiva do mesmo nome no Espaço Campanhã, no Porto, cuja curadoria está a cargo de José Maia. Esta exposição tinha a ver com uma determinada perspectiva sobre a História de Portugal, quer a mais recente quer a mais glorificada, e sobretudo com a crescente apolitização da arte contemporânea (a qual, quando nela incorre, persegue princípios mais ou menos seguros, pouco incómodos ou até mesmo “seguramente incómodos”...). está a morrer e não quer ver tem um formato de jornal menor do que o tablóide, assemelhando-se por isso aos jornais gratuitos distribuídos pelo país. É impresso a uma cor apenas, preto, precisamente em “papel de jornal”, e tem dez folhas dobradas, simplesmente metidas umas dentro das outras. A primeira folha contém a capa, com uma gravura da nau São Gabriel, de Vasco da Gama, e o título em letras góticas, e a contra-capa uma citação de Herman Broch de Esch ou a Anarquia, e o cólofon. Esta é a única folha cuja impressão está na “face” das folhas; o miolo está invertido, isto é, apenas tem impressão no “verso”, ou “para dentro”: as restantes nove apresentam desenhos, os quais apenas podem ser vistos na íntegra, fora o último/do meio, se desfizermos o jornal... Todos estes desenhos mostram barcos (naus, caravelas, ou simplesmente “barcos”) em várias fases de catástrofe, engolidos pelas ondas, pelas chamas, pelos furacões e redemoinhos, maëlstroms e Caríbdis, todos sob as inefáveis formas da tinta riscada, despejada, salpicada dos desenhos brutos de Cerqueira. A catástrofe ganha ainda mais sentido, táctil, performativo, através do necessário gesto do leitor em desfazer o jornal para que possa ver os desenhos. A glória da nau de Vasco da Gama, tomada eventualmente como símbolo (pífio e cansado) de uma qualquer portugalidade evanescente, é aqui torturada pelos acasos da história (como quem diz para não esquecer que a par d’Os Lusíadas, os Descobrimentos devem ser temperados pela História Trágico-Marítima e pela Peregrinação), incorporados na prática de Cerqueira, sem virtuosismo, sem equilíbrio, sem ponderação, e talvez mesmo sem medo.
Os joelhos em sangue sobre a neve, cujo formato recordará Alma Picada (publicação ao comprido, com papel de toalhas de mão dobradas, em edições pequenas mas em que cada objecto é único, uma vez que os desenhos são repetidamente redesenhados para cada uma das páginas) está associado a uma outra exposição havida no mesmo espaço, em curso, cujo título é Lição no. 2, mas está ainda associada às peças com as quais Cerqueira participou do recente prémio EDP jovens artistas e àquelas que estão em produção para uma exposição a haver no Espaço Avenida, intitulada Entrocamento. Estes desenhos, simples, rabiscados, brutos, parecem ser apontamento ou ilustração de acções de performance, de instalações – esta imagem que mostramos ecoa a instalação e vídeo Perder as Graças -, em larga medida com características bem próximas dos projectos de Mauro Cerqueira na esfera artística em que participa. Os joelhos... termina com uma citação de O Marinheiro que perdeu as graças do mar, de Mishima (não identificado), mas desligando-se da violência que lhe é inerente (explorada de modo mais directo por Tiago Manuel na exposição que teve no CCB, e que presumimos vir a tomar a forma de uma publicação num futuro próximo) ou pelo menos adiando-a para “fora” do livro, deixando-a apenas como ambiente latente, ponto que nos obrigue nela a pensar sem que ganhe forma directa. Cria-se antes, com essa mesma citação operando sobre os desenhos, uma espécie de tensão de contornos fluidos, idêntica àquela que é descrita no trecho de Mishima, em torno de uma piscina vazia (a qual estabelece outros jogos de associação com uma cultura jovem urbana explorada bastas vezes por Cerqueira, a saber, a do skate).
É também de Broch a afirmação de que “a nossa prática actual da arte já não é um ofício divino”, a qual nos coloca numa questão: aperceber-se-á este artista, talvez, mesmo que não discursiva ou intelectualmente, dessa perda de natureza? Será mesmo essa perda, ainda que adivinhada, que o coloca num caminho da precariedade – dos materiais, da linguagem, da discursividade eventualmente positiva? É como se se apercebesse estar “cá em baixo”, “cá fora”, e olhasse para o “cima” e o “dentro” e o único modo de expressar essa perda, essa pena, fosse através da fragilidade, do acto violento, do acto destrutivo, “no future”. Os traços dos seus actos e peças para essa ideia concorrem.
