29 de setembro de 2009
The Toon Treasury of Classic Children’s Comics. Spiegelman e Mouly, eds. (Abrams)
Há, neste livro, duas linhas que se juntam. Por um lado, há aquela linha a que demos o nome de “recuperação da memória” a propósito de estarmos a viver num tempo em que há uma particular atenção pela possibilidade de fazer aquilo que, na banda desenhada, passaria por “edições críticas” (ou “diplomáticas”). Se bem que sempre existiram gestos de manter acessíveis toda uma série de “clássicos”, havia como que ou um número fechado pelas editoras com capacidade de fazerem um trabalho sustentado, de qualidade material e com visibilidade, ou então uma atenção mais ampla mas com instrumentos editoriais mais limitados (neste último campo, poder-se-iam falar das edições de Manuel Caldas, entre nós, os The Nemo Booklets of Classic Comics). Mas agora, quer nos Estados Unidos quer em França (em Portugal, gestos tímidos) há toda uma massa de edições de obras completas, de arquivos, de antologias mais arqueológicas, que se unem ao “empacotamento” e à divulgação para fabricar tomos mais condignos. Por outro lado, a segunda linha é uma inversão curiosa. Já lá iremos.
Art Spiegelman e Françoise Mouly, como se sabe, são os grandes responsáveis pela revista Raw, um projecto editorial nova iorquino cuja primeira série atravessou os anos 80, e num formato gigante - e a segunda série, até ao início dos anos 90, menos portentosa, mas não menos importante -, e cujos conteúdos eram igualmente portentosos. Aliavam-se os gestos do underground, do post-punk, do new wave, do post-post e mais uma mão cheia de movimentos heterogéneos e transdisciplinares da época, os experimentalismos formais de Spiegelman, a sua lenta e dolorosamente produzida auto-e-alterbiografia Maus, traduções para inglês de autores fundamentalmente contemporâneos de outros países (Tardi, Masse, Tsuge, Mariscal, Muñoz, Swarte), repescagens de autores antigos e/ou esquecidos (Herriman, Fletcher Hanks, Doré), e uma bateria de autores que marcariam as épocas a vir (Panter, McGuire, Ware, Sala, Sikoryak): tudo isto contribuía, de uma forma indelével, para o que foi baptizado, nos Estados Unidos, como a chegada da “idade adulta” da banda desenhada (para o que concorreriam também as fantasias de ultraviolência de Frank Miller e as distopias cruas de Moore). [Curiosamente, em França a banda desenhada tornou-se “adulta” por volta dos anos 60 através da introdução do erotismo... o que nos poderia levar a uma dicotomia entre Guerra/Amor, E.U.A./Europa, se isso nos levasse a algum lugar... não leva]. A frase “Comics aren’t for kids anymore!”, numa quantidade de artigos jornalísticos ou de blurbs em livros, tornar-se-ia um pavilhão tantas vezes hasteado que o pano se começou a desfiar... A “inversão curiosa” está no facto de que Spiegelman e Mouly, sendo responsáveis pelo apoio e emergência dessa nova atitude aberta, adulta e cosmopolita perante a banda desenhada e a ilustração (Mouly enquanto directora de arte da New Yorker, grande farol da ilustração internacional), que levaria ao aparecimento de novos caminhos na criação e edição desses campos – de que a recente antologia Abstract Comics pode ser um possível corolário -, surgem agora com esta apresentação de uma antologia que reza na contracapa: “Comics: not just for grown-ups anymore!”.
Claro está que teríamos de revisitar mais uma vez a história da banda desenhada em termos globais e internacionais, em que se poderia falar da sua emergência junto a um público adulto, nascendo da caricatura política e social, do círculo de edição dos jornais ilustrados e que apenas paulatinamente foi sendo arrestada pelo mundo infantil, de que os anos 30 a 60 (dos dois lados do Atlântico) foi a, sobejamente repetida, “Idade de Ouro”. Há, portanto, um consenso em relação a esse período como uma época particularmente gloriosa em termos de presença e importância no mercado junto às crianças, levando a que todo o meio, toda a linguagem, todo este modo de expressão, passasse a ser confundido com apenas um sector dos seus leitores, de um modo pouco comum noutras áreas da criação.
Toon Treasury faz uma colheita dessa lavra imensa – como se pode depreender por esta fotografia incluída, de um típico stand de comics na altura - para re-apresentar alguns trabalhos. Nesse sentido, e ainda aliado aos gestos contemporâneos de recuperação, está próximo de antologias como a Art Out of Time, por exemplo, mas mais ainda dos esforços de editoras tais como a Dark Horse, com a colecção da Little Lulu e as séries dedicadas às personagens da Harvey Comics, ou a Drawn & Quarterly que foca sobretudo na obra de John Stanley, com vários dos seus trabalhos menos famosos entre nós. Algum do material que corresponde à colheita desta antologia teve passagem por Portugal, sobretudo pelas mãos das brasileiras Abril e Ebal, mas as únicas coincidências são precisamente as histórias da Luluzinha e companhia (poderíamos apontar o Supermouse, mas as histórias publicadas no Brasil não correspondem nem à fase nem ao estilo do que se encontra em Toon Treasury). De alguma forma, esta antologia é similar ao curioso título balbuciante A Smithsonian Book of Comic-Book Comics, publicado em 1981, que pretendia ser um retrato antológico de um certo estado da nação no que dizia respeito a esse formato em particular (ainda que Toon Treasury seja maior, isto é, mais próximo do formato original dos comics-books de então, maiores do que os actuais) – e contraponto ao monumental Smithsonian Collection of Newspaper Comics.
Para nos atermos à escolha de Spiegelman e Mouly, que adiantam de um modo claro as balizas do seu projecto – em termos cronológicos, de público-alvo, de géneros, e editoriais – poderíamos desejar ver uma mais ampla escolha que, não obstante o valor dos autores presentes, tivesse dado uma maior atenção a outros materiais que fossem mais difíceis de obter por via de outras fontes (basta olhar para os títulos para criar vontades). A título de exemplo, e ao círculo da Disney, e ainda que em detrimento de Barks, ter olhado a Tony Strobl, Jack Bradbury, Bill Wright, ou às histórias de Bucky Bug. Mas essas ausências não podem ser vistas como entrave, já que estas considerações não são críticas, mas generalistas... Aprende-se muito com Toon Treasury.
As histórias incluídas de Barks (uma das melhores que conheço: “Tralla La”/“Paraíso Perdido”) e de Stanley (sobretudo as com Irving Tripp, cujo estilo gráfico é o mais reconhecido do público português; aqui inclui-se “Five Little Babies”, presumo eu que igualmente reconhecida) são sobejamente conhecidas, e continuamente revisitadas em algumas colecções. Mas descobrem-se aqui outros trabalhos de Stanley, não apenas Melvin the Monster, mas um fabulosamente geométrico cão chamado Jigger; muitos trabalhos de Walt Kelly, o qual seria reconhecido pela versão “adulta” de Pogo, enquanto alegoria e sátira política, na esfera da banda desenhada de fantasia, de animais, infantil; o trabaho de George Carlson, que havia sido incluído nas antologias da Smithsonian e Art Out of Time; uma série comovente de Sheldon Mayer, Sugar and Spike; Dennis the Menace em versão banda desenhada, numa genial história sobre linguagem, de Al Wiseman e Fred Toole; Intellectual Amos, de André LeBlanc, uma personagem que parece derivar da quantidade assombrosa de “personagens-criança de cabeças carecas gigantes”, i.e., bebés actuantes, mas que envereda por territórios de didácticas estranhas; histórias de uma página só de pura parvoeira, com Burp, The Twerp, de Jack Cole (sim, o autor de Plastic Man); um não menos idiota e divertido Nutsy Squirrel, por Woody Gelman e Irving Dressler; um pessoalmente preferido: a história em banda desenhada, escrita pelo famoso Dr. Seuss e ilustrada por Phil D. Eastman, de Gerald McBoing Boing, dos famosos desenhos animados da UPA. E muitos outros.
