29 de setembro de 2009
The Toon Treasury of Classic Children’s Comics. Spiegelman e Mouly, eds. (Abrams)
Há, neste livro, duas linhas que se juntam. Por um lado, há aquela linha a que demos o nome de “recuperação da memória” a propósito de estarmos a viver num tempo em que há uma particular atenção pela possibilidade de fazer aquilo que, na banda desenhada, passaria por “edições críticas” (ou “diplomáticas”). Se bem que sempre existiram gestos de manter acessíveis toda uma série de “clássicos”, havia como que ou um número fechado pelas editoras com capacidade de fazerem um trabalho sustentado, de qualidade material e com visibilidade, ou então uma atenção mais ampla mas com instrumentos editoriais mais limitados (neste último campo, poder-se-iam falar das edições de Manuel Caldas, entre nós, os The Nemo Booklets of Classic Comics). Mas agora, quer nos Estados Unidos quer em França (em Portugal, gestos tímidos) há toda uma massa de edições de obras completas, de arquivos, de antologias mais arqueológicas, que se unem ao “empacotamento” e à divulgação para fabricar tomos mais condignos. Por outro lado, a segunda linha é uma inversão curiosa. Já lá iremos.
Art Spiegelman e Françoise Mouly, como se sabe, são os grandes responsáveis pela revista Raw, um projecto editorial nova iorquino cuja primeira série atravessou os anos 80, e num formato gigante - e a segunda série, até ao início dos anos 90, menos portentosa, mas não menos importante -, e cujos conteúdos eram igualmente portentosos. Aliavam-se os gestos do underground, do post-punk, do new wave, do post-post e mais uma mão cheia de movimentos heterogéneos e transdisciplinares da época, os experimentalismos formais de Spiegelman, a sua lenta e dolorosamente produzida auto-e-alterbiografia Maus, traduções para inglês de autores fundamentalmente contemporâneos de outros países (Tardi, Masse, Tsuge, Mariscal, Muñoz, Swarte), repescagens de autores antigos e/ou esquecidos (Herriman, Fletcher Hanks, Doré), e uma bateria de autores que marcariam as épocas a vir (Panter, McGuire, Ware, Sala, Sikoryak): tudo isto contribuía, de uma forma indelével, para o que foi baptizado, nos Estados Unidos, como a chegada da “idade adulta” da banda desenhada (para o que concorreriam também as fantasias de ultraviolência de Frank Miller e as distopias cruas de Moore). [Curiosamente, em França a banda desenhada tornou-se “adulta” por volta dos anos 60 através da introdução do erotismo... o que nos poderia levar a uma dicotomia entre Guerra/Amor, E.U.A./Europa, se isso nos levasse a algum lugar... não leva]. A frase “Comics aren’t for kids anymore!”, numa quantidade de artigos jornalísticos ou de blurbs em livros, tornar-se-ia um pavilhão tantas vezes hasteado que o pano se começou a desfiar... A “inversão curiosa” está no facto de que Spiegelman e Mouly, sendo responsáveis pelo apoio e emergência dessa nova atitude aberta, adulta e cosmopolita perante a banda desenhada e a ilustração (Mouly enquanto directora de arte da New Yorker, grande farol da ilustração internacional), que levaria ao aparecimento de novos caminhos na criação e edição desses campos – de que a recente antologia Abstract Comics pode ser um possível corolário -, surgem agora com esta apresentação de uma antologia que reza na contracapa: “Comics: not just for grown-ups anymore!”.
Claro está que teríamos de revisitar mais uma vez a história da banda desenhada em termos globais e internacionais, em que se poderia falar da sua emergência junto a um público adulto, nascendo da caricatura política e social, do círculo de edição dos jornais ilustrados e que apenas paulatinamente foi sendo arrestada pelo mundo infantil, de que os anos 30 a 60 (dos dois lados do Atlântico) foi a, sobejamente repetida, “Idade de Ouro”. Há, portanto, um consenso em relação a esse período como uma época particularmente gloriosa em termos de presença e importância no mercado junto às crianças, levando a que todo o meio, toda a linguagem, todo este modo de expressão, passasse a ser confundido com apenas um sector dos seus leitores, de um modo pouco comum noutras áreas da criação.
Toon Treasury faz uma colheita dessa lavra imensa – como se pode depreender por esta fotografia incluída, de um típico stand de comics na altura - para re-apresentar alguns trabalhos. Nesse sentido, e ainda aliado aos gestos contemporâneos de recuperação, está próximo de antologias como a Art Out of Time, por exemplo, mas mais ainda dos esforços de editoras tais como a Dark Horse, com a colecção da Little Lulu e as séries dedicadas às personagens da Harvey Comics, ou a Drawn & Quarterly que foca sobretudo na obra de John Stanley, com vários dos seus trabalhos menos famosos entre nós. Algum do material que corresponde à colheita desta antologia teve passagem por Portugal, sobretudo pelas mãos das brasileiras Abril e Ebal, mas as únicas coincidências são precisamente as histórias da Luluzinha e companhia (poderíamos apontar o Supermouse, mas as histórias publicadas no Brasil não correspondem nem à fase nem ao estilo do que se encontra em Toon Treasury). De alguma forma, esta antologia é similar ao curioso título balbuciante A Smithsonian Book of Comic-Book Comics, publicado em 1981, que pretendia ser um retrato antológico de um certo estado da nação no que dizia respeito a esse formato em particular (ainda que Toon Treasury seja maior, isto é, mais próximo do formato original dos comics-books de então, maiores do que os actuais) – e contraponto ao monumental Smithsonian Collection of Newspaper Comics.
Para nos atermos à escolha de Spiegelman e Mouly, que adiantam de um modo claro as balizas do seu projecto – em termos cronológicos, de público-alvo, de géneros, e editoriais – poderíamos desejar ver uma mais ampla escolha que, não obstante o valor dos autores presentes, tivesse dado uma maior atenção a outros materiais que fossem mais difíceis de obter por via de outras fontes (basta olhar para os títulos para criar vontades). A título de exemplo, e ao círculo da Disney, e ainda que em detrimento de Barks, ter olhado a Tony Strobl, Jack Bradbury, Bill Wright, ou às histórias de Bucky Bug. Mas essas ausências não podem ser vistas como entrave, já que estas considerações não são críticas, mas generalistas... Aprende-se muito com Toon Treasury.
As histórias incluídas de Barks (uma das melhores que conheço: “Tralla La”/“Paraíso Perdido”) e de Stanley (sobretudo as com Irving Tripp, cujo estilo gráfico é o mais reconhecido do público português; aqui inclui-se “Five Little Babies”, presumo eu que igualmente reconhecida) são sobejamente conhecidas, e continuamente revisitadas em algumas colecções. Mas descobrem-se aqui outros trabalhos de Stanley, não apenas Melvin the Monster, mas um fabulosamente geométrico cão chamado Jigger; muitos trabalhos de Walt Kelly, o qual seria reconhecido pela versão “adulta” de Pogo, enquanto alegoria e sátira política, na esfera da banda desenhada de fantasia, de animais, infantil; o trabaho de George Carlson, que havia sido incluído nas antologias da Smithsonian e Art Out of Time; uma série comovente de Sheldon Mayer, Sugar and Spike; Dennis the Menace em versão banda desenhada, numa genial história sobre linguagem, de Al Wiseman e Fred Toole; Intellectual Amos, de André LeBlanc, uma personagem que parece derivar da quantidade assombrosa de “personagens-criança de cabeças carecas gigantes”, i.e., bebés actuantes, mas que envereda por territórios de didácticas estranhas; histórias de uma página só de pura parvoeira, com Burp, The Twerp, de Jack Cole (sim, o autor de Plastic Man); um não menos idiota e divertido Nutsy Squirrel, por Woody Gelman e Irving Dressler; um pessoalmente preferido: a história em banda desenhada, escrita pelo famoso Dr. Seuss e ilustrada por Phil D. Eastman, de Gerald McBoing Boing, dos famosos desenhos animados da UPA. E muitos outros.
As secções que organizam o livro poderão ser esclarecedoras: “Hey, Kids!”, mostrando sobretudo histórias em que são as crianças as protagonistas das aventuras; “Funny Animals”, que penso ser claro o suficiente; “Fantasyland”, que aponta para todo aquele universo de referências dos contos tradicionais ou de fadas; “Storytime”, em que se procura uma maior concentração da estrutura narrativa mais alargada, e conturbada; “Weird and Wacky”, reservada àquelas peças em que a liberdade figurativa e narrativa é total. No entanto, muitas das personagens citadas acima encontram-se espalhadas em várias categorias (Intellectual Amos, Donald Duck, Little Lulu), e alguma delas estão desde logo abertas à recolocação (não poderemos ver os patos de Barks como “funny animals”, de uma perspectiva?).
Alguns autores - ou mesmo histórias - conhecidos de outras esferas encontram-se nesta antologia, o que traz uma nova perspectiva sobre esses mesmos trabalhos: para além de Jack Cole, salientem-se Harvey Kurtzman, com três pranchas do Hey, Look!, uma história do Capitão Marvel de C. C. Beck e Pete Constanza, que mostra os perigos do Surrealismo, Basil Wolvertoon, com algumas das suas horrendas Foolish Faces e uma história de Powerhouse Pepper, e o vaudevilliano Milt Gross, com Patsy Pancake.
Os trabalhos reunidos aqui criam um corpo comovedor, divertido, louco, suave, como a melhor banda desenhada infantil pode eventualmente ser. Se ela é, também, uma forma de entretenimento – sendo um veículo, uma forma de arte, pode transportar o que lhe for possível – nada disto obsta à sua apreciação mais ampla. Mas nenhum destes exemplos é delicodoce e, mesmo quando parece estar a construir-se um discurso pedagógico (como nas histórisa de Intellectual Amos), o desfecho é totalmente caótico. A linha que dá continuidade a estes pequenos espectáculos gráficos e de narrativas screwball encontrar-se-ão nas histórias do “Louco”, de Maurício de Sousa, na série Sardine de l’Espace, no programa Yo Gabba Gabba!, nos desenhos animados de John Kricfalusi.
Este livro não ensina a atravessar a rua na “zebra”. Ensina-nos a cavalgá-la para caçar semáforos.