Displicência, negrume, agrura, tédio, pequenas violências e ódios que se vão formando, alguns deles mesmos virados contra a própria pessoa, são as características conceptuais que parecem evolar-se de todos os estes textos, e que o colocam, ao artista, num maior grupo de autores que exploram esta espécie de descontínua insatisfação e pouco à-vontade com o resto do mundo. Tratar-se-á de uma estratégia pensada, de um traço típico de um fazer artístico, uma mania, ou uma profunda e verdadeira irritação que se forma? Serão estas publicações, negligentes para com um certo estilo, uma certa qualidade e até uma coerência (Mauro Cerqueira explora, com André Sousa, um espaço chamado Uma certa falta de coerência), desprovidas de estilo, qualidade e coerência? É óbvio que não; caso o fossem, dissipar-se-iam no nada: existindo, participarão de um estilo, de uma qualidade e de uma coerência, tudo o que apenas se torna observável na continuidade e desenvolvimento do trabalho do seu autor. A ver.
Nota: agradecimentos ao autor, pela oferta de ambas as publicações. A primeira está à venda por 3 Euros, a segunda (de apenas 50 exemplares "únicos"), por 20 Euros, ora no Espaço Campanhã (aberto por marcação) ora junto do próprio autor, contactável pelo seu blog.
O primeiro, está a morrer e não quer ver, foi lançado numa exposição colectiva do mesmo nome no Espaço Campanhã, no Porto, cuja curadoria está a cargo de José Maia. Esta exposição tinha a ver com uma determinada perspectiva sobre a História de Portugal, quer a mais recente quer a mais glorificada, e sobretudo com a crescente apolitização da arte contemporânea (a qual, quando nela incorre, persegue princípios mais ou menos seguros, pouco incómodos ou até mesmo “seguramente incómodos”...). está a morrer e não quer ver tem um formato de jornal menor do que o tablóide, assemelhando-se por isso aos jornais gratuitos distribuídos pelo país. É impresso a uma cor apenas, preto, precisamente em “papel de jornal”, e tem dez folhas dobradas, simplesmente metidas umas dentro das outras. A primeira folha contém a capa, com uma gravura da nau São Gabriel, de Vasco da Gama, e o título em letras góticas, e a contra-capa uma citação de Herman Broch de Esch ou a Anarquia, e o cólofon. Esta é a única folha cuja impressão está na “face” das folhas; o miolo está invertido, isto é, apenas tem impressão no “verso”, ou “para dentro”: as restantes nove apresentam desenhos, os quais apenas podem ser vistos na íntegra, fora o último/do meio, se desfizermos o jornal... Todos estes desenhos mostram barcos (naus, caravelas, ou simplesmente “barcos”) em várias fases de catástrofe, engolidos pelas ondas, pelas chamas, pelos furacões e redemoinhos, maëlstroms e Caríbdis, todos sob as inefáveis formas da tinta riscada, despejada, salpicada dos desenhos brutos de Cerqueira. A catástrofe ganha ainda mais sentido, táctil, performativo, através do necessário gesto do leitor em desfazer o jornal para que possa ver os desenhos. A glória da nau de Vasco da Gama, tomada eventualmente como símbolo (pífio e cansado) de uma qualquer portugalidade evanescente, é aqui torturada pelos acasos da história (como quem diz para não esquecer que a par d’Os Lusíadas, os Descobrimentos devem ser temperados pela História Trágico-Marítima e pela Peregrinação), incorporados na prática de Cerqueira, sem virtuosismo, sem equilíbrio, sem ponderação, e talvez mesmo sem medo.