As secções que organizam o livro poderão ser esclarecedoras: “Hey, Kids!”, mostrando sobretudo histórias em que são as crianças as protagonistas das aventuras; “Funny Animals”, que penso ser claro o suficiente; “Fantasyland”, que aponta para todo aquele universo de referências dos contos tradicionais ou de fadas; “Storytime”, em que se procura uma maior concentração da estrutura narrativa mais alargada, e conturbada; “Weird and Wacky”, reservada àquelas peças em que a liberdade figurativa e narrativa é total. No entanto, muitas das personagens citadas acima encontram-se espalhadas em várias categorias (Intellectual Amos, Donald Duck, Little Lulu), e alguma delas estão desde logo abertas à recolocação (não poderemos ver os patos de Barks como “funny animals”, de uma perspectiva?).
Alguns autores - ou mesmo histórias - conhecidos de outras esferas encontram-se nesta antologia, o que traz uma nova perspectiva sobre esses mesmos trabalhos: para além de Jack Cole, salientem-se Harvey Kurtzman, com três pranchas do Hey, Look!, uma história do Capitão Marvel de C. C. Beck e Pete Constanza, que mostra os perigos do Surrealismo, Basil Wolvertoon, com algumas das suas horrendas Foolish Faces e uma história de Powerhouse Pepper, e o vaudevilliano Milt Gross, com Patsy Pancake.
Os trabalhos reunidos aqui criam um corpo comovedor, divertido, louco, suave, como a melhor banda desenhada infantil pode eventualmente ser. Se ela é, também, uma forma de entretenimento – sendo um veículo, uma forma de arte, pode transportar o que lhe for possível – nada disto obsta à sua apreciação mais ampla. Mas nenhum destes exemplos é delicodoce e, mesmo quando parece estar a construir-se um discurso pedagógico (como nas histórisa de Intellectual Amos), o desfecho é totalmente caótico. A linha que dá continuidade a estes pequenos espectáculos gráficos e de narrativas screwball encontrar-se-ão nas histórias do “Louco”, de Maurício de Sousa, na série Sardine de l’Espace, no programa Yo Gabba Gabba!, nos desenhos animados de John Kricfalusi.
Este livro não ensina a atravessar a rua na “zebra”. Ensina-nos a cavalgá-la para caçar semáforos.
27 de setembro de 2009
Logicomix. An Epic Search for Truth. Apostolos Doxiadis, Christos H. Papadimitriou, Alecos Papadatos e Annie Di Donna (Bloomsbury)

A trama acompanha como que três linhas narrativas. Por um lado a contemporaneidade com toda a equipa criativa deste mesmo livro, uma espécie de trama meta-referencial, que tanto serve de enquadramento das questões centrais, como plataforma de apresentação e comentário da parte dos autores, como ainda espelho das consequências mais imediatas ou mais profundas da revolução que dão a ver. Por outro, acompanha-se “na íntegra” uma conferência dada por Bertrand Russell numa universidade norte-americana, a 4 de Setembro de 1939, precisamente no dia em que a Inglaterra declarara guerra à Alemanha, conferência intitulada “O papel da Lógica nos assuntos humanos”, e onde Russell, pacifista, e confrontado com toda a sorte dos isolacionistas americanos (que tanto englobavam simpatizantes nazis como verdadeiros objectores de consciência). É a partir dessa conferência, que se torna uma conversa quase biográfica da parte de Russell, que chegamos à terceira linha narrativa, e onde Russell se torna então narrador de segunda ordem (e moldador da narrativa que conta, naturalmente): desde a infância do filósofo inglês, passando por todo o seu estudo, crises e descobertas, os encontros sucessivos quer com os mestres (Frege, Whitehead) quer com seguidores (que se tornariam também mestres, como Wittgenstein e Gödel), e, claro, episódios da sua vida privada, doméstica (os autores explicitam no fim, através de um série de notas, quais os pontos em que tomaram “liberdades poéticas” e revelam fontes, gestos generosos que tornam a ficção, o relato, ainda mais “natural” na sua estruturação).


Se bem que o tom do sub-título de Logicomix, e algumas afirmações dos seus autores, narradores e/ou guias sejam bombásticas demais – falando de “verdadeiros super-heróis”, “uma tragédia a nível pessoal”, “uma batalha contra as forças ilógicas”, etc. -, é verdade que se procuram desenhar as linhas que essa “saga”, essa “demanda” lançou nas mais variadas esferas da existência humana, apercebamo-nos delas ou não, vislumbremos essas consequências ou não, utilizemo-las ou não. As contradições fazem parte da vida humana, e nem todos os seus domínios poderão ser cobertos pelos mapas da lógica, e há espaços em que este livro deixa ver essas zonas de indeterminação ou “escape”.

Uma outra imagem que surge várias vezes, segundo leit-motiv da obra, e de novo não apenas sobre Russell-personagem, mas sobre todas as personagens, é a ideia do mapa. Não só toda esta demanda, isto é, “a demanda pelos fundamentos da matemática”, é vista como uma “Odisseia incompleta”, como a “certeza lógica” ocupa o “papel de Ítaca”. Além disso, e ligando ambos os motivos – mapa e loucura – o mapa é por vezes confundido com o próprio mundo, servindo, desta feita, não apenas como rememoração de uma história de Borges precisamente sobre a hubris eventualmente associada com a busca da maior exactidão possível da ciência, como também para delinear de uma forma candidamente integrada o inerente abismo da loucura que parece ter afectado todas as personagens arroladas neste relato, de uma forma ou outra. Wittgenstein, algures na sua obra (Aulas sobre fé religiosa?), discute o facto de que um milagre não pode ser explicado pela ciência, não por existir mesmo um milagre, não por a ciência não ser exacta o suficiente para o negar, mas por serem dois sistemas incompatíveis. Também a última frase do Tratado aponta para a incomensurabilidade (é provável que quem a entenda totalmente a possa aproximar do Teorema da Indecidibilidade de Kurt Gödel) de certas questões, da sua irredutibilidade ao conhecimento e compreensão humanas, aos instrumentos da Lógica, enfim: “7. Acerca daquilo de que se não pode falar, tem que se ficar em silêncio”. E não nos podemos esquecer que, apesar dessa tentativa dos Gregos a Leibniz a Russell a Wittgenstein de criar uma “linguagem ideal”, Wittgenstein, com Investigações Filosóficas, atacaria essa ideia, inclusive a que ele próprio apresentara antes... É como se tudo concorresse para a ideia de que quanto mais se discursa mais nos aperceberemos da incapacidade final em esclarecer algo.
Não sem se revestir com uma faceta curiosa, os autores encontram na banda desenhada, uma linguagem artística que parece em nada se prestar à busca da lógica e da racionalidade (os próprios autores sublinham o modo como este veículo se presta aos “heróis”, que estas personagens arroladas não deixam de ser aos seus olhos), uma “linguagem ideal” para o relato não só de toda esta demanda, como de todas as suas complexas contradições e perigos, balanço entre o arrazoado discurso e o súbito desregulamento passional. O próprio título do livro ganha assim uma segunda interpretação, após a sua leitura atenta.
Nota final: agradecimentos a Ana Alves Pereira e Rui Carrilho, pelo empréstimo do livro.
25 de setembro de 2009
Masterpiece Comics. R. Sikoryak (Drawn & Quarterly)

Kuti Kuti no. 13

Para além da meia-dúzia de autores que já costumamos encontrar nestas páginas (inclusive o português André Lemos, com a mesma história da Crack On, mas com muito mais tremas), este número tem ainda um artigo deste vosso criado sobre a cena da banda desenhada em Portugal. Por uma qualquer razão, utilizaram como imagem principal uma ilustração de um autor espanhol (julgo que não a enviei por engano), há uma gralha enorme no título, etc. E, como apenas havia espaço para duas páginas, o texto acaba por se cingir a uma apreciação muito global, superficial e curta, seguida de alguns links para blogs dos nossos autores (igualmente truncada em relação ao que enviei).
Enfim, oços do ofíssio.
Mais informações, aqui.