27 de setembro de 2009
Logicomix. An Epic Search for Truth. Apostolos Doxiadis, Christos H. Papadimitriou, Alecos Papadatos e Annie Di Donna (Bloomsbury)
Este livro de banda desenhada, para o explicar de um modo brevíssimo, quase catalogador, será o de que conta a demanda da parte de um punhado de filósofos e matemáticos em assegurarem a construção fundamental de um edifício a que se dá o nome de Filosofia Analítica, que apesar das suas origens europeais (Alemanha e Inglaterra), marcaria sobretudo o campo filosófico contemporâneo americano, assim como áreas disciplinares como a computação. Mais exactamente, foca-se aqui a figura de Bertrand Russell como a de fundador, ponto nevrálgico e narrador da história desse campo, a partir do qual se lançam as pontes aos outros nomes que lhe estão associados: Frege, Moore, Hilbert, Whitehead, Wittgenstein, Gödel. Não sendo nós conhecedores suficientes de todas as implicações e complexidades associadas a estes temas, Logicomix não deixa de ser suficientemente claro a quem o desejar ler. Não se trata de uma abordagem totalmente virgem (“for dummies”, como é citado no livro), mas tampouco uma leitura que necessite de uma prévia aprendizagem precisa dos mesmos elementos. O livro é escrito por dois autores associados às ciências que mostram interesses e perspectivas que, a partir dessas mesmas ciências, iluminam uma qualquer produção do mundo da “arte”, da “ficção”: Apostolos Doxiadis é matemático e escritor, Christos H. Papadimitriou é professor de computação, de teoria de jogos e também romancista. Não surpreenderá, portanto, que os pontos mais assinalados se relacionem precisamente com os fundamentos matemáticos, as sementes do que levaria às descobertas de Turing, chegando-se mesmo a ver nas discussões e crises atravessadas pelas personagens principais como os momentos arqueológicos de uma revolução, trazida pelo computador, que permitiria um certo grau de liberdade (e com consequências absolutamente óbvias e ubíquas na vivência contemporânea). O livro em si é desenhado e estruturado por uma equipa de autores habituados ao mundo da animação, e, na verdade, Papadatos e Di Donna criam um livro o mais claro e legível possível, aqui e ali com pequenos rasgos de libertação de regras mais clássicas da linguagem da banda desenhada, mas a maior parte numa produção consensual, sem problemas, e também sem genialidade de maior.
A trama acompanha como que três linhas narrativas. Por um lado a contemporaneidade com toda a equipa criativa deste mesmo livro, uma espécie de trama meta-referencial, que tanto serve de enquadramento das questões centrais, como plataforma de apresentação e comentário da parte dos autores, como ainda espelho das consequências mais imediatas ou mais profundas da revolução que dão a ver. Por outro, acompanha-se “na íntegra” uma conferência dada por Bertrand Russell numa universidade norte-americana, a 4 de Setembro de 1939, precisamente no dia em que a Inglaterra declarara guerra à Alemanha, conferência intitulada “O papel da Lógica nos assuntos humanos”, e onde Russell, pacifista, e confrontado com toda a sorte dos isolacionistas americanos (que tanto englobavam simpatizantes nazis como verdadeiros objectores de consciência). É a partir dessa conferência, que se torna uma conversa quase biográfica da parte de Russell, que chegamos à terceira linha narrativa, e onde Russell se torna então narrador de segunda ordem (e moldador da narrativa que conta, naturalmente): desde a infância do filósofo inglês, passando por todo o seu estudo, crises e descobertas, os encontros sucessivos quer com os mestres (Frege, Whitehead) quer com seguidores (que se tornariam também mestres, como Wittgenstein e Gödel), e, claro, episódios da sua vida privada, doméstica (os autores explicitam no fim, através de um série de notas, quais os pontos em que tomaram “liberdades poéticas” e revelam fontes, gestos generosos que tornam a ficção, o relato, ainda mais “natural” na sua estruturação).
Poder-se-ia colocar este livro junto àqueles, por exemplo, de Larry Gonick, ou outros tantos, que não obstante o seu valor próprio (quer de estilo quer de rigor da informação), passam por introduções generalistas a um qualquer tema “escolar” (da biologia à psicologia, da energia nuclear à sexualidade humana, da religião à lógica). No entanto, a sua catalogação teria de dar conta de uma diferença de grau, já que, ainda que se possa descobrir em Logicomix uma apresentação de bases para começar a entender o significado da disciplina da Lógica, e o seu papel quer em campos como a matemática, a ciência computacional, quer na filosofia, a sua trama vai muito mais além dessas mesmas bases para – e empregando uma imagem cara aos autores – cartografar as suas implicações mais dilatadas. A verdade é que se estrutura aqui uma “demanda”, como já se afirmou, e que vai ao encontro do título da conferência de Russel. Logicomix mostra o papel que a Lógica tem nos assuntos humanos, quer dos seus imediatos agentes quer dos de toda a gente.
As sementes desta demanda poderão ser encontradas a todo o longo da história do pensamento ocidental, e na sua lenta separação entre o nous (a razão) e o mundo material, o númeno, a psique (não, de forma alguma, substantivos intercambiáveis, nem construindo dicotomias simples), para “encontrar o método perfeitamente lógico para resolver todos os problemas, desde a Lógica até ao topo, isto é, a Vida Humana” (palavras que Russell-personagem emprega para falar de Leibniz). A ambição de Wittgenstein fê-lo encontrar em The Principles of Mathematics um fito que o guiaria à glória desejada (e alcançada). Se Russell tinha operado com essa obra uma revolução sobre pensadores anteriores, procurando num pequeno número de princípios fundamentais, objectivos, e, lá está, lógicos, no qual assentar todo o edifício da matemática, essa mesma revolução levá-lo-ia à conclusão, também lógica, proposta no seu paradoxo dos conjuntos (ou “de Russell”). De novo, alerto para a minha falta de domínio destas matérias no seu mais profundo sentido; entendo, porém, que foi este o caminho que colocaria Wittgenstein no seu caminho pessoal, estudando em Inglaterra, e procurando lugares de maior concentração e encontro com a “a reflexão filosófica e as explicações metafísicas do mundo” que, nas palavras de Schopenhauer, apenas se conquistariam com “o conhecimento da morte”... levando Wittgenstein a voluntariar-se no exército austríaco, ir para a frente russa e, lá, procurar o mais perigoso dos encargos... e, ao mesmo tempo, à redação daquilo que viria a ser o Tratactus ou Tratado Lógico-Filosófico, o qual, desde a sua primeira frase (“O mundo é tudo o que é o caso”), demonstra claramente a forma como tenta resolver todos os problemas da Lógica. Delimitando a linguagem, percebendo que a própria linguagem é um sistema simbólico de representação do mundo, e não o mundo (Tratado, 4.001: “A totalidade das proposições é a linguagem”), Wittgenstein chega à epifania – no campo de batalha em que ele atinge essa clareza trazida pela “experiência da morte” preconizada por Schopenhauer – de que “O sentido do mundo não reside no mundo!” Wittgenstein via então como os “simples” existiam independentemente da experiência humana, o que se diferenciava da perspectiva de Russell, que exigia a atenção do observador. Estas complexidades são precisamente o sumo de toda a filosofia e, enfim, a tal separação a que aventei acima, entre empiricismo e razão, entre percepções e conceitos, levaria Kant, que as entrelaçou, a dizer que as percepções, sem conceitos, são cegas, e os conceitos, sem percepções, vazios; por outro lado, Deleuze e Guattari, em O que é a Filosofia?, demonstraram – pelo menos naquelas escolas que aceitam essas argumentações – os modos como as fronteiras entre filosofia, ciência e arte se poderiam delir...
Se bem que o tom do sub-título de Logicomix, e algumas afirmações dos seus autores, narradores e/ou guias sejam bombásticas demais – falando de “verdadeiros super-heróis”, “uma tragédia a nível pessoal”, “uma batalha contra as forças ilógicas”, etc. -, é verdade que se procuram desenhar as linhas que essa “saga”, essa “demanda” lançou nas mais variadas esferas da existência humana, apercebamo-nos delas ou não, vislumbremos essas consequências ou não, utilizemo-las ou não. As contradições fazem parte da vida humana, e nem todos os seus domínios poderão ser cobertos pelos mapas da lógica, e há espaços em que este livro deixa ver essas zonas de indeterminação ou “escape”.
Uma das formas como os autores cumprem isso é quando procuram enlaçar toda a trama desta demanda dos lógicos e os seus comentários com uma peça literária fundamental, a saber, a última peça da trilogia da Oresteia de Ésquilo, As Euménides (para a tornar pertinente em termos narrativos, é a assistente dos artistas que está a participar enquanto actriz numa sua encenação contemporânea). É pela voz dos autores/comentadores que se torna clara a “razão” dessa união. Uma delas terá a ver com a exploração da loucura como permanente sombra não apenas sobre Russell, como sobre todas as personagens que à Lógica se dedicaram (Frege, Gödel, o próprio idiossincrático Wittgenstein), que ganha na peça uma espécie de eco e variação, pois “há ocasiões em que o terror é bom”, numa frase do Coro da tragédia de Ésquilo.
Uma outra imagem que surge várias vezes, segundo leit-motiv da obra, e de novo não apenas sobre Russell-personagem, mas sobre todas as personagens, é a ideia do mapa. Não só toda esta demanda, isto é, “a demanda pelos fundamentos da matemática”, é vista como uma “Odisseia incompleta”, como a “certeza lógica” ocupa o “papel de Ítaca”. Além disso, e ligando ambos os motivos – mapa e loucura – o mapa é por vezes confundido com o próprio mundo, servindo, desta feita, não apenas como rememoração de uma história de Borges precisamente sobre a hubris eventualmente associada com a busca da maior exactidão possível da ciência, como também para delinear de uma forma candidamente integrada o inerente abismo da loucura que parece ter afectado todas as personagens arroladas neste relato, de uma forma ou outra. Wittgenstein, algures na sua obra (Aulas sobre fé religiosa?), discute o facto de que um milagre não pode ser explicado pela ciência, não por existir mesmo um milagre, não por a ciência não ser exacta o suficiente para o negar, mas por serem dois sistemas incompatíveis. Também a última frase do Tratado aponta para a incomensurabilidade (é provável que quem a entenda totalmente a possa aproximar do Teorema da Indecidibilidade de Kurt Gödel) de certas questões, da sua irredutibilidade ao conhecimento e compreensão humanas, aos instrumentos da Lógica, enfim: “7. Acerca daquilo de que se não pode falar, tem que se ficar em silêncio”. E não nos podemos esquecer que, apesar dessa tentativa dos Gregos a Leibniz a Russell a Wittgenstein de criar uma “linguagem ideal”, Wittgenstein, com Investigações Filosóficas, atacaria essa ideia, inclusive a que ele próprio apresentara antes... É como se tudo concorresse para a ideia de que quanto mais se discursa mais nos aperceberemos da incapacidade final em esclarecer algo.