Os joelhos em sangue sobre a neve, cujo formato recordará Alma Picada (publicação ao comprido, com papel de toalhas de mão dobradas, em edições pequenas mas em que cada objecto é único, uma vez que os desenhos são repetidamente redesenhados para cada uma das páginas) está associado a uma outra exposição havida no mesmo espaço, em curso, cujo título é Lição no. 2, mas está ainda associada às peças com as quais Cerqueira participou do recente prémio EDP jovens artistas e àquelas que estão em produção para uma exposição a haver no Espaço Avenida, intitulada Entrocamento. Estes desenhos, simples, rabiscados, brutos, parecem ser apontamento ou ilustração de acções de performance, de instalações – esta imagem que mostramos ecoa a instalação e vídeo Perder as Graças -, em larga medida com características bem próximas dos projectos de Mauro Cerqueira na esfera artística em que participa. Os joelhos... termina com uma citação de O Marinheiro que perdeu as graças do mar, de Mishima (não identificado), mas desligando-se da violência que lhe é inerente (explorada de modo mais directo por Tiago Manuel na exposição que teve no CCB, e que presumimos vir a tomar a forma de uma publicação num futuro próximo) ou pelo menos adiando-a para “fora” do livro, deixando-a apenas como ambiente latente, ponto que nos obrigue nela a pensar sem que ganhe forma directa. Cria-se antes, com essa mesma citação operando sobre os desenhos, uma espécie de tensão de contornos fluidos, idêntica àquela que é descrita no trecho de Mishima, em torno de uma piscina vazia (a qual estabelece outros jogos de associação com uma cultura jovem urbana explorada bastas vezes por Cerqueira, a saber, a do skate).
É também de Broch a afirmação de que “a nossa prática actual da arte já não é um ofício divino”, a qual nos coloca numa questão: aperceber-se-á este artista, talvez, mesmo que não discursiva ou intelectualmente, dessa perda de natureza? Será mesmo essa perda, ainda que adivinhada, que o coloca num caminho da precariedade – dos materiais, da linguagem, da discursividade eventualmente positiva? É como se se apercebesse estar “cá em baixo”, “cá fora”, e olhasse para o “cima” e o “dentro” e o único modo de expressar essa perda, essa pena, fosse através da fragilidade, do acto violento, do acto destrutivo, “no future”. Os traços dos seus actos e peças para essa ideia concorrem.
Displicência, negrume, agrura, tédio, pequenas violências e ódios que se vão formando, alguns deles mesmos virados contra a própria pessoa, são as características conceptuais que parecem evolar-se de todos os estes textos, e que o colocam, ao artista, num maior grupo de autores que exploram esta espécie de descontínua insatisfação e pouco à-vontade com o resto do mundo. Tratar-se-á de uma estratégia pensada, de um traço típico de um fazer artístico, uma mania, ou uma profunda e verdadeira irritação que se forma? Serão estas publicações, negligentes para com um certo estilo, uma certa qualidade e até uma coerência (Mauro Cerqueira explora, com André Sousa, um espaço chamado Uma certa falta de coerência), desprovidas de estilo, qualidade e coerência? É óbvio que não; caso o fossem, dissipar-se-iam no nada: existindo, participarão de um estilo, de uma qualidade e de uma coerência, tudo o que apenas se torna observável na continuidade e desenvolvimento do trabalho do seu autor. A ver.
Nota: agradecimentos ao autor, pela oferta de ambas as publicações. A primeira está à venda por 3 Euros, a segunda (de apenas 50 exemplares "únicos"), por 20 Euros, ora no Espaço Campanhã (aberto por marcação) ora junto do próprio autor, contactável pelo seu blog.
The Three Paradoxes. Paul Hornschemeier (Fantagraphics)
O objectivo de um paradoxo é provocar um ora breve ora permanente rombo na percepção comum, na opinião infundada, ou na aceitação de uma ideia sem que se procurem os fundamentos dela. Enfim, criado mesmo na hipótese de que o descubramos falso ou mesmo patético, obriga-nos porém a procurar as razões para o demolir e, ao fazer essa procura, presenteia-nos com algo que não possuíamos ao princípio, por jamais as termos procurado e auscultado, a essas razões. Os paradoxos de Zenão continuam a ser capazes de, de época em época, redespertarem o seu interesse, que cada vez menos se revelam ser meramente numéricos, físicos, ou tolamente contrários ao “senso comum”, mas reveladores de incertezas da ontologia e teleologia da existência, cuja certeza é precisa e unicamente a de serem incertas (passos que a própria ciência moderna persegue e aceita). Enfim, os paradoxos de Zenão – se bem que estejam à procura de uma fundamentação das teorias de Parménides contrárias à intuição da mudança – ainda nos obrigam a “parar para pensar” ou pelo menos a desdobrar a cada passo do pensamento e de cada passo do pensamento todas as suas potencialidades (nesse sentido parece-me que se aproxima da ideia da “dobra”, conforme a lição de Leibniz através de Deleuze).