22 de setembro de 2009
Abstract Comics. Andrei Molotiu, ed. (Fantagraphics)
A banda desenhada é entendida de vários modos, ora procurando a sua matéria de expressão na peculiar relação provocada entre o texto e as imagens, ora sublinhando-se a sua qualidade intrínseca da sequencialidade, ora buscando
um significado inanalisável que emerge das relações “invisíveis” dos espaços intervinhetais... A questão é que, não sendo a banda desenhada uma arte determinada tecnologicamente como a fotografia ou o cinema, é porém, como elas, filha de um momento na história (mais ou menos dilatado, conforme a atenção e interesse do investigador, que pode cristalizar uma “origem” no advento da imprensa, numa particular técnica de impressão – a autografia de Töpffer - ou mesmo de distribuição – os jornais norte-americanos, etc.) que a torna associada a uma qualquer tecnologia por contiguidade. E, logo, ela nasce no seio da sua própria experimentação, não podendo reportar-se a séculos de práticas que se vejam como norma, clássicas, modelares. Vejo-a, portanto, como uma disciplina que se vai desenvolvendo com uma negociação que lhe é própria, atravessando crises particulares, encetando caminhos específicos, intentando variações mais ou menos felizes e com continuidade que lhe ampliam a circunferência. Há experiências que, tendo sido fulgurantes em termos de sucesso crítico e comercial, não tiveram continuidade real, como a obra de McCay o
u de Herriman, exemplos maiores (e também poderíamos apontar a de Gustave Verbeek, cuja importância na história tem sido relativamente pertença dos especialistas, o que se corrigirá talvez com a recente edição do seu trabalho). Ou a de Martin Vaughn-James, de quem o livro The Cage abriu uma porta para algo que não pode ser caminho de outrem. Algo muito diferente, portanto, do que aconteceu à arte de um Saint-Ogan ou de um Hergé, por um lado, ou de um Canniff, por outro. Todavia, aquela falta de continuidade não pode constituir nem um problema nem sequer algo criticável, já que em qualquer campo criativo os artistas que atingem uma linguagem “demasiado” única não pode deixar herdeiros (a título de exemplo, quem poderia querer carregar um projecto como Finnegans Wake sem se ocultar na sombra de Joyce, ou explorar os caminhos de Stan Brakhage ou Michael Snow sem parecer um epígono?).
Nada disto obsta a que não encontremos, por um lado, um “experimentalismo”, que só pode surgir na continuidade de normas e modelos e cânones que se vão formando ao longo da história de um meio, de uma arte, razão pela qual me apoio na ideia da narrativa histórica, de Noël Carroll, para encontrar princípios definidores da banda desenhada – é essa narrativa que permite não só não legislar no absoluto, como recontar um determinado percurso que levou a uma particular obra de arte. Sem esse recurso contextualizador, existem obras de arte “ultrapassadas”, “não vale a pena olhar para trás”, ou continuam sem se perceber os gestos de Duchamp, Len Lye, Richter, Cage, Beuys, Snow, Brakhage, Joyce, Vaughn-James, Klimowski... o que seria ridículo. É essa narrativa histórica que nos permite ver, então, alguns autores como experimentais e outros como clássicos (mesmo que tenham inventado novas estratégias visuais, ou fundado uma “ideia”, fundaram também a sua continuidade, diluindo esse gesto único).
Por outro lado, e de um modo paradoxal, é o que também nos ajuda a criar uma “tradição”, nas palavras de Andrei Molotiu, o editor desta antologia que aqui discutimos, uma continuidade de trabalhos aparentados por uma qualquer perspectiva, mesmo que se entenda que essa continuidade não é mais do que uma ilusão, visto que os autores trabalharam relativamente separados e, muitas vezes, com desconhecimento uns dos outros. Na verdade, é aqui que funciona o conceito de Wittgenstein do “ar de família”, permitindo englobar num mesmo descritor vários elementos. O editor elegeu um punhado de princípios e, seja como for, está informado não só por ele próprio ser um cultor e estudioso deste “tipo” de banda desenhada (no seu blog, blotcomics) como também por conhecer a rede de autores que têm trabalhado este território, “rede” permitida pela internet.
Usualmente, quando se começa a procurar este tipo de trabalhos, há como que um movimento de espiral em expansão que, ao longo de todas as linhas de fuga que o “ar de família” permite, se começam a abarcar trabalhos que são aparentados com o seu vizinho, mas que à medida que o movimento se expande e os exemplos se multiplicam, já nada têm a ver com o ponto de partida. Por essa razão, Molotiu exibe, não tanto um conjunto de regras cristalizadas, mas algum método de trabalho, um princípio, para que nem tudo possa ser encontrado no interior do seu gesto editorial. Por exemplo, sempre que se verifique somente um problema de figuração, isto é, em que as personagens são representadas através de formas ora geométricas ora abstractas mas tudo o resto se mantém num programa claro de narrativa, texto, etc., não fará parte do campo abstracto (imagino que um bom exemplo sejam as variações de Tatanka, de Felipe H. Cava e Raúl, publicado entre nós na Quadrado, Vol. 3, no. 1). Ou então quando existem dissoluções de todos esses parâmetros, mas se mantém um qualquer grau de legibilidade, iconicidade, referencialidade, etc., que evitam uma sua leitura abstracta (como acontece, penso, com T.N.T. en Amérique, de Gerner).
O editor estava interessado em procurar uma diferença de natureza, e não de grau. Interessava-lhe um certo aglomerado de ausências: ausência de trama narrativa, ausência de representação nas imagens, ausência de “um espaço diegético unificado”, como disse numa entrevista. Têm de ser, portanto, independentes das projecções dos leitores-espectadores, ou das suas intenções, questão que pode assumir contornos muito complexos. Basta recordarmo-nos das quantidades de manchas de bolor ou de humidade no mundo que são “vistas” como o rosto do Cristo...
O texto de introdução é uma breve mas excelente acção de desenhar um círculo amplíssimo da “pré-história” deste campo de trabalhos. Molotiu engloba na sua introdução o trabalho de “ilustração infantil” (quão redutor parece ser esta aplicação) de El Lissitzky, Suprematicheski Skaz (traduzível, pelo que entendo, por “Sobre dois quadrados”, ou “A história de dois quadrados”, e consultável, na íntegra, julgo, aqui, apontando para a facilidade das tais projecções de características animadas (previstas ou mesmo desejadas no trabalho do construtivista). Um nome que confesso me era desconhecido até agora é o de Kurt Kranz: as suas experiências gráficas, sob a forte influência dos filmes de Walter Ruttman e Hans Richter, e de acordo com Molotiu, poderá ter influenciado Kandinsky e Klee, seus professores na Bauhaus, em alguns trabalhos pontuais destes que mostram a ideia de sequência, de divisão do plano de composição em planos menores (isto é, uma “prancha” com “vinhetas”) e tendo a ideia da metamorfose das figuras “abstractas” no seu seu interior. É bem possível que venhamos a encontrar mais material deste artista graças à força da inércia provocada pela edição deste livro, e até mesmo num eventual segundo volume de trabalhos desta natureza, que se adivinha possível, dados os esforços de concertação e produção de novos trabalhos que o livro e o blog-companheiro, no qual mais material dos autores antologiados se apresentam, desencadearão.
O primeiro trabalho da antologia propriamente dita é a famosa história de Crumb, “Abstract Expressionist Ultra Super Modernistic Comics” (senão sob a influência directa dos efeitos provocados pelo LSD, pelo menos tangencial, irónica até), a qual inclui letras, figuras não-abstractas, mas que não obstante não coalescem num sentido, digamos, consensual. E é para essa dissolução que os restantes trabalhos caminham.
Os interesses de Molotiu, enquanto professor de História de Arte, especialista em Fragonard e pintura caligráfica chinesa, artista de desenho/pintura caligráfica, de banda desenhada abstracta (além de expôr o seu trabalho e publicá-lo, uma antologia do seu trabalho saiu pela dinamarquesa Fahrenheit: Nautilus), escritor assémico, etc., convergem todos nesta antologia. Quando descreve o trabalho de Gary Panter, ele explica que quase se vê “a imagem a emergir na existência, ou a desaparecer num traço puramente gráfico, ou a formar-se numa figura”. Enfim, é esta ideia que Molotiu persegue noutros locais, e que poderemos entender como uma espécie de fundo em que todas as formas ainda não o são, de onde elas partem e para onde elas retornam, plano para o qual estes trabalhos abrem e nos permitem, mesmo que transitoriamente, como deve ser, observá-lo de modo quase directo.