Não sem se revestir com uma faceta curiosa, os autores encontram na banda desenhada, uma linguagem artística que parece em nada se prestar à busca da lógica e da racionalidade (os próprios autores sublinham o modo como este veículo se presta aos “heróis”, que estas personagens arroladas não deixam de ser aos seus olhos), uma “linguagem ideal” para o relato não só de toda esta demanda, como de todas as suas complexas contradições e perigos, balanço entre o arrazoado discurso e o súbito desregulamento passional. O próprio título do livro ganha assim uma segunda interpretação, após a sua leitura atenta.
Nota final: agradecimentos a Ana Alves Pereira e Rui Carrilho, pelo empréstimo do livro.
A trama acompanha como que três linhas narrativas. Por um lado a contemporaneidade com toda a equipa criativa deste mesmo livro, uma espécie de trama meta-referencial, que tanto serve de enquadramento das questões centrais, como plataforma de apresentação e comentário da parte dos autores, como ainda espelho das consequências mais imediatas ou mais profundas da revolução que dão a ver. Por outro, acompanha-se “na íntegra” uma conferência dada por Bertrand Russell numa universidade norte-americana, a 4 de Setembro de 1939, precisamente no dia em que a Inglaterra declarara guerra à Alemanha, conferência intitulada “O papel da Lógica nos assuntos humanos”, e onde Russell, pacifista, e confrontado com toda a sorte dos isolacionistas americanos (que tanto englobavam simpatizantes nazis como verdadeiros objectores de consciência). É a partir dessa conferência, que se torna uma conversa quase biográfica da parte de Russell, que chegamos à terceira linha narrativa, e onde Russell se torna então narrador de segunda ordem (e moldador da narrativa que conta, naturalmente): desde a infância do filósofo inglês, passando por todo o seu estudo, crises e descobertas, os encontros sucessivos quer com os mestres (Frege, Whitehead) quer com seguidores (que se tornariam também mestres, como Wittgenstein e Gödel), e, claro, episódios da sua vida privada, doméstica (os autores explicitam no fim, através de um série de notas, quais os pontos em que tomaram “liberdades poéticas” e revelam fontes, gestos generosos que tornam a ficção, o relato, ainda mais “natural” na sua estruturação).
Poder-se-ia colocar este livro junto àqueles, por exemplo, de Larry Gonick, ou outros tantos, que não obstante o seu valor próprio (quer de estilo quer de rigor da informação), passam por introduções generalistas a um qualquer tema “escolar” (da biologia à psicologia, da energia nuclear à sexualidade humana, da religião à lógica). No entanto, a sua catalogação teria de dar conta de uma diferença de grau, já que, ainda que se possa descobrir em Logicomix uma apresentação de bases para começar a entender o significado da disciplina da Lógica, e o seu papel quer em campos como a matemática, a ciência computacional, quer na filosofia, a sua trama vai muito mais além dessas mesmas bases para – e empregando uma imagem cara aos autores – cartografar as suas implicações mais dilatadas. A verdade é que se estrutura aqui uma “demanda”, como já se afirmou, e que vai ao encontro do título da conferência de Russel. Logicomix mostra o papel que a Lógica tem nos assuntos humanos, quer dos seus imediatos agentes quer dos de toda a gente.
As sementes desta demanda poderão ser encontradas a todo o longo da história do pensamento ocidental, e na sua lenta separação entre o nous (a razão) e o mundo material, o númeno, a psique (não, de forma alguma, substantivos intercambiáveis, nem construindo dicotomias simples), para “encontrar o método perfeitamente lógico para resolver todos os problemas, desde a Lógica até ao topo, isto é, a Vida Humana” (palavras que Russell-personagem emprega para falar de Leibniz). A ambição de Wittgenstein fê-lo encontrar em The Principles of Mathematics um fito que o guiaria à glória desejada (e alcançada). Se Russell tinha operado com essa obra uma revolução sobre pensadores anteriores, procurando num pequeno número de princípios fundamentais, objectivos, e, lá está, lógicos, no qual assentar todo o edifício da matemática, essa mesma revolução levá-lo-ia à conclusão, também lógica, proposta no seu paradoxo dos conjuntos (ou “de Russell”). De novo, alerto para a minha falta de domínio destas matérias no seu mais profundo sentido; entendo, porém, que foi este o caminho que colocaria Wittgenstein no seu caminho pessoal, estudando em Inglaterra, e procurando lugares de maior concentração e encontro com a “a reflexão filosófica e as explicações metafísicas do mundo” que, nas palavras de Schopenhauer, apenas se conquistariam com “o conhecimento da morte”... levando Wittgenstein a voluntariar-se no exército austríaco, ir para a frente russa e, lá, procurar o mais perigoso dos encargos... e, ao mesmo tempo, à redação daquilo que viria a ser o Tratactus ou Tratado Lógico-Filosófico, o qual, desde a sua primeira frase (“O mundo é tudo o que é o caso”), demonstra claramente a forma como tenta resolver todos os problemas da Lógica. Delimitando a linguagem, percebendo que a própria linguagem é um sistema simbólico de representação do mundo, e não o mundo (Tratado, 4.001: “A totalidade das proposições é a linguagem”), Wittgenstein chega à epifania – no campo de batalha em que ele atinge essa clareza trazida pela “experiência da morte” preconizada por Schopenhauer – de que “O sentido do mundo não reside no mundo!” Wittgenstein via então como os “simples” existiam independentemente da experiência humana, o que se diferenciava da perspectiva de Russell, que exigia a atenção do observador. Estas complexidades são precisamente o sumo de toda a filosofia e, enfim, a tal separação a que aventei acima, entre empiricismo e razão, entre percepções e conceitos, levaria Kant, que as entrelaçou, a dizer que as percepções, sem conceitos, são cegas, e os conceitos, sem percepções, vazios; por outro lado, Deleuze e Guattari, em O que é a Filosofia?, demonstraram – pelo menos naquelas escolas que aceitam essas argumentações – os modos como as fronteiras entre filosofia, ciência e arte se poderiam delir...
Se bem que o tom do sub-título de Logicomix, e algumas afirmações dos seus autores, narradores e/ou guias sejam bombásticas demais – falando de “verdadeiros super-heróis”, “uma tragédia a nível pessoal”, “uma batalha contra as forças ilógicas”, etc. -, é verdade que se procuram desenhar as linhas que essa “saga”, essa “demanda” lançou nas mais variadas esferas da existência humana, apercebamo-nos delas ou não, vislumbremos essas consequências ou não, utilizemo-las ou não. As contradições fazem parte da vida humana, e nem todos os seus domínios poderão ser cobertos pelos mapas da lógica, e há espaços em que este livro deixa ver essas zonas de indeterminação ou “escape”.
Uma das formas como os autores cumprem isso é quando procuram enlaçar toda a trama desta demanda dos lógicos e os seus comentários com uma peça literária fundamental, a saber, a última peça da trilogia da Oresteia de Ésquilo, As Euménides (para a tornar pertinente em termos narrativos, é a assistente dos artistas que está a participar enquanto actriz numa sua encenação contemporânea). É pela voz dos autores/comentadores que se torna clara a “razão” dessa união. Uma delas terá a ver com a exploração da loucura como permanente sombra não apenas sobre Russell, como sobre todas as personagens que à Lógica se dedicaram (Frege, Gödel, o próprio idiossincrático Wittgenstein), que ganha na peça uma espécie de eco e variação, pois “há ocasiões em que o terror é bom”, numa frase do Coro da tragédia de Ésquilo.
Uma outra imagem que surge várias vezes, segundo leit-motiv da obra, e de novo não apenas sobre Russell-personagem, mas sobre todas as personagens, é a ideia do mapa. Não só toda esta demanda, isto é, “a demanda pelos fundamentos da matemática”, é vista como uma “Odisseia incompleta”, como a “certeza lógica” ocupa o “papel de Ítaca”. Além disso, e ligando ambos os motivos – mapa e loucura – o mapa é por vezes confundido com o próprio mundo, servindo, desta feita, não apenas como rememoração de uma história de Borges precisamente sobre a hubris eventualmente associada com a busca da maior exactidão possível da ciência, como também para delinear de uma forma candidamente integrada o inerente abismo da loucura que parece ter afectado todas as personagens arroladas neste relato, de uma forma ou outra. Wittgenstein, algures na sua obra (Aulas sobre fé religiosa?), discute o facto de que um milagre não pode ser explicado pela ciência, não por existir mesmo um milagre, não por a ciência não ser exacta o suficiente para o negar, mas por serem dois sistemas incompatíveis. Também a última frase do Tratado aponta para a incomensurabilidade (é provável que quem a entenda totalmente a possa aproximar do Teorema da Indecidibilidade de Kurt Gödel) de certas questões, da sua irredutibilidade ao conhecimento e compreensão humanas, aos instrumentos da Lógica, enfim: “7. Acerca daquilo de que se não pode falar, tem que se ficar em silêncio”. E não nos podemos esquecer que, apesar dessa tentativa dos Gregos a Leibniz a Russell a Wittgenstein de criar uma “linguagem ideal”, Wittgenstein, com Investigações Filosóficas, atacaria essa ideia, inclusive a que ele próprio apresentara antes... É como se tudo concorresse para a ideia de que quanto mais se discursa mais nos aperceberemos da incapacidade final em esclarecer algo.
Não sem se revestir com uma faceta curiosa, os autores encontram na banda desenhada, uma linguagem artística que parece em nada se prestar à busca da lógica e da racionalidade (os próprios autores sublinham o modo como este veículo se presta aos “heróis”, que estas personagens arroladas não deixam de ser aos seus olhos), uma “linguagem ideal” para o relato não só de toda esta demanda, como de todas as suas complexas contradições e perigos, balanço entre o arrazoado discurso e o súbito desregulamento passional. O próprio título do livro ganha assim uma segunda interpretação, após a sua leitura atenta.
Nota final: agradecimentos a Ana Alves Pereira e Rui Carrilho, pelo empréstimo do livro.