As perguntas, portanto, são: qual será o trio neste livro de Hornschemeier?, qual será a dobra que se procura abrir e revelar?, quais os movimentos interrompidos nessa pesquisa? Poderemos encontrá-lo no plural, nas várias “camadas” em que se desdobra um elemento em três distintas faces. Tomemos o tempo, para começo. Uma forma relativamente simples de entender o tempo é, obviamente, a divisão entre o passado, o presente e o futuro, que fazem todo o sentido e nada têm de banal. É, porém, necessário procurar que máscaras é que essas facetas do tempo (algo que se sabe o que é até que nos perguntam, como diz Santo Agostinho) assumem em The Three Paradoxes. Este livro segue tão simplesmente a vida ou um episódio curto da vida de um autor de banda desenhada, chamado Paul (apontando a uma linha finíssima entre a ficção e a autobiografia), numa curta estadia em casa dos pais, antes de vir a encontrar-se com uma mulher com quem se correspondeu mas nunca se encontrou ao vivo, Juliane. Essa estadia leva-o a pequeníssimos momentos íntimos com o pai, a um passeio nocturno pela pequena cidade onde habitara, o que o leva a lembrar-se da sua infância, a um outro episódio da sua infância: mas este episódio ganha corpo gráfico no livro num tratamento diferente. É costumeiro que o “passado” seja representado na banda desenhada através de uma qualquer estratégia visível, com uma cor especial, contornos redondos das vinhetas ou algo do género; mas a transformação aqui é muito visível, já que esse episódio pretérito surge como se fosse impresso em meio-tom, o modo clássico de impressão da banda desenhada nos anos 70-80, que é quando se adivinha passar esse episódio (pelas contas das idades, as modas, breves referências). Em contraste, o presente é mostrado de um modo mais claro, distinto. O futuro, por sua vez, apenas tem direito à presença nas palavras do protagonista, naquilo que adivinha antes de conhecer Juliane e no diálogo que “treina” no carro.
Mas há outras “camadas” que se formam na história e que complicam esta interpretação. Em primeiro lugar (?) temos a própria história de Paul-o-protagonista, que enquadra todas as restantes. Ao longo de The Three Paradoxes, para além dessa linha principal, surgem outras narrativas, cada qual em estilos diferentes: primo, a banda desenhada que Paul-o-protagonista está em curso de fazer, da sua série infantil “Paul e o lápis mágico”; secundo, aquela que é sempre introduzida por uma câmara fotográfica e que representa o passado já referido, ou talvez antes uma versão em banda desenhada do passado recontado por Paul-o-protagonista, e para a qual precisa de fotografias como referência – ou seja, estaremos a observar esse passado real, uma “imaginação em banda desenhada” desse passado, ou um projecto que futuramente criará, como se se tratasse de uma prolepse?; tertio, a estranha narrativa que parece dar conta da vida de um empregado de mercado chamado Matt com uma enorme cicatriz no pescoço, aliás, a história que dá conta da origem dessa cicatriz: como se fosse uma “imaginação em banda desenhada”, de novo; e finalmente, quarto, “Zenão e os seus amigos”, uma revistinha de banda desenhada, que explicita o pensamento de Zenão num estilo reminiscente de bd infanto-juvenil, e que parece introduzida no próprio livro que estamos a ler, com uma paginação diferente de tudo o resto. Os estilos, portanto, diferenciam-se não apenas no que diz respeito ao desenho, sobretudo nas proporções anatómicas das personagens, mas também a um nível diferenciado do trabalho taylorista do mainstream norte-americano, esta história apenas a lápis azul, aquelas com colorações diferentes, etc. Estas mudanças de estilo não são novidade, nem em relação a Hornschemeier, mas uma opção pensada, como havia sucedido em Sequential e Mother, Come Home, ou noutros autores, como Ice Haven, de Clowes, muitos dos projectos de Alan Moore, o recente The Eternal Smile, de Gene Luen Yang e Derek Kirk Kim, etc. São modos visíveis de “dar a ver” essas “camadas” a que me referia anteriormente.