Apesar de alguns dos trabalhos aqui reunidos terem o princípio da metamorfose na sua base, como o Bleu de Trondheim (neste antologia apenas um excerto de duas páginas) , por exemplo, estes trabalhos obrigam-nos a ver, mais do a ler: aponta-se para uma atenção óptica, abre-se para a ideia de contemplação (mais próxima das artes visuais clássicas). Estará a noção de “abstracção” em contrasenso com a ideia da sequencialidade, que alguém viu como em oposição a simultaneidade? O problema está novamente na tal falta de integração histórica. A simultaneidade ocorre em muitos trabalhos de banda desenhada, e algumas pranchas de Fred, de J. H. Williams em Promethea, de Verbeek, levantam essas questões no próprio seio da legibilidade sequencial... Tal como nas capicuas visuais de Escher, há uma potencialidade de delinear um percurso, mesmo que este seja infinito e todas as suas partes sejam passíveis pontos de entrada e de saída (dessa mesma leitura).
Pierre Fresnaut-Deruelle, no seu seminal artigo “Du linéaire au tabulaire” institui como que dois pólos de leitura da banda desenhada, os quais, na verdade, são empregues sempre, de modo cumulativo, concomitante, e intercalado na leitura de qualquer trabalho. Mesmo num livro dos Estrumpfes, por exemplo, ninguém força o globo ocular a não se mover e apenas ver/ler a primeira vinheta da página da esquerda, e depois mover-se controladamente para a seguinte, e assim sucessivamente. Impossível: o acto natural é que o olho varra a dupla prancha, vogue por todo o espaço de representação num ápice (os movimentos sacádicos) e depois então se centre na unidade de leitura (a vinheta, as figuras, as letras, os signos, etc.). Nunca está o olho desligado da actividade cognitiva, mas os graus de atenção são muito diversos e complexos: podemos estar a ver sem ler (mas nunca a ler sem ver. Nota pessoal: este espaço esteve para se chamar *erbd, em que “*” seria uma letra que pudesse ser lida quer como “l” quer como “v”; mas não foi possível).
As contribuições em Abstract Comics criam uma condição de possibilidade da leitura tabular, ou sacádica, ou contemplativa, mais do que a linear: sobretudo nos trabalhos de Warren Craghead III, Andrei Molotiu, Richard Hahn, Henrik Rehr, Patrick McDonnell (conhecido dos portugueses pela série Mutts, mas que tem trabalhos mais experimentais), e outros. O trabalho de Trondheim ou de Mike Getsiv ou de Andy Bleck não, pois as figuras que os compõem têm características formais que apontam à existência de metamorfoses internas, ou seja, a continuidade de pelo menos um eixo sobre o qual essas metamorfoses operam (e sobre as quais é mais fácil fazer projecções antropomórficas).
Por essas razões, Derik Badman (também na antologia) considerou o Bleu de Trodheim como um trabalho “minimalista” e não “abstracto”. Depois temos os trabalhos de Bill Shut e de Mark Staff Brandl, os quais, apesar de menos “morfológicos” que os de Trondheim et al., nos fazem imaginar numa qualquer progressão espacial, um deslocamento do eixo de visão em relação a um objecto, ou um comportamento mental do género (o trabalho time Lapse Growth, de Bill Shut, pode até fazer-nos recordar as óperas místico-siderais de Ditko e Starlin), ou os de Mark Gonyea e Alexey Skolin, em que a ideia de progessão visual é por demais clara.
A meu ver, apesar de ser possível uma visão distraída, desordenada, “livre” (a qual também é possível com qualquer obra de arte, mesmo a mais figurativa, mesmo a mais narrativa, e até mesmo englobando a pura distracção que ocorre quando lemos um romance e nos apercebemos estar a percorrer as letras mas não a ler, ou quando a nossa mente nos impede de ver um filme e nos leva a qualquer lado) em relação a algumas destas pranchas, a própria existência de uma estruturação obriga-nos a incorrer nesse mesmo princípio de organização e estruturação (aparentado, se quisermos, com a ideia de sequencialidade, de temporalidade e até de causalidade). De certo modo está próximo de uma ideia apresentada por Neil Cohn a que este dá o nome de “sistema de navegação” de uma prancha de banda desenhada, e Molotiu de “dinamismo sequencial”, o qual não se relaciona directamente com a estruturas narrativas ou os princípios sequenciais a que estamos habituados como seus descritores, mas sim a “padrões preferenciais” de leitura. Existem alguns estudos nas ciências cognitivas para descrever cada vez melhor e mais exactamente o comportamento óptico-cognitivo na leitura das
pranchas de banda desenhada, mas este assunto entrelaça-se com assuntos que provêm igualmente de áreas como a estética, a psicologia visual, a semiótica... enrolando-se num só bolo que estes trabalhos vêm, a um só tempo, complicar e expandir. Logo, o gesto em si é desde logo positivo. Um dos trabalhos do próprio Molotiu incluídos é “The Panic”. O próprio título parece ser uma atitude algo zombeteira da sensação que poderá provocar naqueles que querem apenas verbalizar a sua interpretação de um modo claro e absolutamente desprovido de problemas.
Numa discussão em torno precisamente deste livro, e qual a direcção a que “abstracto” nos poderia levar, a questão acaba por se centrar no “significado”, o qual, como vimos, pode ser mais projectivo do que inerente ao objecto em si. Por essa razão é que recorrer ao sistema semiótico das tríades de Peirce se torna pertinente. Este sistema é mais articulado do que o de Saussure, englobando, sempre, o interpretante, para dar conta da relação “imposta” que poderá surgir entre o símbolo e o significado. Quando olhamos para uma nuvem, esta não tem qualquer intencionalidade de comunicação (o que a coloca fora da relação simbólica de Saussure), mas a verdade é que nós vemos nela por vezes uma forma similar a um qualquer objecto (a forma de um país, um
animal), projectando nela esse significado. No caso dos trabalhos desta antologia, isso pode ocorrer de modos mais ou menos conduzidos pelas próprias características objectivas que apresentam. De novo buscando o exemplo de Trondheim, ou os de Ibn al Rabin: é óbvio que eu irei projectar conceitos na minha “leitura” destas manchas; ainda que elas tenham uma forma “abstracta”, eu encontro na relação sequencial entre elas ideias de mistura, cruzamento, consumo, transformação, conflito, etc., ainda que todas elas não sejam mais que metáforas para tentar descrever o que vejo, e não descrições objectivas dessas mesmas acções representadas (se forem "acções"). Neste caso em particular, portanto, ou pelo menos no que me diz respeito enquanto leitor individual, estou a projectar características não apenas animadas - em objectos não só inanimados como sem qualquer movimento (são manchas de linhas e cor no papel, nem sequer se trata de uma animação) – como até antropomorfizadas, ou animal-morfizadas, querendo encontrar traços do comportamento animal nessas manchas.
Claro que a própria premissa da abstracção remete a todo um espectro de potencialidades não-figurativas, representantivas, formais e possibilidades de interpretação que, à partida, se tornam um obstáculo inamovível à sua tipologização. Mas se estamos a querer falar de trabalhos abstractos no campo da banda desenhda, temos igualmente de considerar quais as características da banda desenhada que se mantêm: a ideia, por mais fantasmática que seja, da sequencialidade; os balões (mesmo que nada tenham dentro, ou que apresentem elementos visuais e/ou gráficos não-simbólicos); as palavras (ainda que o editor tenha explicado que elas têm um valor visual ou pictural antes de tudo ou exclusivamente); as composições de página com múltiplas vinhetas que nos façam pensar numa estruturação relativamente clássica.
Voltando a Peirce, e ao adjectivo “assémico” que anotámos a propósito da escrita de Molotiu (e outros autores, reunidos na antologia Asemic Magazine, editada por Tim Gaze, também presente em Abstract Comics), poderemos perguntar-nos se são de facto “assémicas” estas bandas desenhadas. Em primeiro lugar, é necessário entendermos assémico como significando menos “não ter significado” do que “não possuir signos socialmente acordados” (que tenham de atravessar por um qualquer processo de assimilação social, consensual, processo de educação). No entanto, é necessário um pequeno desvio.