25 de setembro de 2009
Masterpiece Comics. R. Sikoryak (Drawn & Quarterly)
Gostava, em primeiro lugar, de indicar em nota pessoalíssima que este é um livro que desejaria ter editado e publicado. Tendo seguido na medida do possível os vários trabalhos do elusivo R. [Robert ou Roy] Sikoryak por onde ia surgindo, cada nova leitura era sempre uma fonte de um estranho misto de redescoberta, da “camada literária”, da “camada visual” e da camada do próprio “traço de artista” que, por se apagar sobre a “camada visual”, mais forte surgia. Cada nova história – que agora se vê integrada em Masterpiece Comics – dá-nos a ver outra vez qualquer coisa que vemos pela primeira vez. E, à medida que ia descobrindo e lendo cada nova peça, sempre imaginei que seria um projecto interessante de editar em formato de antologia. Ei-la. (Mais)
Kuti Kuti no. 13
O presente post serve para indicar que já se encontra disponível (em Portugal não sei onde nem como) o último número do jornal grátis de banda desenhada finlandês Kuti Kuti.
Para além da meia-dúzia de autores que já costumamos encontrar nestas páginas (inclusive o português André Lemos, com a mesma história da Crack On, mas com muito mais tremas), este número tem ainda um artigo deste vosso criado sobre a cena da banda desenhada em Portugal. Por uma qualquer razão, utilizaram como imagem principal uma ilustração de um autor espanhol (julgo que não a enviei por engano), há uma gralha enorme no título, etc. E, como apenas havia espaço para duas páginas, o texto acaba por se cingir a uma apreciação muito global, superficial e curta, seguida de alguns links para blogs dos nossos autores (igualmente truncada em relação ao que enviei).
Enfim, oços do ofíssio.
Mais informações, aqui.
Para além da meia-dúzia de autores que já costumamos encontrar nestas páginas (inclusive o português André Lemos, com a mesma história da Crack On, mas com muito mais tremas), este número tem ainda um artigo deste vosso criado sobre a cena da banda desenhada em Portugal. Por uma qualquer razão, utilizaram como imagem principal uma ilustração de um autor espanhol (julgo que não a enviei por engano), há uma gralha enorme no título, etc. E, como apenas havia espaço para duas páginas, o texto acaba por se cingir a uma apreciação muito global, superficial e curta, seguida de alguns links para blogs dos nossos autores (igualmente truncada em relação ao que enviei).
Enfim, oços do ofíssio.
Mais informações, aqui.
22 de setembro de 2009
Abstract Comics. Andrei Molotiu, ed. (Fantagraphics)
A banda desenhada é entendida de vários modos, ora procurando a sua matéria de expressão na peculiar relação provocada entre o texto e as imagens, ora sublinhando-se a sua qualidade intrínseca da sequencialidade, ora buscando um significado inanalisável que emerge das relações “invisíveis” dos espaços intervinhetais... A questão é que, não sendo a banda desenhada uma arte determinada tecnologicamente como a fotografia ou o cinema, é porém, como elas, filha de um momento na história (mais ou menos dilatado, conforme a atenção e interesse do investigador, que pode cristalizar uma “origem” no advento da imprensa, numa particular técnica de impressão – a autografia de Töpffer - ou mesmo de distribuição – os jornais norte-americanos, etc.) que a torna associada a uma qualquer tecnologia por contiguidade. E, logo, ela nasce no seio da sua própria experimentação, não podendo reportar-se a séculos de práticas que se vejam como norma, clássicas, modelares. Vejo-a, portanto, como uma disciplina que se vai desenvolvendo com uma negociação que lhe é própria, atravessando crises particulares, encetando caminhos específicos, intentando variações mais ou menos felizes e com continuidade que lhe ampliam a circunferência. Há experiências que, tendo sido fulgurantes em termos de sucesso crítico e comercial, não tiveram continuidade real, como a obra de McCay ou de Herriman, exemplos maiores (e também poderíamos apontar a de Gustave Verbeek, cuja importância na história tem sido relativamente pertença dos especialistas, o que se corrigirá talvez com a recente edição do seu trabalho). Ou a de Martin Vaughn-James, de quem o livro The Cage abriu uma porta para algo que não pode ser caminho de outrem. Algo muito diferente, portanto, do que aconteceu à arte de um Saint-Ogan ou de um Hergé, por um lado, ou de um Canniff, por outro. Todavia, aquela falta de continuidade não pode constituir nem um problema nem sequer algo criticável, já que em qualquer campo criativo os artistas que atingem uma linguagem “demasiado” única não pode deixar herdeiros (a título de exemplo, quem poderia querer carregar um projecto como Finnegans Wake sem se ocultar na sombra de Joyce, ou explorar os caminhos de Stan Brakhage ou Michael Snow sem parecer um epígono?).
Nada disto obsta a que não encontremos, por um lado, um “experimentalismo”, que só pode surgir na continuidade de normas e modelos e cânones que se vão formando ao longo da história de um meio, de uma arte, razão pela qual me apoio na ideia da narrativa histórica, de Noël Carroll, para encontrar princípios definidores da banda desenhada – é essa narrativa que permite não só não legislar no absoluto, como recontar um determinado percurso que levou a uma particular obra de arte. Sem esse recurso contextualizador, existem obras de arte “ultrapassadas”, “não vale a pena olhar para trás”, ou continuam sem se perceber os gestos de Duchamp, Len Lye, Richter, Cage, Beuys, Snow, Brakhage, Joyce, Vaughn-James, Klimowski... o que seria ridículo. É essa narrativa histórica que nos permite ver, então, alguns autores como experimentais e outros como clássicos (mesmo que tenham inventado novas estratégias visuais, ou fundado uma “ideia”, fundaram também a sua continuidade, diluindo esse gesto único).
Por outro lado, e de um modo paradoxal, é o que também nos ajuda a criar uma “tradição”, nas palavras de Andrei Molotiu, o editor desta antologia que aqui discutimos, uma continuidade de trabalhos aparentados por uma qualquer perspectiva, mesmo que se entenda que essa continuidade não é mais do que uma ilusão, visto que os autores trabalharam relativamente separados e, muitas vezes, com desconhecimento uns dos outros. Na verdade, é aqui que funciona o conceito de Wittgenstein do “ar de família”, permitindo englobar num mesmo descritor vários elementos. O editor elegeu um punhado de princípios e, seja como for, está informado não só por ele próprio ser um cultor e estudioso deste “tipo” de banda desenhada (no seu blog, blotcomics) como também por conhecer a rede de autores que têm trabalhado este território, “rede” permitida pela internet.
Usualmente, quando se começa a procurar este tipo de trabalhos, há como que um movimento de espiral em expansão que, ao longo de todas as linhas de fuga que o “ar de família” permite, se começam a abarcar trabalhos que são aparentados com o seu vizinho, mas que à medida que o movimento se expande e os exemplos se multiplicam, já nada têm a ver com o ponto de partida. Por essa razão, Molotiu exibe, não tanto um conjunto de regras cristalizadas, mas algum método de trabalho, um princípio, para que nem tudo possa ser encontrado no interior do seu gesto editorial. Por exemplo, sempre que se verifique somente um problema de figuração, isto é, em que as personagens são representadas através de formas ora geométricas ora abstractas mas tudo o resto se mantém num programa claro de narrativa, texto, etc., não fará parte do campo abstracto (imagino que um bom exemplo sejam as variações de Tatanka, de Felipe H. Cava e Raúl, publicado entre nós na Quadrado, Vol. 3, no. 1). Ou então quando existem dissoluções de todos esses parâmetros, mas se mantém um qualquer grau de legibilidade, iconicidade, referencialidade, etc., que evitam uma sua leitura abstracta (como acontece, penso, com T.N.T. en Amérique, de Gerner).
O editor estava interessado em procurar uma diferença de natureza, e não de grau. Interessava-lhe um certo aglomerado de ausências: ausência de trama narrativa, ausência de representação nas imagens, ausência de “um espaço diegético unificado”, como disse numa entrevista. Têm de ser, portanto, independentes das projecções dos leitores-espectadores, ou das suas intenções, questão que pode assumir contornos muito complexos. Basta recordarmo-nos das quantidades de manchas de bolor ou de humidade no mundo que são “vistas” como o rosto do Cristo...
O texto de introdução é uma breve mas excelente acção de desenhar um círculo amplíssimo da “pré-história” deste campo de trabalhos. Molotiu engloba na sua introdução o trabalho de “ilustração infantil” (quão redutor parece ser esta aplicação) de El Lissitzky, Suprematicheski Skaz (traduzível, pelo que entendo, por “Sobre dois quadrados”, ou “A história de dois quadrados”, e consultável, na íntegra, julgo, aqui, apontando para a facilidade das tais projecções de características animadas (previstas ou mesmo desejadas no trabalho do construtivista). Um nome que confesso me era desconhecido até agora é o de Kurt Kranz: as suas experiências gráficas, sob a forte influência dos filmes de Walter Ruttman e Hans Richter, e de acordo com Molotiu, poderá ter influenciado Kandinsky e Klee, seus professores na Bauhaus, em alguns trabalhos pontuais destes que mostram a ideia de sequência, de divisão do plano de composição em planos menores (isto é, uma “prancha” com “vinhetas”) e tendo a ideia da metamorfose das figuras “abstractas” no seu seu interior. É bem possível que venhamos a encontrar mais material deste artista graças à força da inércia provocada pela edição deste livro, e até mesmo num eventual segundo volume de trabalhos desta natureza, que se adivinha possível, dados os esforços de concertação e produção de novos trabalhos que o livro e o blog-companheiro, no qual mais material dos autores antologiados se apresentam, desencadearão.
O primeiro trabalho da antologia propriamente dita é a famosa história de Crumb, “Abstract Expressionist Ultra Super Modernistic Comics” (senão sob a influência directa dos efeitos provocados pelo LSD, pelo menos tangencial, irónica até), a qual inclui letras, figuras não-abstractas, mas que não obstante não coalescem num sentido, digamos, consensual. E é para essa dissolução que os restantes trabalhos caminham.