Há momentos no passeio nocturno em que Paul tira fotografias dos espaços que o rodeiam, a cidade onde cresceu, ou do pai: mas se no caso deste último não se opera qualquer transformação na superfície do que vemos, nos outros casos as fotografias introduzem narrativamente a analepse, para o passado e adolescência de Paul (ou prolepse, no caso de obra projectada no futuro, ou simplesmente imaginação potencial, que não ganha corpo no seu universo, mas sim no nosso – afinal, estamos mesmo a ver essas páginas; no entanto, enquanto autor de banda desenhada, não se perceberá – aliás, é essa indistinção que torna The Three Paradoxes mais interessante – se essa percepção é “real”, se faz parte da “memória”, ou se é antes “inventada”, “imaginada”, como um projecto de banda desenhada a fazer... A banda desenhada surge assim como método eleito e preferencial de Paul-o-protagonista de criar (“Paul e o Lápis Mágico”, trabalho em curso com o qual está obcecado ao ponto de não conseguir adormecer por pensar nele), de se recordar (o passado, a adolescência), de imaginar (“A cicatriz”), e de pensar (“Zenão e seus amigos”), não só o que nos obriga a misturar todas essas acções num só nível, numa só superfície – a do próprio livro que temos nas mãos – como ainda convertendo tudo isso em ponto de partida para a análise e apreciação do próprio acto de Paul Hornschemeier com The Three Paradoxes.
No diário de Etty Hillesum, uma intelectual judia que perdeu a vida nos campos de concentração nazi e que nos legou páginas de um pensamento livre e incomodamente fraterno, lemos (a 3 de Julho de 1942) o seguinte: “a eternidade insinua-se através das minhas mais ínfimas acções e percepções”. Quando Paul-o-protagonista vai pagar a sua despesa no mercado e se apercebe da cicatriz que atravessa o pescoço do empregado Matt, seguem-se 14 páginas de uma história – imaginária, poderíamos dizer, não fossem todas elas - que explica a origem dessa cicatriz. Mas os tempos dessa história, quer o cronológico, aquele que nós mesmos demoramos a ler e a virar as páginas, quer o histórico, o que demoram as acções e vidas daquelas personagens, não batem certo com o que adivinhamos ser um breve instante na hesitação de Paul. Essa percepção ínfima de Paul transformou-se numa “eternidade” onde se desenrolam as outras histórias. E essa pausa, essa brecha, essa dobra, é aquilo que permite a Paul discutir (e imaginar) os paradoxos de Zenão, reintroduzindo ou reafirmando a sua pertinência, mesmo na sua negação por Sócrates, na nossa própria existência, enquanto aquele espaço intervalar que sempre encontramos em tudo o que fazemos ou experienciamos é que nos permite pensar.
Paul Hornschemeier, de uma maneira quase desapaixonada, institui um desafio maior: a demonstração de como, pelo menos em relação a si mesmo, a banda desenhada surge como veículo de pensamento consciente. Isto é, todos o fazem, é claro, pelo próprio acto da sua criação, que é já um modo de expressão de um pensar (um pensar fazendo). Mas Hornschemeier traz a dimensão auto-consciente, meta-referente, para o palco principal do seu fazer, colocando em segundo plano todas as outras dimensões necessárias, transformando-as em elementos ao serviço desse pensamento sobre o próprio pensamento da banda desenhada. E é nesse contínuo acto de desdobramento e auto-referência que se vão formando os paradoxos do movimento perpétuo e da pausa inevitável que habitam o coração deste livro.
As perguntas, portanto, são: qual será o trio neste livro de Hornschemeier?, qual será a dobra que se procura abrir e revelar?, quais os movimentos interrompidos nessa pesquisa? Poderemos encontrá-lo no plural, nas várias “camadas” em que se desdobra um elemento em três distintas faces. Tomemos o tempo, para começo. Uma forma relativamente simples de entender o tempo é, obviamente, a divisão entre o passado, o presente e o futuro, que fazem todo o sentido e nada têm de banal. É, porém, necessário procurar que máscaras é que essas facetas do tempo (algo que se sabe o que é até que nos perguntam, como diz Santo Agostinho) assumem em The Three Paradoxes. Este livro segue tão simplesmente a vida ou um episódio curto da vida de um autor de banda desenhada, chamado Paul (apontando a uma linha finíssima entre a ficção e a autobiografia), numa curta estadia em casa dos pais, antes de vir a encontrar-se com uma mulher com quem se correspondeu mas nunca se encontrou ao vivo, Juliane. Essa estadia leva-o a pequeníssimos momentos íntimos com o pai, a um passeio nocturno pela pequena cidade onde habitara, o que o leva a lembrar-se da sua infância, a um outro episódio da sua infância: mas este episódio ganha corpo gráfico no livro num tratamento diferente. É costumeiro que o “passado” seja representado na banda desenhada através de uma qualquer estratégia visível, com uma cor especial, contornos redondos das vinhetas ou algo do género; mas a transformação aqui é muito visível, já que esse episódio pretérito surge como se fosse impresso em meio-tom, o modo clássico de impressão da banda desenhada nos anos 70-80, que é quando se adivinha passar esse episódio (pelas contas das idades, as modas, breves referências). Em contraste, o presente é mostrado de um modo mais claro, distinto. O futuro, por sua vez, apenas tem direito à presença nas palavras do protagonista, naquilo que adivinha antes de conhecer Juliane e no diálogo que “treina” no carro.