Estendida ao campo da biosemiótica (seguimos aqui um escrito de Thomas Sebeok), existe uma condição taxativa nestas relações que nos interessam: não pode existir semiose sem interpretabilidade. Semiose, segundo Peirce, é a acção do signo, ou o processo do signo: há uma relação (triádica) de causa-meio-efeito ou codificação-veículo-descodificação, como por exemplo (dado por Gérard Deledalle) um oficial militar dando uma ordem aos seus soldados (evento A) os quais interpretarão essa ordem (evento B) para que possam cumprir a ordem (evento C). Para Peirce a palavra “signo” não era simplesmente algo que está em lugar de algo (para alguém, sendo este último pormenor a grande distinção em relação a Saussure), mas que ganhava duas acepções, uma através da semiose, que acabámos de apresentar sumariamente, e outra através da sua noção de representamen. Esta é, segundo a definição no Century Dictionary, um “objecto que serve para representar qualquer coisa na mente”. Apesar da complexidade desta distinção, talvez o exemplo do próprio Peirce ajude a esclarecer parcialmente a questão: “quando consultamos um mapa, o próprio mapa é o Veículo [primeira perspectiva formal sobre o representamen: a substância da representação], o país representado é o Objecto Natural [segunda perspectiva: o quasi-agente da representação], e a ideia desencadeada na mente é o Interpretante [terceira perspectiva: o quasi-paciente da representação, ou a modificação intelegente da representação]”.
Tendo em conta ambas as acepções de signo para Peirce, como poderíamos começar a descrever estes “abstract comics”? Têm ou não conteúdo semântico? Sugerem ou não ter significado? Pertencem ou não a um qualquer código ou sistema socialmente aceite? E, por fim, são ou não “banda desenhada”? As respostas não são simples. Estas bandas desenhadas – parto de um pressuposto positivo - são veículos que desencadeiam nas nossas mentes uma qualquer ideia, mas não encontramos qualquer objecto natural consensual (correndo o risco de errar ou de provocar uma interpretação errónea, penso estarmos perto do que Kant chamou de “efeito dinâmico” da nossa procura do entendimento do belo, a sua “imagem flutuante”: em que percebemos um objecto mas não o seu fim/fito). Elas provocam uma semiose (são causa, e provocam efeitos pelo meio dos trabalhos), mas é como se essa interpretabilidade não pudesse ser partilhada do modo mais comum. Provocando um “qualquer significado”, não nos permitem porém aceder a “signos socialmente aceites”. São, portanto, assémicos naquele sentido “aberto” previsto pelos seus cultores. É óbvio que a associação a certos elementos “clássicos” da banda desenhada, como os balões ou a estruturação em vinhetas, nos farão pensar em termos de “comunicação” e de “progressão”.
Todas estas questão serão respondidas, ou desafiadas, melhor dizendo, por todos os trabalhos aqui reunidos. As diferentes técnicas – tinta no papel, aguarelas, lápis, lápis de cor, colagens, manipulação digital, desenho minimal, “patchwork”, traços mais “cartoony” (os de Kochalka, inevitavelmente) -, aliadas às diferentes estratégias e presenças dos elementos “da banda desenhada” nesta variação farão pensar, por um lado, num progressivo diluir de qualquer determinação formal em relação a esta arte (aproximando-a, portanto, de disciplinas artísticas mais livres, conceptuais, onde importa mais o gesto que, por exemplo, o talento, o virtuosismo, o domínio técnico), e, por outro, na emergência fantasmática de uma ideia que os une (o nome: “banda desenhada abstracta”), mas que é, em última instância, irredutível a algo analisável directamente. Não podemos esquecer também dos modos de produção de alguns destes trabalhos: Molotiu, por exemplo, recorre à destruturação progressiva de um qualquer elemento dado (um quadro de Pollock, uma vinheta de Josie and the Pussycats ou de Tony Millionaire, uma prancha d’A Pequena Lulu, uma fotografia de uma modelo, um desenho do filho, etc.), ou a um progressivo “descascar” e subsequente “reformar” até se atingirem os estados paradoxais de articulações de elementos desarticulados. Outros autores neste livro procedem da mesma forma, sendo ora relativamente fácil ora totalmente impossível percebermos quais as fontes (o que, se nos apercebemos, se torna significativo na sua apreciação/interpretação, se não nos apercebermos, não é factor dissuasor dessa mesma apreciação/interpretação). Haverá trabalhos sobre os quais tenho uma preferência diferente, como os de Molotiu, de quem aprecio mais significativamente os trabalhos a p
reto-e-branco (e que tive oportunidade de mostrar/editar na Divide & Impera, com Warren Craghead III), mas este é um território em contínua expansão (vejam-se os novos trabalhos animados de Molotiu no seu blog), logo, toda a nova perspectiva é-o francamente.
No entanto, gostaria de encontrar uma maior discussão – não necessariamente no seio do próprio livro, mas na sua recepção crítica – em termos de como estes trabalhos, quer os históricos quer os inéditos (alguns dos quais quase criados “de propósito” para a antologia), se vêm agregar a um conjunto mais alargado do “experimentalismo na banda desenhada” que encontramos junto a outros sectores ou estratégias de criação, como, por exemplo, exemplo esse bem visível e de recepção elevada, aqueles trabalhos que encontramos na Frémok (o conjunto dos últimos livros colaborativos e transdisciplinares de Fortemps, Hasselt e Deprez, de que falámos a propósito do artigo deste último na Art & Fact para eles apontam). Ou então que papel poderá eventualmente a banda desenhada ocupar num espaço de divulgação que não o impresso: nos "white cubes" ou mesmo nas "black boxes" dos espaços museológico-galerísticos: como se poderá contrastar entre a exposição comissariada por Molotiu, Silent Pictures, e a Vraoum!, que insiste numa forma de aproximação às "Belas Artes" que considero menos propícia ao avanço da discussão necessária, se necessária ainda (?) junto ao "grande público".
Abstract Comics não se abstrai, então, dessa discussão.

Nada disto obsta a que não encontremos, por um lado, um “experimentalismo”, que só pode surgir na continuidade de normas e modelos e cânones que se vão formando ao longo da história de um meio, de uma arte, razão pela qual me apoio na ideia da narrativa histórica, de Noël Carroll, para encontrar princípios definidores da banda desenhada – é essa narrativa que permite não só não legislar no absoluto, como recontar um determinado percurso que levou a uma particular obra de arte. Sem esse recurso contextualizador, existem obras de arte “ultrapassadas”, “não vale a pena olhar para trás”, ou continuam sem se perceber os gestos de Duchamp, Len Lye, Richter, Cage, Beuys, Snow, Brakhage, Joyce, Vaughn-James, Klimowski... o que seria ridículo. É essa narrativa histórica que nos permite ver, então, alguns autores como experimentais e outros como clássicos (mesmo que tenham inventado novas estratégias visuais, ou fundado uma “ideia”, fundaram também a sua continuidade, diluindo esse gesto único).
Por outro lado, e de um modo paradoxal, é o que também nos ajuda a criar uma “tradição”, nas palavras de Andrei Molotiu, o editor desta antologia que aqui discutimos, uma continuidade de trabalhos aparentados por uma qualquer perspectiva, mesmo que se entenda que essa continuidade não é mais do que uma ilusão, visto que os autores trabalharam relativamente separados e, muitas vezes, com desconhecimento uns dos outros. Na verdade, é aqui que funciona o conceito de Wittgenstein do “ar de família”, permitindo englobar num mesmo descritor vários elementos. O editor elegeu um punhado de princípios e, seja como for, está informado não só por ele próprio ser um cultor e estudioso deste “tipo” de banda desenhada (no seu blog, blotcomics) como também por conhecer a rede de autores que têm trabalhado este território, “rede” permitida pela internet.
Usualmente, quando se começa a procurar este tipo de trabalhos, há como que um movimento de espiral em expansão que, ao longo de todas as linhas de fuga que o “ar de família” permite, se começam a abarcar trabalhos que são aparentados com o seu vizinho, mas que à medida que o movimento se expande e os exemplos se multiplicam, já nada têm a ver com o ponto de partida. Por essa razão, Molotiu exibe, não tanto um conjunto de regras cristalizadas, mas algum método de trabalho, um princípio, para que nem tudo possa ser encontrado no interior do seu gesto editorial. Por exemplo, sempre que se verifique somente um problema de figuração, isto é, em que as personagens são representadas através de formas ora geométricas ora abstractas mas tudo o resto se mantém num programa claro de narrativa, texto, etc., não fará parte do campo abstracto (imagino que um bom exemplo sejam as variações de Tatanka, de Felipe H. Cava e Raúl, publicado entre nós na Quadrado, Vol. 3, no. 1). Ou então quando existem dissoluções de todos esses parâmetros, mas se mantém um qualquer grau de legibilidade, iconicidade, referencialidade, etc., que evitam uma sua leitura abstracta (como acontece, penso, com T.N.T. en Amérique, de Gerner).