Os interesses de Molotiu, enquanto professor de História de Arte, especialista em Fragonard e pintura caligráfica chinesa, artista de desenho/pintura caligráfica, de banda desenhada abstracta (além de expôr o seu trabalho e publicá-lo, uma antologia do seu trabalho saiu pela dinamarquesa Fahrenheit: Nautilus), escritor assémico, etc., convergem todos nesta antologia. Quando descreve o trabalho de Gary Panter, ele explica que quase se vê “a imagem a emergir na existência, ou a desaparecer num traço puramente gráfico, ou a formar-se numa figura”. Enfim, é esta ideia que Molotiu persegue noutros locais, e que poderemos entender como uma espécie de fundo em que todas as formas ainda não o são, de onde elas partem e para onde elas retornam, plano para o qual estes trabalhos abrem e nos permitem, mesmo que transitoriamente, como deve ser, observá-lo de modo quase directo.
Apesar de alguns dos trabalhos aqui reunidos terem o princípio da metamorfose na sua base, como o Bleu de Trondheim (neste antologia apenas um excerto de duas páginas) , por exemplo, estes trabalhos obrigam-nos a ver, mais do a ler: aponta-se para uma atenção óptica, abre-se para a ideia de contemplação (mais próxima das artes visuais clássicas). Estará a noção de “abstracção” em contrasenso com a ideia da sequencialidade, que alguém viu como em oposição a simultaneidade? O problema está novamente na tal falta de integração histórica. A simultaneidade ocorre em muitos trabalhos de banda desenhada, e algumas pranchas de Fred, de J. H. Williams em Promethea, de Verbeek, levantam essas questões no próprio seio da legibilidade sequencial... Tal como nas capicuas visuais de Escher, há uma potencialidade de delinear um percurso, mesmo que este seja infinito e todas as suas partes sejam passíveis pontos de entrada e de saída (dessa mesma leitura).
Pierre Fresnaut-Deruelle, no seu seminal artigo “Du linéaire au tabulaire” institui como que dois pólos de leitura da banda desenhada, os quais, na verdade, são empregues sempre, de modo cumulativo, concomitante, e intercalado na leitura de qualquer trabalho. Mesmo num livro dos Estrumpfes, por exemplo, ninguém força o globo ocular a não se mover e apenas ver/ler a primeira vinheta da página da esquerda, e depois mover-se controladamente para a seguinte, e assim sucessivamente. Impossível: o acto natural é que o olho varra a dupla prancha, vogue por todo o espaço de representação num ápice (os movimentos sacádicos) e depois então se centre na unidade de leitura (a vinheta, as figuras, as letras, os signos, etc.). Nunca está o olho desligado da actividade cognitiva, mas os graus de atenção são muito diversos e complexos: podemos estar a ver sem ler (mas nunca a ler sem ver. Nota pessoal: este espaço esteve para se chamar *erbd, em que “*” seria uma letra que pudesse ser lida quer como “l” quer como “v”; mas não foi possível).
As contribuições em Abstract Comics criam uma condição de possibilidade da leitura tabular, ou sacádica, ou contemplativa, mais do que a linear: sobretudo nos trabalhos de Warren Craghead III, Andrei Molotiu, Richard Hahn, Henrik Rehr, Patrick McDonnell (conhecido dos portugueses pela série Mutts, mas que tem trabalhos mais experimentais), e outros. O trabalho de Trondheim ou de Mike Getsiv ou de Andy Bleck não, pois as figuras que os compõem têm características formais que apontam à existência de metamorfoses internas, ou seja, a continuidade de pelo menos um eixo sobre o qual essas metamorfoses operam (e sobre as quais é mais fácil fazer projecções antropomórficas). Por essas razões, Derik Badman (também na antologia) considerou o Bleu de Trodheim como um trabalho “minimalista” e não “abstracto”. Depois temos os trabalhos de Bill Shut e de Mark Staff Brandl, os quais, apesar de menos “morfológicos” que os de Trondheim et al., nos fazem imaginar numa qualquer progressão espacial, um deslocamento do eixo de visão em relação a um objecto, ou um comportamento mental do género (o trabalho time Lapse Growth, de Bill Shut, pode até fazer-nos recordar as óperas místico-siderais de Ditko e Starlin), ou os de Mark Gonyea e Alexey Skolin, em que a ideia de progessão visual é por demais clara.
A meu ver, apesar de ser possível uma visão distraída, desordenada, “livre” (a qual também é possível com qualquer obra de arte, mesmo a mais figurativa, mesmo a mais narrativa, e até mesmo englobando a pura distracção que ocorre quando lemos um romance e nos apercebemos estar a percorrer as letras mas não a ler, ou quando a nossa mente nos impede de ver um filme e nos leva a qualquer lado) em relação a algumas destas pranchas, a própria existência de uma estruturação obriga-nos a incorrer nesse mesmo princípio de organização e estruturação (aparentado, se quisermos, com a ideia de sequencialidade, de temporalidade e até de causalidade). De certo modo está próximo de uma ideia apresentada por Neil Cohn a que este dá o nome de “sistema de navegação” de uma prancha de banda desenhada, e Molotiu de “dinamismo sequencial”, o qual não se relaciona directamente com a estruturas narrativas ou os princípios sequenciais a que estamos habituados como seus descritores, mas sim a “padrões preferenciais” de leitura. Existem alguns estudos nas ciências cognitivas para descrever cada vez melhor e mais exactamente o comportamento óptico-cognitivo na leitura das pranchas de banda desenhada, mas este assunto entrelaça-se com assuntos que provêm igualmente de áreas como a estética, a psicologia visual, a semiótica... enrolando-se num só bolo que estes trabalhos vêm, a um só tempo, complicar e expandir. Logo, o gesto em si é desde logo positivo. Um dos trabalhos do próprio Molotiu incluídos é “The Panic”. O próprio título parece ser uma atitude algo zombeteira da sensação que poderá provocar naqueles que querem apenas verbalizar a sua interpretação de um modo claro e absolutamente desprovido de problemas.
Numa discussão em torno precisamente deste livro, e qual a direcção a que “abstracto” nos poderia levar, a questão acaba por se centrar no “significado”, o qual, como vimos, pode ser mais projectivo do que inerente ao objecto em si. Por essa razão é que recorrer ao sistema semiótico das tríades de Peirce se torna pertinente. Este sistema é mais articulado do que o de Saussure, englobando, sempre, o interpretante, para dar conta da relação “imposta” que poderá surgir entre o símbolo e o significado. Quando olhamos para uma nuvem, esta não tem qualquer intencionalidade de comunicação (o que a coloca fora da relação simbólica de Saussure), mas a verdade é que nós vemos nela por vezes uma forma similar a um qualquer objecto (a forma de um país, um animal), projectando nela esse significado. No caso dos trabalhos desta antologia, isso pode ocorrer de modos mais ou menos conduzidos pelas próprias características objectivas que apresentam. De novo buscando o exemplo de Trondheim, ou os de Ibn al Rabin: é óbvio que eu irei projectar conceitos na minha “leitura” destas manchas; ainda que elas tenham uma forma “abstracta”, eu encontro na relação sequencial entre elas ideias de mistura, cruzamento, consumo, transformação, conflito, etc., ainda que todas elas não sejam mais que metáforas para tentar descrever o que vejo, e não descrições objectivas dessas mesmas acções representadas (se forem "acções"). Neste caso em particular, portanto, ou pelo menos no que me diz respeito enquanto leitor individual, estou a projectar características não apenas animadas - em objectos não só inanimados como sem qualquer movimento (são manchas de linhas e cor no papel, nem sequer se trata de uma animação) – como até antropomorfizadas, ou animal-morfizadas, querendo encontrar traços do comportamento animal nessas manchas.
Claro que a própria premissa da abstracção remete a todo um espectro de potencialidades não-figurativas, representantivas, formais e possibilidades de interpretação que, à partida, se tornam um obstáculo inamovível à sua tipologização. Mas se estamos a querer falar de trabalhos abstractos no campo da banda desenhda, temos igualmente de considerar quais as características da banda desenhada que se mantêm: a ideia, por mais fantasmática que seja, da sequencialidade; os balões (mesmo que nada tenham dentro, ou que apresentem elementos visuais e/ou gráficos não-simbólicos); as palavras (ainda que o editor tenha explicado que elas têm um valor visual ou pictural antes de tudo ou exclusivamente); as composições de página com múltiplas vinhetas que nos façam pensar numa estruturação relativamente clássica.
Voltando a Peirce, e ao adjectivo “assémico” que anotámos a propósito da escrita de Molotiu (e outros autores, reunidos na antologia Asemic Magazine, editada por Tim Gaze, também presente em Abstract Comics), poderemos perguntar-nos se são de facto “assémicas” estas bandas desenhadas. Em primeiro lugar, é necessário entendermos assémico como significando menos “não ter significado” do que “não possuir signos socialmente acordados” (que tenham de atravessar por um qualquer processo de assimilação social, consensual, processo de educação). No entanto, é necessário um pequeno desvio.
Estendida ao campo da biosemiótica (seguimos aqui um escrito de Thomas Sebeok), existe uma condição taxativa nestas relações que nos interessam: não pode existir semiose sem interpretabilidade. Semiose, segundo Peirce, é a acção do signo, ou o processo do signo: há uma relação (triádica) de causa-meio-efeito ou codificação-veículo-descodificação, como por exemplo (dado por Gérard Deledalle) um oficial militar dando uma ordem aos seus soldados (evento A) os quais interpretarão essa ordem (evento B) para que possam cumprir a ordem (evento C). Para Peirce a palavra “signo” não era simplesmente algo que está em lugar de algo (para alguém, sendo este último pormenor a grande distinção em relação a Saussure), mas que ganhava duas acepções, uma através da semiose, que acabámos de apresentar sumariamente, e outra através da sua noção de representamen. Esta é, segundo a definição no Century Dictionary, um “objecto que serve para representar qualquer coisa na mente”. Apesar da complexidade desta distinção, talvez o exemplo do próprio Peirce ajude a esclarecer parcialmente a questão: “quando consultamos um mapa, o próprio mapa é o Veículo [primeira perspectiva formal sobre o representamen: a substância da representação], o país representado é o Objecto Natural [segunda perspectiva: o quasi-agente da representação], e a ideia desencadeada na mente é o Interpretante [terceira perspectiva: o quasi-paciente da representação, ou a modificação intelegente da representação]”.