Mas há outras “camadas” que se formam na história e que complicam esta interpretação. Em primeiro lugar (?) temos a própria história de Paul-o-protagonista, que enquadra todas as restantes. Ao longo de The Three Paradoxes, para além dessa linha principal, surgem outras narrativas, cada qual em estilos diferentes: primo, a banda desenhada que Paul-o-protagonista está em curso de fazer, da sua série infantil “Paul e o lápis mágico”; secundo, aquela que é sempre introduzida por uma câmara fotográfica e que representa o passado já referido, ou talvez antes uma versão em banda desenhada do passado recontado por Paul-o-protagonista, e para a qual precisa de fotografias como referência – ou seja, estaremos a observar esse passado real, uma “imaginação em banda desenhada” desse passado, ou um projecto que futuramente criará, como se se tratasse de uma prolepse?; tertio, a estranha narrativa que parece dar conta da vida de um empregado de mercado chamado Matt com uma enorme cicatriz no pescoço, aliás, a história que dá conta da origem dessa cicatriz: como se fosse uma “imaginação em banda desenhada”, de novo; e finalmente, quarto, “Zenão e os seus amigos”, uma revistinha de banda desenhada, que explicita o pensamento de Zenão num estilo reminiscente de bd infanto-juvenil, e que parece introduzida no próprio livro que estamos a ler, com uma paginação diferente de tudo o resto. Os estilos, portanto, diferenciam-se não apenas no que diz respeito ao desenho, sobretudo nas proporções anatómicas das personagens, mas também a um nível diferenciado do trabalho taylorista do mainstream norte-americano, esta história apenas a lápis azul, aquelas com colorações diferentes, etc. Estas mudanças de estilo não são novidade, nem em relação a Hornschemeier, mas uma opção pensada, como havia sucedido em Sequential e Mother, Come Home, ou noutros autores, como Ice Haven, de Clowes, muitos dos projectos de Alan Moore, o recente The Eternal Smile, de Gene Luen Yang e Derek Kirk Kim, etc. São modos visíveis de “dar a ver” essas “camadas” a que me referia anteriormente.
Há momentos no passeio nocturno em que Paul tira fotografias dos espaços que o rodeiam, a cidade onde cresceu, ou do pai: mas se no caso deste último não se opera qualquer transformação na superfície do que vemos, nos outros casos as fotografias introduzem narrativamente a analepse, para o passado e adolescência de Paul (ou prolepse, no caso de obra projectada no futuro, ou simplesmente imaginação potencial, que não ganha corpo no seu universo, mas sim no nosso – afinal, estamos mesmo a ver essas páginas; no entanto, enquanto autor de banda desenhada, não se perceberá – aliás, é essa indistinção que torna The Three Paradoxes mais interessante – se essa percepção é “real”, se faz parte da “memória”, ou se é antes “inventada”, “imaginada”, como um projecto de banda desenhada a fazer... A banda desenhada surge assim como método eleito e preferencial de Paul-o-protagonista de criar (“Paul e o Lápis Mágico”, trabalho em curso com o qual está obcecado ao ponto de não conseguir adormecer por pensar nele), de se recordar (o passado, a adolescência), de imaginar (“A cicatriz”), e de pensar (“Zenão e seus amigos”), não só o que nos obriga a misturar todas essas acções num só nível, numa só superfície – a do próprio livro que temos nas mãos – como ainda convertendo tudo isso em ponto de partida para a análise e apreciação do próprio acto de Paul Hornschemeier com The Three Paradoxes.