O editor estava interessado em procurar uma diferença de natureza, e não de grau. Interessava-lhe um certo aglomerado de ausências: ausência de trama narrativa, ausência de representação nas imagens, ausência de “um espaço diegético unificado”, como disse numa entrevista. Têm de ser, portanto, independentes das projecções dos leitores-espectadores, ou das suas intenções, questão que pode assumir contornos muito complexos. Basta recordarmo-nos das quantidades de manchas de bolor ou de humidade no mundo que são “vistas” como o rosto do Cristo...

O primeiro trabalho da antologia propriamente dita é a famosa história de Crumb, “Abstract Expressionist Ultra Super Modernistic Comics” (senão sob a influência directa dos efeitos provocados pelo LSD, pelo menos tangencial, irónica até), a qual inclui letras, figuras não-abstractas, mas que não obstante não coalescem num sentido, digamos, consensual. E é para essa dissolução que os restantes trabalhos caminham.
Os interesses de Molotiu, enquanto professor de História de Arte, especialista em Fragonard e pintura caligráfica chinesa, artista de desenho/pintura caligráfica, de banda desenhada abstracta (além de expôr o seu trabalho e publicá-lo, uma antologia do seu trabalho saiu pela dinamarquesa Fahrenheit: Nautilus), escritor assémico, etc., convergem todos nesta antologia. Quando descreve o trabalho de Gary Panter, ele explica que quase se vê “a imagem a emergir na existência, ou a desaparecer num traço puramente gráfico, ou a formar-se numa figura”. Enfim, é esta ideia que Molotiu persegue noutros locais, e que poderemos entender como uma espécie de fundo em que todas as formas ainda não o são, de onde elas partem e para onde elas retornam, plano para o qual estes trabalhos abrem e nos permitem, mesmo que transitoriamente, como deve ser, observá-lo de modo quase directo.
Pierre Fresnaut-Deruelle, no seu seminal artigo “Du linéaire au tabulaire” institui como que dois pólos de leitura da banda desenhada, os quais, na verdade, são empregues sempre, de modo cumulativo, concomitante, e intercalado na leitura de qualquer trabalho. Mesmo num livro dos Estrumpfes, por exemplo, ninguém força o globo ocular a não se mover e apenas ver/ler a primeira vinheta da página da esquerda, e depois mover-se controladamente para a seguinte, e assim sucessivamente. Impossível: o acto natural é que o olho varra a dupla prancha, vogue por todo o espaço de representação num ápice (os movimentos sacádicos) e depois então se centre na unidade de leitura (a vinheta, as figuras, as letras, os signos, etc.). Nunca está o olho desligado da actividade cognitiva, mas os graus de atenção são muito diversos e complexos: podemos estar a ver sem ler (mas nunca a ler sem ver. Nota pessoal: este espaço esteve para se chamar *erbd, em que “*” seria uma letra que pudesse ser lida quer como “l” quer como “v”; mas não foi possível).
A meu ver, apesar de ser possível uma visão distraída, desordenada, “livre” (a qual também é possível com qualquer obra de arte, mesmo a mais figurativa, mesmo a mais narrativa, e até mesmo englobando a pura distracção que ocorre quando lemos um romance e nos apercebemos estar a percorrer as letras mas não a ler, ou quando a nossa mente nos impede de ver um filme e nos leva a qualquer lado) em relação a algumas destas pranchas, a própria existência de uma estruturação obriga-nos a incorrer nesse mesmo princípio de organização e estruturação (aparentado, se quisermos, com a ideia de sequencialidade, de temporalidade e até de causalidade). De certo modo está próximo de uma ideia apresentada por Neil Cohn a que este dá o nome de “sistema de navegação” de uma prancha de banda desenhada, e Molotiu de “dinamismo sequencial”, o qual não se relaciona directamente com a estruturas narrativas ou os princípios sequenciais a que estamos habituados como seus descritores, mas sim a “padrões preferenciais” de leitura. Existem alguns estudos nas ciências cognitivas para descrever cada vez melhor e mais exactamente o comportamento óptico-cognitivo na leitura das
Numa discussão em torno precisamente deste livro, e qual a direcção a que “abstracto” nos poderia levar, a questão acaba por se centrar no “significado”, o qual, como vimos, pode ser mais projectivo do que inerente ao objecto em si. Por essa razão é que recorrer ao sistema semiótico das tríades de Peirce se torna pertinente. Este sistema é mais articulado do que o de Saussure, englobando, sempre, o interpretante, para dar conta da relação “imposta” que poderá surgir entre o símbolo e o significado. Quando olhamos para uma nuvem, esta não tem qualquer intencionalidade de comunicação (o que a coloca fora da relação simbólica de Saussure), mas a verdade é que nós vemos nela por vezes uma forma similar a um qualquer objecto (a forma de um país, um
Claro que a própria premissa da abstracção remete a todo um espectro de potencialidades não-figurativas, representantivas, formais e possibilidades de interpretação que, à partida, se tornam um obstáculo inamovível à sua tipologização. Mas se estamos a querer falar de trabalhos abstractos no campo da banda desenhda, temos igualmente de considerar quais as características da banda desenhada que se mantêm: a ideia, por mais fantasmática que seja, da sequencialidade; os balões (mesmo que nada tenham dentro, ou que apresentem elementos visuais e/ou gráficos não-simbólicos); as palavras (ainda que o editor tenha explicado que elas têm um valor visual ou pictural antes de tudo ou exclusivamente); as composições de página com múltiplas vinhetas que nos façam pensar numa estruturação relativamente clássica.
Voltando a Peirce, e ao adjectivo “assémico” que anotámos a propósito da escrita de Molotiu (e outros autores, reunidos na antologia Asemic Magazine, editada por Tim Gaze, também presente em Abstract Comics), poderemos perguntar-nos se são de facto “assémicas” estas bandas desenhadas. Em primeiro lugar, é necessário entendermos assémico como significando menos “não ter significado” do que “não possuir signos socialmente acordados” (que tenham de atravessar por um qualquer processo de assimilação social, consensual, processo de educação). No entanto, é necessário um pequeno desvio.
Estendida ao campo da biosemiótica (seguimos aqui um escrito de Thomas Sebeok), existe uma condição taxativa nestas relações que nos interessam: não pode existir semiose sem interpretabilidade. Semiose, segundo Peirce, é a acção do signo, ou o processo do signo: há uma relação (triádica) de causa-meio-efeito ou codificação-veículo-descodificação, como por exemplo (dado por Gérard Deledalle) um oficial militar dando uma ordem aos seus soldados (evento A) os quais interpretarão essa ordem (evento B) para que possam cumprir a ordem (evento C). Para Peirce a palavra “signo” não era simplesmente algo que está em lugar de algo (para alguém, sendo este último pormenor a grande distinção em relação a Saussure), mas que ganhava duas acepções, uma através da semiose, que acabámos de apresentar sumariamente, e outra através da sua noção de representamen. Esta é, segundo a definição no Century Dictionary, um “objecto que serve para representar qualquer coisa na mente”. Apesar da complexidade desta distinção, talvez o exemplo do próprio Peirce ajude a esclarecer parcialmente a questão: “quando consultamos um mapa, o próprio mapa é o Veículo [primeira perspectiva formal sobre o representamen: a substância da representação], o país representado é o Objecto Natural [segunda perspectiva: o quasi-agente da representação], e a ideia desencadeada na mente é o Interpretante [terceira perspectiva: o quasi-paciente da representação, ou a modificação intelegente da representação]”.