Tendo em conta ambas as acepções de signo para Peirce, como poderíamos começar a descrever estes “abstract comics”? Têm ou não conteúdo semântico? Sugerem ou não ter significado? Pertencem ou não a um qualquer código ou sistema socialmente aceite? E, por fim, são ou não “banda desenhada”? As respostas não são simples. Estas bandas desenhadas – parto de um pressuposto positivo - são veículos que desencadeiam nas nossas mentes uma qualquer ideia, mas não encontramos qualquer objecto natural consensual (correndo o risco de errar ou de provocar uma interpretação errónea, penso estarmos perto do que Kant chamou de “efeito dinâmico” da nossa procura do entendimento do belo, a sua “imagem flutuante”: em que percebemos um objecto mas não o seu fim/fito). Elas provocam uma semiose (são causa, e provocam efeitos pelo meio dos trabalhos), mas é como se essa interpretabilidade não pudesse ser partilhada do modo mais comum. Provocando um “qualquer significado”, não nos permitem porém aceder a “signos socialmente aceites”. São, portanto, assémicos naquele sentido “aberto” previsto pelos seus cultores. É óbvio que a associação a certos elementos “clássicos” da banda desenhada, como os balões ou a estruturação em vinhetas, nos farão pensar em termos de “comunicação” e de “progressão”.
Todas estas questão serão respondidas, ou desafiadas, melhor dizendo, por todos os trabalhos aqui reunidos. As diferentes técnicas – tinta no papel, aguarelas, lápis, lápis de cor, colagens, manipulação digital, desenho minimal, “patchwork”, traços mais “cartoony” (os de Kochalka, inevitavelmente) -, aliadas às diferentes estratégias e presenças dos elementos “da banda desenhada” nesta variação farão pensar, por um lado, num progressivo diluir de qualquer determinação formal em relação a esta arte (aproximando-a, portanto, de disciplinas artísticas mais livres, conceptuais, onde importa mais o gesto que, por exemplo, o talento, o virtuosismo, o domínio técnico), e, por outro, na emergência fantasmática de uma ideia que os une (o nome: “banda desenhada abstracta”), mas que é, em última instância, irredutível a algo analisável directamente. Não podemos esquecer também dos modos de produção de alguns destes trabalhos: Molotiu, por exemplo, recorre à destruturação progressiva de um qualquer elemento dado (um quadro de Pollock, uma vinheta de Josie and the Pussycats ou de Tony Millionaire, uma prancha d’A Pequena Lulu, uma fotografia de uma modelo, um desenho do filho, etc.), ou a um progressivo “descascar” e subsequente “reformar” até se atingirem os estados paradoxais de articulações de elementos desarticulados. Outros autores neste livro procedem da mesma forma, sendo ora relativamente fácil ora totalmente impossível percebermos quais as fontes (o que, se nos apercebemos, se torna significativo na sua apreciação/interpretação, se não nos apercebermos, não é factor dissuasor dessa mesma apreciação/interpretação). Haverá trabalhos sobre os quais tenho uma preferência diferente, como os de Molotiu, de quem aprecio mais significativamente os trabalhos a preto-e-branco (e que tive oportunidade de mostrar/editar na Divide & Impera, com Warren Craghead III), mas este é um território em contínua expansão (vejam-se os novos trabalhos animados de Molotiu no seu blog), logo, toda a nova perspectiva é-o francamente.
No entanto, gostaria de encontrar uma maior discussão – não necessariamente no seio do próprio livro, mas na sua recepção crítica – em termos de como estes trabalhos, quer os históricos quer os inéditos (alguns dos quais quase criados “de propósito” para a antologia), se vêm agregar a um conjunto mais alargado do “experimentalismo na banda desenhada” que encontramos junto a outros sectores ou estratégias de criação, como, por exemplo, exemplo esse bem visível e de recepção elevada, aqueles trabalhos que encontramos na Frémok (o conjunto dos últimos livros colaborativos e transdisciplinares de Fortemps, Hasselt e Deprez, de que falámos a propósito do artigo deste último na Art & Fact para eles apontam). Ou então que papel poderá eventualmente a banda desenhada ocupar num espaço de divulgação que não o impresso: nos "white cubes" ou mesmo nas "black boxes" dos espaços museológico-galerísticos: como se poderá contrastar entre a exposição comissariada por Molotiu, Silent Pictures, e a Vraoum!, que insiste numa forma de aproximação às "Belas Artes" que considero menos propícia ao avanço da discussão necessária, se necessária ainda (?) junto ao "grande público".
Abstract Comics não se abstrai, então, dessa discussão.
Nada disto obsta a que não encontremos, por um lado, um “experimentalismo”, que só pode surgir na continuidade de normas e modelos e cânones que se vão formando ao longo da história de um meio, de uma arte, razão pela qual me apoio na ideia da narrativa histórica, de Noël Carroll, para encontrar princípios definidores da banda desenhada – é essa narrativa que permite não só não legislar no absoluto, como recontar um determinado percurso que levou a uma particular obra de arte. Sem esse recurso contextualizador, existem obras de arte “ultrapassadas”, “não vale a pena olhar para trás”, ou continuam sem se perceber os gestos de Duchamp, Len Lye, Richter, Cage, Beuys, Snow, Brakhage, Joyce, Vaughn-James, Klimowski... o que seria ridículo. É essa narrativa histórica que nos permite ver, então, alguns autores como experimentais e outros como clássicos (mesmo que tenham inventado novas estratégias visuais, ou fundado uma “ideia”, fundaram também a sua continuidade, diluindo esse gesto único).
Por outro lado, e de um modo paradoxal, é o que também nos ajuda a criar uma “tradição”, nas palavras de Andrei Molotiu, o editor desta antologia que aqui discutimos, uma continuidade de trabalhos aparentados por uma qualquer perspectiva, mesmo que se entenda que essa continuidade não é mais do que uma ilusão, visto que os autores trabalharam relativamente separados e, muitas vezes, com desconhecimento uns dos outros. Na verdade, é aqui que funciona o conceito de Wittgenstein do “ar de família”, permitindo englobar num mesmo descritor vários elementos. O editor elegeu um punhado de princípios e, seja como for, está informado não só por ele próprio ser um cultor e estudioso deste “tipo” de banda desenhada (no seu blog, blotcomics) como também por conhecer a rede de autores que têm trabalhado este território, “rede” permitida pela internet.
Usualmente, quando se começa a procurar este tipo de trabalhos, há como que um movimento de espiral em expansão que, ao longo de todas as linhas de fuga que o “ar de família” permite, se começam a abarcar trabalhos que são aparentados com o seu vizinho, mas que à medida que o movimento se expande e os exemplos se multiplicam, já nada têm a ver com o ponto de partida. Por essa razão, Molotiu exibe, não tanto um conjunto de regras cristalizadas, mas algum método de trabalho, um princípio, para que nem tudo possa ser encontrado no interior do seu gesto editorial. Por exemplo, sempre que se verifique somente um problema de figuração, isto é, em que as personagens são representadas através de formas ora geométricas ora abstractas mas tudo o resto se mantém num programa claro de narrativa, texto, etc., não fará parte do campo abstracto (imagino que um bom exemplo sejam as variações de Tatanka, de Felipe H. Cava e Raúl, publicado entre nós na Quadrado, Vol. 3, no. 1). Ou então quando existem dissoluções de todos esses parâmetros, mas se mantém um qualquer grau de legibilidade, iconicidade, referencialidade, etc., que evitam uma sua leitura abstracta (como acontece, penso, com T.N.T. en Amérique, de Gerner).
O editor estava interessado em procurar uma diferença de natureza, e não de grau. Interessava-lhe um certo aglomerado de ausências: ausência de trama narrativa, ausência de representação nas imagens, ausência de “um espaço diegético unificado”, como disse numa entrevista. Têm de ser, portanto, independentes das projecções dos leitores-espectadores, ou das suas intenções, questão que pode assumir contornos muito complexos. Basta recordarmo-nos das quantidades de manchas de bolor ou de humidade no mundo que são “vistas” como o rosto do Cristo...
O texto de introdução é uma breve mas excelente acção de desenhar um círculo amplíssimo da “pré-história” deste campo de trabalhos. Molotiu engloba na sua introdução o trabalho de “ilustração infantil” (quão redutor parece ser esta aplicação) de El Lissitzky, Suprematicheski Skaz (traduzível, pelo que entendo, por “Sobre dois quadrados”, ou “A história de dois quadrados”, e consultável, na íntegra, julgo, aqui, apontando para a facilidade das tais projecções de características animadas (previstas ou mesmo desejadas no trabalho do construtivista). Um nome que confesso me era desconhecido até agora é o de Kurt Kranz: as suas experiências gráficas, sob a forte influência dos filmes de Walter Ruttman e Hans Richter, e de acordo com Molotiu, poderá ter influenciado Kandinsky e Klee, seus professores na Bauhaus, em alguns trabalhos pontuais destes que mostram a ideia de sequência, de divisão do plano de composição em planos menores (isto é, uma “prancha” com “vinhetas”) e tendo a ideia da metamorfose das figuras “abstractas” no seu seu interior. É bem possível que venhamos a encontrar mais material deste artista graças à força da inércia provocada pela edição deste livro, e até mesmo num eventual segundo volume de trabalhos desta natureza, que se adivinha possível, dados os esforços de concertação e produção de novos trabalhos que o livro e o blog-companheiro, no qual mais material dos autores antologiados se apresentam, desencadearão.
O primeiro trabalho da antologia propriamente dita é a famosa história de Crumb, “Abstract Expressionist Ultra Super Modernistic Comics” (senão sob a influência directa dos efeitos provocados pelo LSD, pelo menos tangencial, irónica até), a qual inclui letras, figuras não-abstractas, mas que não obstante não coalescem num sentido, digamos, consensual. E é para essa dissolução que os restantes trabalhos caminham.
Os interesses de Molotiu, enquanto professor de História de Arte, especialista em Fragonard e pintura caligráfica chinesa, artista de desenho/pintura caligráfica, de banda desenhada abstracta (além de expôr o seu trabalho e publicá-lo, uma antologia do seu trabalho saiu pela dinamarquesa Fahrenheit: Nautilus), escritor assémico, etc., convergem todos nesta antologia. Quando descreve o trabalho de Gary Panter, ele explica que quase se vê “a imagem a emergir na existência, ou a desaparecer num traço puramente gráfico, ou a formar-se numa figura”. Enfim, é esta ideia que Molotiu persegue noutros locais, e que poderemos entender como uma espécie de fundo em que todas as formas ainda não o são, de onde elas partem e para onde elas retornam, plano para o qual estes trabalhos abrem e nos permitem, mesmo que transitoriamente, como deve ser, observá-lo de modo quase directo.