No diário de Etty Hillesum, uma intelectual judia que perdeu a vida nos campos de concentração nazi e que nos legou páginas de um pensamento livre e incomodamente fraterno, lemos (a 3 de Julho de 1942) o seguinte: “a eternidade insinua-se através das minhas mais ínfimas acções e percepções”. Quando Paul-o-protagonista vai pagar a sua despesa no mercado e se apercebe da cicatriz que atravessa o pescoço do empregado Matt, seguem-se 14 páginas de uma história – imaginária, poderíamos dizer, não fossem todas elas - que explica a origem dessa cicatriz. Mas os tempos dessa história, quer o cronológico, aquele que nós mesmos demoramos a ler e a virar as páginas, quer o histórico, o que demoram as acções e vidas daquelas personagens, não batem certo com o que adivinhamos ser um breve instante na hesitação de Paul. Essa percepção ínfima de Paul transformou-se numa “eternidade” onde se desenrolam as outras histórias. E essa pausa, essa brecha, essa dobra, é aquilo que permite a Paul discutir (e imaginar) os paradoxos de Zenão, reintroduzindo ou reafirmando a sua pertinência, mesmo na sua negação por Sócrates, na nossa própria existência, enquanto aquele espaço intervalar que sempre encontramos em tudo o que fazemos ou experienciamos é que nos permite pensar.
Paul Hornschemeier, de uma maneira quase desapaixonada, institui um desafio maior: a demonstração de como, pelo menos em relação a si mesmo, a banda desenhada surge como veículo de pensamento consciente. Isto é, todos o fazem, é claro, pelo próprio acto da sua criação, que é já um modo de expressão de um pensar (um pensar fazendo). Mas Hornschemeier traz a dimensão auto-consciente, meta-referente, para o palco principal do seu fazer, colocando em segundo plano todas as outras dimensões necessárias, transformando-as em elementos ao serviço desse pensamento sobre o próprio pensamento da banda desenhada. E é nesse contínuo acto de desdobramento e auto-referência que se vão formando os paradoxos do movimento perpétuo e da pausa inevitável que habitam o coração deste livro.
4 de maio de 2009
Adeus, Vasco Granja.
"Olá, amigos..."
Não tem nada a ver com nostalgia. A nostalgia é uma dor que apenas encontra no passado as coisas boas e apaga as más e nos faz vê-lo como intrinsecamente melhor do que o presente (e que transforma o futuro num incerto medo, mais do que num desafio para se crescer). Mas quando uma pessoa destas morre, alguma mossa deve deixar, e nós deixá-la visível devemos.
Vasco Granja tem a ver, a meu ver, com uma capacidade de educação sem proselitismo, com uma capacidade de descoberta ampla, e de uma descomprometida capacidade de preservar uma certa maravilha ao longo da vida.
Quanto mais aprendo sobre animação, por exemplo, mais me apercebo que - qual lição de Platão - descubro que não estou a ver novidades, mas a ver em adulto aquilo que já havia conhecido em criança e, as mais das vezes, através dos programas de Vasco Granja (Um exemplo? A Fome, de Peter Foldes). Quanto mais releio aspectos que aprendera há muito sobre banda desenhada, mais redescubro terem-se tratado de artigos de Vasco Granja (na tintin, por exemplo).
Quando da produção do Verbd, pensámos - o realizador e eu - em contactá-lo para o convidar a fazer um depoimento. Infelizmente, a sua condição física e de saúde não o permitiam já. Ficou a pena e o desencontro. Agora é irremediável. Ou não, se, ao invés de homenagens atrozes sob a forma de torturas comerciais, se se providenciasse à recuperação da sua memória, dos seus programas, dos seus escritos (prezo um pequeno volume sobre Dziga Vertov, da Livros Horizonte, escrito por Granja). Goste-se ou não se goste, critique-se muito ou pouco, faz parte de uma herança e é com ela que temos de viver e é dela que temos de crescer.
Nunca o conheci pessoalmente, por isso não posso falar de Vasco Granja como pessoa real (que teria, invariavelmente típico da espécie humana, as suas idiossincracias). Dele aproveito então esse serviço público, essas lições, que ficaram.
Para mais: Uma entrevista (de onde retirei a fotografia), e um artigo.
Adeus, amigo.