Tendo em conta ambas as acepções de signo para Peirce, como poderíamos começar a descrever estes “abstract comics”? Têm ou não conteúdo semântico? Sugerem ou não ter significado? Pertencem ou não a um qualquer código ou sistema socialmente aceite? E, por fim, são ou não “banda desenhada”? As respostas não são simples. Estas bandas desenhadas – parto de um pressuposto positivo - são veículos que desencadeiam nas nossas mentes uma qualquer ideia, mas não encontramos qualquer objecto natural consensual (correndo o risco de errar ou de provocar uma interpretação errónea, penso estarmos perto do que Kant chamou de “efeito dinâmico” da nossa procura do entendimento do belo, a sua “imagem flutuante”: em que percebemos um objecto mas não o seu fim/fito). Elas provocam uma semiose (são causa, e provocam efeitos pelo meio dos trabalhos), mas é como se essa interpretabilidade não pudesse ser partilhada do modo mais comum. Provocando um “qualquer significado”, não nos permitem porém aceder a “signos socialmente aceites”. São, portanto, assémicos naquele sentido “aberto” previsto pelos seus cultores. É óbvio que a associação a certos elementos “clássicos” da banda desenhada, como os balões ou a estruturação em vinhetas, nos farão pensar em termos de “comunicação” e de “progressão”.
No entanto, gostaria de encontrar uma maior discussão – não necessariamente no seio do próprio livro, mas na sua recepção crítica – em termos de como estes trabalhos, quer os históricos quer os inéditos (alguns dos quais quase criados “de propósito” para a antologia), se vêm agregar a um conjunto mais alargado do “experimentalismo na banda desenhada” que encontramos junto a outros sectores ou estratégias de criação, como, por exemplo, exemplo esse bem visível e de recepção elevada, aqueles trabalhos que encontramos na Frémok (o conjunto dos últimos livros colaborativos e transdisciplinares de Fortemps, Hasselt e Deprez, de que falámos a propósito do artigo deste último na Art & Fact para eles apontam). Ou então que papel poderá eventualmente a banda desenhada ocupar num espaço de divulgação que não o impresso: nos "white cubes" ou mesmo nas "black boxes" dos espaços museológico-galerísticos: como se poderá contrastar entre a exposição comissariada por Molotiu, Silent Pictures, e a Vraoum!, que insiste numa forma de aproximação às "Belas Artes" que considero menos propícia ao avanço da discussão necessária, se necessária ainda (?) junto ao "grande público".
Abstract Comics não se abstrai, então, dessa discussão.
20 de setembro de 2009
L’Arleri. Edmond Baudoin (Gallimard)

Mas apesar de logo a seguir se apresentar uma pequena tentativa lista de vários instrumentos, nos quais se inclui a voz, a voz humana que tanto serve de ponte como de condição de possibilidade da sua própria incomunicabilidade, como o demonstra a famosa peça-libretto de Cocteau com esse nome, Baudoin parece reduzir o seu país, o seu território, a sua voz mesmo, com este livro. A abertura das personagens parece fechar-se, lentamente, em torno de uma mesma nota, insistente. L’Arleri poderia ser descrito como uma revisitação, típica do movimento de eterno retorno em Baudoin, de certos temas que lhe são caros: temos a relação do pintor e da sua modelo, o acto de sopesar o passado, revendo nele a história pessoal da conquista humana, questões de arte do desenho, e as relações entre os homens e as mulheres. O protagonista é um velho artista, centenário, que durante uma tarde, ou várias coalescidas numa só, vai pintando um retrato, numa tela, da sua jovem modelo, juvenilíssima, quase pubente, em que a sexualidade parece estar ainda a despontar, mas é já gloriosa. Esta questão é importante, como veremos. Este velho é Baudoin, e esta identificação não faz parte da nossa interpretação, mas é fruto de exposição no próprio livro. E aquela modelo tanto poderá ser a companheira actual de Baudoin (a jovem Céline Wagner, com quem já colaborou em dois títulos), como as suas modelos todas numa só, como a ideia de mulher. Esta questão é também importante, como veremos. O velho conta à jove, enquanto pinta, ou mesmo quando mudam de papéis, a sua história, as suas conquistas amorosas, a sua busca pelo significado profundo do amor, do sexo, do que é ser-se vivo e ser-se artistas. Estas questões são igualmente importantes.
Este livro parece concentrar-se sobretudo nas questões das relações entre homens e mulheres, entre o amor possível entre os dois, entre as formas de o expressar, forma superna a da sexualidade. Mas se os gestos do artista/protagonista/Baudoin se revelam aqui capazes de alguma beleza formal, nas formas vermelhas das aguarelas que ultrapassam os contornos que haviam sido prometidos pelas linhas do pincel, pelas composições com fotografias, pelos desarranjos dos mapas dos corpos das personagens, pela quase ingénua e infantil escolha das cores, a sua política, o seu propósito temático, é algo empedernido.
Nota: capa tirada da net.
Art & Fact no. 27 (A&F)

A comparação com Portugal não seria sequer possível, dada as nossas deficiências gravíssimas neste sector, não obstante as tentativas de um par de pessoas e o trabalho, muitas vezes ingrato, dos investigadores que batalham nesta área: salvas excepções, não existem publicações específicas, não existem centros de estudos organizados, não existem instituições eficientes ao seu apoio, não existe um discurso concertado, não existe gravidade, surgindo muitas vezes tentativas ad hoc (e até “haddockianas”), não existe sequer um interesse mais generalizado por esses assuntos. A questão insistente de Witek, “E depois?” é um excelente instrumento para ponderarmos sobre este assunto.
Dito isto, essa malha apertada nota-se praticamente em qualquer publicação de contornos minimanente académicos em língua francesa que se dedique à banda desenhada (nem sempre, porém). Nota-se, por exemplo, na leitura das notas de rodapé e listas bibliográficas dos artigos deste número especial da Art & Fact, aliás, “Revue des historiens de l’art, des archéologues et des musicologues de l’Université de Liège”. Apesar da aparente não-relação imediata entre essa revista e o tema deste número, os artigos aqui reunidos respondem de facto a preocupações sérias e trabalhos desenvolvidos no quadro de discursos anteriores, não havendo espaço para “redescobertas” ou “apresentações”. Como se reparará pela capa, porém, não se trata somente de uma revista dedicada à banda desenhada, mas sim a um prisma muito particular, o da norma e transgressão, suas relações, como a segunda responde à primeira, ou como a primeira se consolida em relação à segunda, que negociações existem, etc.
É nesse prisma então que surgem estudos sobre o conceito do “herói” na dita “banda desenhada realista da idade de ouro”, por Albert Barrera-Vidal; sobre o modo como a “linha clara” de Hergé se tornou uma espécie de “grau zero” da legibilidade da banda desenhada clássica, e como as variações no seu no seu interiorHergHerg, classicizantes com Juillard e meta-referenciais com Marc-Antoine Mathieu, a fazem expandir, por Jean-Louis Tilleuil; sobre esse pólo de tensão e negociação na banda desenhada japonesa, em que as regras se quebram de modos bem diferentes daqueles do Ocidente, por Edit Culot; pelo modo como a banda desenhada de temática homosseual, nos Estados Unidos, partem de uma base de transgressão para, por vezes, criarem um paradoxal campo de conformismo, por Jean-Paul Jennequin; sobre os modos de edição na Bélgica, por Floriane Phillipe; e sobre experiências ou autores específicos que são interpretados ou estudados à luz das noções tema desta publicação: Jean-Claude Forest (por Harry Morgan), a série Donjon (Björn-Olav Dozo), o livro Buscavidas, de Trillo e Breccia (um brevíssimo mas surpreendente estudo sobre um estranho exercício de censura, por Aarnoud Rommens), o T.N.T. en Amérique de Jochen Gerner (por Gert Meesteers), o projecto Match de Catch à Vielsam, da Frémok, entre autores de banda desenhada e pacientes mentais de Hasse (por Erwin Dejasse), a revista belga do fim do século XIX Caprice-Revue como espaço de experimentação desta área então ainda em formação (por Frédéric Paques). Ainda inclui uma longa entrevista a Dominique Goblet, uma importante autora contemporânea de que já falámos aqui a propósito de Faire semblant c’est mentir, de uma sensibilidade verdadeiramente contemporânea (por Pascal Lefèvre, parte de uma entrevista vídeo que já havia apresentado num número da Relief), e um pequeno escrito de Olivier Deprez sobre as suas práticas performativas do desenho, ou de colegas como Vincent Fortemps e Thierry Van Hasselt, em projectos de colaborações transdisciplinares (envolvendo a coreografia, animação, desenho ao vivo), que levaram a livros tais como Blackbookblack, Barques e Heurex, Alright!, de cada um desses autores respectivamente, na Frémok.