Apesar de alguns dos trabalhos aqui reunidos terem o princípio da metamorfose na sua base, como o Bleu de Trondheim (neste antologia apenas um excerto de duas páginas) , por exemplo, estes trabalhos obrigam-nos a ver, mais do a ler: aponta-se para uma atenção óptica, abre-se para a ideia de contemplação (mais próxima das artes visuais clássicas). Estará a noção de “abstracção” em contrasenso com a ideia da sequencialidade, que alguém viu como em oposição a simultaneidade? O problema está novamente na tal falta de integração histórica. A simultaneidade ocorre em muitos trabalhos de banda desenhada, e algumas pranchas de Fred, de J. H. Williams em Promethea, de Verbeek, levantam essas questões no próprio seio da legibilidade sequencial... Tal como nas capicuas visuais de Escher, há uma potencialidade de delinear um percurso, mesmo que este seja infinito e todas as suas partes sejam passíveis pontos de entrada e de saída (dessa mesma leitura).
Pierre Fresnaut-Deruelle, no seu seminal artigo “Du linéaire au tabulaire” institui como que dois pólos de leitura da banda desenhada, os quais, na verdade, são empregues sempre, de modo cumulativo, concomitante, e intercalado na leitura de qualquer trabalho. Mesmo num livro dos Estrumpfes, por exemplo, ninguém força o globo ocular a não se mover e apenas ver/ler a primeira vinheta da página da esquerda, e depois mover-se controladamente para a seguinte, e assim sucessivamente. Impossível: o acto natural é que o olho varra a dupla prancha, vogue por todo o espaço de representação num ápice (os movimentos sacádicos) e depois então se centre na unidade de leitura (a vinheta, as figuras, as letras, os signos, etc.). Nunca está o olho desligado da actividade cognitiva, mas os graus de atenção são muito diversos e complexos: podemos estar a ver sem ler (mas nunca a ler sem ver. Nota pessoal: este espaço esteve para se chamar *erbd, em que “*” seria uma letra que pudesse ser lida quer como “l” quer como “v”; mas não foi possível).
As contribuições em Abstract Comics criam uma condição de possibilidade da leitura tabular, ou sacádica, ou contemplativa, mais do que a linear: sobretudo nos trabalhos de Warren Craghead III, Andrei Molotiu, Richard Hahn, Henrik Rehr, Patrick McDonnell (conhecido dos portugueses pela série Mutts, mas que tem trabalhos mais experimentais), e outros. O trabalho de Trondheim ou de Mike Getsiv ou de Andy Bleck não, pois as figuras que os compõem têm características formais que apontam à existência de metamorfoses internas, ou seja, a continuidade de pelo menos um eixo sobre o qual essas metamorfoses operam (e sobre as quais é mais fácil fazer projecções antropomórficas). Por essas razões, Derik Badman (também na antologia) considerou o Bleu de Trodheim como um trabalho “minimalista” e não “abstracto”. Depois temos os trabalhos de Bill Shut e de Mark Staff Brandl, os quais, apesar de menos “morfológicos” que os de Trondheim et al., nos fazem imaginar numa qualquer progressão espacial, um deslocamento do eixo de visão em relação a um objecto, ou um comportamento mental do género (o trabalho time Lapse Growth, de Bill Shut, pode até fazer-nos recordar as óperas místico-siderais de Ditko e Starlin), ou os de Mark Gonyea e Alexey Skolin, em que a ideia de progessão visual é por demais clara.
A meu ver, apesar de ser possível uma visão distraída, desordenada, “livre” (a qual também é possível com qualquer obra de arte, mesmo a mais figurativa, mesmo a mais narrativa, e até mesmo englobando a pura distracção que ocorre quando lemos um romance e nos apercebemos estar a percorrer as letras mas não a ler, ou quando a nossa mente nos impede de ver um filme e nos leva a qualquer lado) em relação a algumas destas pranchas, a própria existência de uma estruturação obriga-nos a incorrer nesse mesmo princípio de organização e estruturação (aparentado, se quisermos, com a ideia de sequencialidade, de temporalidade e até de causalidade). De certo modo está próximo de uma ideia apresentada por Neil Cohn a que este dá o nome de “sistema de navegação” de uma prancha de banda desenhada, e Molotiu de “dinamismo sequencial”, o qual não se relaciona directamente com a estruturas narrativas ou os princípios sequenciais a que estamos habituados como seus descritores, mas sim a “padrões preferenciais” de leitura. Existem alguns estudos nas ciências cognitivas para descrever cada vez melhor e mais exactamente o comportamento óptico-cognitivo na leitura das pranchas de banda desenhada, mas este assunto entrelaça-se com assuntos que provêm igualmente de áreas como a estética, a psicologia visual, a semiótica... enrolando-se num só bolo que estes trabalhos vêm, a um só tempo, complicar e expandir. Logo, o gesto em si é desde logo positivo. Um dos trabalhos do próprio Molotiu incluídos é “The Panic”. O próprio título parece ser uma atitude algo zombeteira da sensação que poderá provocar naqueles que querem apenas verbalizar a sua interpretação de um modo claro e absolutamente desprovido de problemas.
Numa discussão em torno precisamente deste livro, e qual a direcção a que “abstracto” nos poderia levar, a questão acaba por se centrar no “significado”, o qual, como vimos, pode ser mais projectivo do que inerente ao objecto em si. Por essa razão é que recorrer ao sistema semiótico das tríades de Peirce se torna pertinente. Este sistema é mais articulado do que o de Saussure, englobando, sempre, o interpretante, para dar conta da relação “imposta” que poderá surgir entre o símbolo e o significado. Quando olhamos para uma nuvem, esta não tem qualquer intencionalidade de comunicação (o que a coloca fora da relação simbólica de Saussure), mas a verdade é que nós vemos nela por vezes uma forma similar a um qualquer objecto (a forma de um país, um animal), projectando nela esse significado. No caso dos trabalhos desta antologia, isso pode ocorrer de modos mais ou menos conduzidos pelas próprias características objectivas que apresentam. De novo buscando o exemplo de Trondheim, ou os de Ibn al Rabin: é óbvio que eu irei projectar conceitos na minha “leitura” destas manchas; ainda que elas tenham uma forma “abstracta”, eu encontro na relação sequencial entre elas ideias de mistura, cruzamento, consumo, transformação, conflito, etc., ainda que todas elas não sejam mais que metáforas para tentar descrever o que vejo, e não descrições objectivas dessas mesmas acções representadas (se forem "acções"). Neste caso em particular, portanto, ou pelo menos no que me diz respeito enquanto leitor individual, estou a projectar características não apenas animadas - em objectos não só inanimados como sem qualquer movimento (são manchas de linhas e cor no papel, nem sequer se trata de uma animação) – como até antropomorfizadas, ou animal-morfizadas, querendo encontrar traços do comportamento animal nessas manchas.
Claro que a própria premissa da abstracção remete a todo um espectro de potencialidades não-figurativas, representantivas, formais e possibilidades de interpretação que, à partida, se tornam um obstáculo inamovível à sua tipologização. Mas se estamos a querer falar de trabalhos abstractos no campo da banda desenhda, temos igualmente de considerar quais as características da banda desenhada que se mantêm: a ideia, por mais fantasmática que seja, da sequencialidade; os balões (mesmo que nada tenham dentro, ou que apresentem elementos visuais e/ou gráficos não-simbólicos); as palavras (ainda que o editor tenha explicado que elas têm um valor visual ou pictural antes de tudo ou exclusivamente); as composições de página com múltiplas vinhetas que nos façam pensar numa estruturação relativamente clássica.
Voltando a Peirce, e ao adjectivo “assémico” que anotámos a propósito da escrita de Molotiu (e outros autores, reunidos na antologia Asemic Magazine, editada por Tim Gaze, também presente em Abstract Comics), poderemos perguntar-nos se são de facto “assémicas” estas bandas desenhadas. Em primeiro lugar, é necessário entendermos assémico como significando menos “não ter significado” do que “não possuir signos socialmente acordados” (que tenham de atravessar por um qualquer processo de assimilação social, consensual, processo de educação). No entanto, é necessário um pequeno desvio.
Estendida ao campo da biosemiótica (seguimos aqui um escrito de Thomas Sebeok), existe uma condição taxativa nestas relações que nos interessam: não pode existir semiose sem interpretabilidade. Semiose, segundo Peirce, é a acção do signo, ou o processo do signo: há uma relação (triádica) de causa-meio-efeito ou codificação-veículo-descodificação, como por exemplo (dado por Gérard Deledalle) um oficial militar dando uma ordem aos seus soldados (evento A) os quais interpretarão essa ordem (evento B) para que possam cumprir a ordem (evento C). Para Peirce a palavra “signo” não era simplesmente algo que está em lugar de algo (para alguém, sendo este último pormenor a grande distinção em relação a Saussure), mas que ganhava duas acepções, uma através da semiose, que acabámos de apresentar sumariamente, e outra através da sua noção de representamen. Esta é, segundo a definição no Century Dictionary, um “objecto que serve para representar qualquer coisa na mente”. Apesar da complexidade desta distinção, talvez o exemplo do próprio Peirce ajude a esclarecer parcialmente a questão: “quando consultamos um mapa, o próprio mapa é o Veículo [primeira perspectiva formal sobre o representamen: a substância da representação], o país representado é o Objecto Natural [segunda perspectiva: o quasi-agente da representação], e a ideia desencadeada na mente é o Interpretante [terceira perspectiva: o quasi-paciente da representação, ou a modificação intelegente da representação]”.
Tendo em conta ambas as acepções de signo para Peirce, como poderíamos começar a descrever estes “abstract comics”? Têm ou não conteúdo semântico? Sugerem ou não ter significado? Pertencem ou não a um qualquer código ou sistema socialmente aceite? E, por fim, são ou não “banda desenhada”? As respostas não são simples. Estas bandas desenhadas – parto de um pressuposto positivo - são veículos que desencadeiam nas nossas mentes uma qualquer ideia, mas não encontramos qualquer objecto natural consensual (correndo o risco de errar ou de provocar uma interpretação errónea, penso estarmos perto do que Kant chamou de “efeito dinâmico” da nossa procura do entendimento do belo, a sua “imagem flutuante”: em que percebemos um objecto mas não o seu fim/fito). Elas provocam uma semiose (são causa, e provocam efeitos pelo meio dos trabalhos), mas é como se essa interpretabilidade não pudesse ser partilhada do modo mais comum. Provocando um “qualquer significado”, não nos permitem porém aceder a “signos socialmente aceites”. São, portanto, assémicos naquele sentido “aberto” previsto pelos seus cultores. É óbvio que a associação a certos elementos “clássicos” da banda desenhada, como os balões ou a estruturação em vinhetas, nos farão pensar em termos de “comunicação” e de “progressão”.