Como é de esperar, alguns destes artigos são mais pertinentes e acabados do que outros, mesmo quando abordam autores aparentemente conhecidos, como Forest, ou séries que parecem não encerrar potencialidades de reescrita de todo um posicionamento estético e comercial, como Donjon, e alguns deles têm uma capacidade de actuação mais limitada, como o artigo sobre a produção japonesa: contudo, todos fazem, em conjunto, uma circunscrição acabada das duas noções intrinsecamente ligadas – norma e transgressão -, e mesmo assim permitindo a múltipla leitura dessas mesmas noções, conforme a contextualização em que são encontrados e estudados.


Para mais informações e compra, ver site da instituição.
17 de setembro de 2009
Manga Mammoth. Francesc Ruiz en Tokio. Francesc Ruiz (Save as… Publications)

Esse posicionamento, e enquadramento sócio-cultural é apenas um ponto de partida mas que ganha uma qualificação diferenciadora, leve, por Francesc Ruiz. Este artista catalão explora algumas das possíveis ligações entre a vertente formal da banda desenhada e um modo de criação visual da arte contemporânea. Vários textos, partindo quiçá da sua própria capacidade discursiva, alegam trabalhar num “campo expandido” da banda desenhada. Aquilo que me leva a definir essa diferenciação como “leve” deve-se ao facto do seu trabalho se inserir naquilo que chamei a “experimentação sobre a banda desenhada”, isto é, essas conexões possíveis, mas necessariamente parciais, pontuais, entre os discursos e práticas específicos às artes visuais de galeria (e espaços afins) e os da banda desenhada, por oposição à “experimentação na banda desenhada”, que verificamos no interior do seu próprio campo (e de quem temos tentado acompanhar, juntamente com outros críticos, os trabalhos, e a que Divide & Impera tentou responder).
Dito isto, esses projectos de Ruiz, que poderão ser explorados através das galerias a que está afecto, a barcelonesa Galeria d’art Estrany ou a berlinense Maribel Lopez, também se dedica – paralelamente?, complementarmente?, extensivamente?, o termo correcto não é consensual – à produção de objectos mais próximos da banda desenhada propriamente dita, como este livro. Em muitos dos seus trabalhos, de “banda desenhada expandida” (nas galerias) ou de banda desenhada, Ruiz, homossexual, explora não apenas os formalismos e estratégias narrativas análogas à da banda desenhada, como particularmente a banda desenhada japonesa de temática gay, sobretudo aquela criada por mulheres e consumida por mulheres, a que se dá o nome de yaoi manga. Tendo em conta a forte e regradamente estratificada produção cultural de banda desenhada naquele país, faz todo o sentido circunscrever essa objecto de estudo. Se pareço declarar gratuitamente aqui um aspecto da vida pessoal do autor, é porque essa informação é central na trama deste pequeno diário, ou relato, de viagem. Manga Mammoth. Francesc Ruiz en Tokio trata de uma curta viagem de uma semana de Ruiz a Tóquio, cujo objectivo era “un proyecto de cómic autobiográfico en el que quería reflejar el mundo del manga y su relación con la comunidad gay”, explorando-se portanto os fundamentos e as consequências daquele tipo de mangá aventado acima – com todas as leituras possíveis, de hipocrisia a abertura, de opressivo a libertário – mas também na senda do caminho aberto pelos trabalhos do artista japonês Jiraiya, que ilustrava as capas da revista G-Men, dedicada a homens usualmente muito musculados e barbudos, da dita comunidade homossexual “bear” (“ursos”). Essa investigação é a desculpa da viagem – e o autor expressa ao longo do texto o seu conhecimento histórico, teórico e político deste campo, citando estudos e autores, datas e publicações (a que existe progressivamente mais acesso com as traduções nos círculos académicos, como pela norte-americana Mechademia) -, mas não a matéria do livro em si. Aqui e ali acompanhamo-lo na sua procura de publicações, no seu trabalho de pesquisa e até adivinhamos entrevistas e conversas profícuas, mas o livro centra-se num só acontecimento cumulativo: a descoberta do bar gay Mammoth.


Notas finais: agradecimentos a Marco Mendes, pelo empréstimo do livro.
16 de setembro de 2009
Ponyo. Filme de Hayao Miyazaki




A esmagadora maioria das longas-metragens de cinema de animação, pelas próprias condições de produção (isto é, integradas numa verdadeira indústria de princípios e objectivos num quadro económico), pauta-se por uma inscrição nas regras mais clássicas da representação e da narração.
Quanto à primeira, trata-se daquilo que o princípio do real dirige, em que mesmo a aparentemente mais fantástica, mais fantasiosa, mais fantasmagórica das formas corresponde a uma “realidade” – com peso gravitacional, redes de interacção, tangibilidade – do universo em que se insere. Isto é o que se passa em todos filmes de fantasia (inclusive ficção científica, high fantasy e super-heróis): o “monstro” existe mesmo naquele local, os raios de luz são disparados de uma arma, etc. E quanto se trata de filmes que implicam algum grau de realismo (ao acaso: Mulan e Coraline), os acontecimentos respeitam as mesmas regras do que seria um filme com actores reais, objectos na gravidade terrestres, etc. (por exemplo, o jogo de cortes entre cenas de Coraline é totalmente “cinematográfico”, em vez de procurar uma plasticidade mais livre, permitida pelas próprias formas animadas: veja-se o My Love, de Aleksandr Petrov, para transições mais livres, animadas). A animação que mais jogaria contra esta “regra” é aquela “de autor”, onde podemos encontrar os clássicos trabalhos de Len Lye, Norman McLaren e René Jodoin (e ao qual poderíamos acrescentar nomes do cinema experimental, como os Rhythmus de Hans Richter).
Quanto à narração, tem a ver com o facto de que todas e quaisquer formas ou elementos que surjam no espaço de representação tenham que estar subsumidas ao programa narrativo. A ideia de exploração de formas para efeitos plásticos puros, efeitos visuais, atracções, etc., está como que diluída, senão mesmo negada. Nalguns filmes de Ivan Maximov (como Niti ou Da esquerda para a direita) encontramos esses princípios esbatidos, na sua procissão de personagens múltiplas; o ainda magnífico Yellow Submarine explora as várias estratégias de animação para construir espaços de representação musical e de efeitos visuais o mais livremente possível. Por exemplo, os mais recentes Waking Life, A Scanner Darkly e Renaissance usam a rotoscopia mas para efeitos muito limitados, “surrealismos” (i.e., algo “por sobre” a realidade) de um grau muito curto. Não há, neles, uma utilização da eventual mais-valia permitida pela animação em relação a toda a panóplia de intervenções que hoje as tecnologias digitais permitem. E essa mais-valia é, acima de tudo, ontológica, estética, e não meramente técnica.
Ponyo inscreve-se na abordagem clássica destas questões. Tem uma história para contar e todos os seus elementos concorrem de um modo claro para ela. Na fundo, tendo em conta o facto de que este filme se apresenta na condição de narrativa clássica, a trama é algo pobre, não existindo crises nem internas às personagens nem obstáculos de maior externos que possam impedir a prossecução dos seus objectivos. A Princesa Mononoke e A Viagem de Chihiro eram relativamente mais complexos (mas ainda assim simples) do que o presente filme, o que o leva a interpretar como algo que tenha sido criado quase exclusivamente para as crianças mais novas – daí as contínuas cenas “maravilhosas”. As características formais-narrativas de Miyazaki mantêm-se perenes: personagens de rostos límpidos e inocentes, uma personagem ocupando o espaço ou função de antagonista com traços físicos muito diferentes dos das restantes personagens, momentos de humor que passam pela expressividade mais frenética da felicidade simples das crianças, localidades que sublimam os aspectos mais positivos das cidades reais, grandes massas de matéria a cavalgar ou a atravessar grandes distâncias, etc.

Dito isto, o entrosamento de uma quase impositiva filosofia ecologista aliada à simplificação de quase todos os elementos que compõem este filme tornam-no uma das obras menos acabadas de Miyazaki, que foi bem mais comovente com Totoro, e elaborado com Mononoke. Não obstante, se nos abstrairmos do peso necessário da história e dos movimentos lineares a que as personagens são obrigadas – para que de facto se possa dizer que existe uma “história” -, restam algumas imagens e sequências de puro movimento e metamorfose que poderiam muito bem sobreviver como obras autónomas, se o realizador se entregasse a exercícios de experimentalismo.