Todas estas questão serão respondidas, ou desafiadas, melhor dizendo, por todos os trabalhos aqui reunidos. As diferentes técnicas – tinta no papel, aguarelas, lápis, lápis de cor, colagens, manipulação digital, desenho minimal, “patchwork”, traços mais “cartoony” (os de Kochalka, inevitavelmente) -, aliadas às diferentes estratégias e presenças dos elementos “da banda desenhada” nesta variação farão pensar, por um lado, num progressivo diluir de qualquer determinação formal em relação a esta arte (aproximando-a, portanto, de disciplinas artísticas mais livres, conceptuais, onde importa mais o gesto que, por exemplo, o talento, o virtuosismo, o domínio técnico), e, por outro, na emergência fantasmática de uma ideia que os une (o nome: “banda desenhada abstracta”), mas que é, em última instância, irredutível a algo analisável directamente. Não podemos esquecer também dos modos de produção de alguns destes trabalhos: Molotiu, por exemplo, recorre à destruturação progressiva de um qualquer elemento dado (um quadro de Pollock, uma vinheta de Josie and the Pussycats ou de Tony Millionaire, uma prancha d’A Pequena Lulu, uma fotografia de uma modelo, um desenho do filho, etc.), ou a um progressivo “descascar” e subsequente “reformar” até se atingirem os estados paradoxais de articulações de elementos desarticulados. Outros autores neste livro procedem da mesma forma, sendo ora relativamente fácil ora totalmente impossível percebermos quais as fontes (o que, se nos apercebemos, se torna significativo na sua apreciação/interpretação, se não nos apercebermos, não é factor dissuasor dessa mesma apreciação/interpretação). Haverá trabalhos sobre os quais tenho uma preferência diferente, como os de Molotiu, de quem aprecio mais significativamente os trabalhos a preto-e-branco (e que tive oportunidade de mostrar/editar na Divide & Impera, com Warren Craghead III), mas este é um território em contínua expansão (vejam-se os novos trabalhos animados de Molotiu no seu blog), logo, toda a nova perspectiva é-o francamente.
No entanto, gostaria de encontrar uma maior discussão – não necessariamente no seio do próprio livro, mas na sua recepção crítica – em termos de como estes trabalhos, quer os históricos quer os inéditos (alguns dos quais quase criados “de propósito” para a antologia), se vêm agregar a um conjunto mais alargado do “experimentalismo na banda desenhada” que encontramos junto a outros sectores ou estratégias de criação, como, por exemplo, exemplo esse bem visível e de recepção elevada, aqueles trabalhos que encontramos na Frémok (o conjunto dos últimos livros colaborativos e transdisciplinares de Fortemps, Hasselt e Deprez, de que falámos a propósito do artigo deste último na Art & Fact para eles apontam). Ou então que papel poderá eventualmente a banda desenhada ocupar num espaço de divulgação que não o impresso: nos "white cubes" ou mesmo nas "black boxes" dos espaços museológico-galerísticos: como se poderá contrastar entre a exposição comissariada por Molotiu, Silent Pictures, e a Vraoum!, que insiste numa forma de aproximação às "Belas Artes" que considero menos propícia ao avanço da discussão necessária, se necessária ainda (?) junto ao "grande público".
Abstract Comics não se abstrai, então, dessa discussão.
20 de setembro de 2009
L’Arleri. Edmond Baudoin (Gallimard)
Uma das primeiras frases do recente e magnífico As praias de Agnés, filme-testemunho, filme-memória, e tememos mesmo que filme-testamento de Agnés Varda (mas no qual não há qualquer sombra trágica, bem pelo contrário, apenas uma imensa algeria de partilha), a realizadora diz acreditar que, se pudéssemos abrir as pessoas, paisagens se revelariam. No caso dela, revelar-se-iam praias. Os leitores de Baudoin entenderão de imediato estas palavras através das imagens concretas das cabeças abertas dos protagonistas das duas Voyages. Neste último livro do autor francês, L’Arleri, há uma passagem na qual o protagonista, narrador e representante do autor, diz acreditar que “cada ser humano é como um país. Mexe-se, transforma-se, torna-se, mantendo o seu saco de instrumentos musicais que lhe foram legados pela sua história e a sua geografia”.
Mas apesar de logo a seguir se apresentar uma pequena tentativa lista de vários instrumentos, nos quais se inclui a voz, a voz humana que tanto serve de ponte como de condição de possibilidade da sua própria incomunicabilidade, como o demonstra a famosa peça-libretto de Cocteau com esse nome, Baudoin parece reduzir o seu país, o seu território, a sua voz mesmo, com este livro. A abertura das personagens parece fechar-se, lentamente, em torno de uma mesma nota, insistente. L’Arleri poderia ser descrito como uma revisitação, típica do movimento de eterno retorno em Baudoin, de certos temas que lhe são caros: temos a relação do pintor e da sua modelo, o acto de sopesar o passado, revendo nele a história pessoal da conquista humana, questões de arte do desenho, e as relações entre os homens e as mulheres. O protagonista é um velho artista, centenário, que durante uma tarde, ou várias coalescidas numa só, vai pintando um retrato, numa tela, da sua jovem modelo, juvenilíssima, quase pubente, em que a sexualidade parece estar ainda a despontar, mas é já gloriosa. Esta questão é importante, como veremos. Este velho é Baudoin, e esta identificação não faz parte da nossa interpretação, mas é fruto de exposição no próprio livro. E aquela modelo tanto poderá ser a companheira actual de Baudoin (a jovem Céline Wagner, com quem já colaborou em dois títulos), como as suas modelos todas numa só, como a ideia de mulher. Esta questão é também importante, como veremos. O velho conta à jove, enquanto pinta, ou mesmo quando mudam de papéis, a sua história, as suas conquistas amorosas, a sua busca pelo significado profundo do amor, do sexo, do que é ser-se vivo e ser-se artistas. Estas questões são igualmente importantes.
De certa forma, o que Agnés tenta com o seu filme, e qualquer autor com a sua obra, é fazer desenrolar as paisagens que levam dentro de si, dos modos como a conseguem formar. Baudoin, até à data, é o que faz, sejam essas paisagens geograficamente palpáveis – as paisagens provençais da sua infância, a montanha e o caminho do seu pai, agora seu, em Saint-Jean, as do Canadá dos seus anos de professor – sejam elas de viagens mais imaginárias ou momentâneas – as das Voyages, as de Crazyman, de Travesti – sejam ainda as que se desenrolam ao longo de todas elas e penetram na sua memória pessoal, nas suas experiêncis, nas suas actividades de artista. Em Le Portrait, um outro artista velho que ocupada o espaço de Baudoin desenhava um mural que era uma paisagem feita de pessoas, e um buraco branco mantinha-se, para ser ocupado pela “vida”. Viria a ser ocupada por uma modelo feminina, claro está, que abriria um outro buraco no artista, uma falta...
Este livro parece concentrar-se sobretudo nas questões das relações entre homens e mulheres, entre o amor possível entre os dois, entre as formas de o expressar, forma superna a da sexualidade. Mas se os gestos do artista/protagonista/Baudoin se revelam aqui capazes de alguma beleza formal, nas formas vermelhas das aguarelas que ultrapassam os contornos que haviam sido prometidos pelas linhas do pincel, pelas composições com fotografias, pelos desarranjos dos mapas dos corpos das personagens, pela quase ingénua e infantil escolha das cores, a sua política, o seu propósito temático, é algo empedernido.
Baudoin sempre teve uma faceta algo soixante-huitard em relação às questões do sexo. A sua atitude de que “amar uma mulher é amá-las a todas”, a eterna insatisfação face à conquista de uma só mulher, a desiquilibrada e sempre irrespondida questão do equilíbrio e mutualismo entre a expressão do amor através do sexo e a fidelidade sexual, ou a capacidade e possibilidade de poder amar mais do que uma pessoa, sempre se apresentou como uma característica menos forte na sua obra. Em L’Arleri é explorada de um modo totalmente descoberto, se a protecção de outros temas ou uma outra história que a tornassem numa faceta: ela é a própria superfície em que se estrutura este livro. E tudo o que daí advém: a dicotomia entre a pulsão tanática do homem versus a capacidade de amor universal, maternal da mulher; as diferenças entre as atitudes sexuais entre uns e outras; a alegria de ver as mulheres a conquistar um espaço social e económico na sociedade mas uma tristeza em vê-las a adoptar os comportamentos masculinos e não a “se tornarem mais mulheres/femininas”, e as consequentes generalizações (o “Eterno Feminino”) que a isso se associam...
O título parte do nome que o protagonista recebia enquanto jovem – projecção ou não, autoficção ou menos, do autor – , uma espécie de pardal da Provença, não só por ser um pássaro que, segundo se acreditava, fazia amor em pleno voo, e que serve de leit motiv para os encontros amorosos neste livro, mas também porque “tinha o cérebro pequeno”. Ainda que essa alcunha seja fruto de zomba, na infância, o jovem adopta-o como exercício de auto-derisão. Mas faz-nos retornar à questão do início, das cabeças fechadas, e já não abertas perante as paisagens que ainda faltam desenrolar pela vida fora. Baudoin tem hoje 67 anos, e a questão da idade tem-se notado surgir nos últimos anos, em que o autor se entrega a maiores balanços. Mas L’Arleri, se faz esses voos de retorno, faz também um voo curtinho, de saltinhos de pássaro mesmo, preso a questões que por mais que queiram dar espaço à expressividade e à liberdade feminina, acabam por se parecer mais como uma projecção de um desejo – “como gostaria que as mulheres fossem assim” – do que um real retrato. No fim do relato de quase 100 páginas (menos exactamente uma), depois do velhote artista ter vogado pelas suas memórias, e ter dado o seu lugar de pintor à sua jovem modelo, tomando o lugar dela de modelo, e depois dessa modelo ter sido capaz de o pintar, ao velho enrugado, com beleza (repescando uma perspectiva do modo como as linhas representam os rostos jovens e os velhos, em Questions de Dessin), ela declara-lhe “Agora vais escutar-me, porque também sei contar histórias”. E o livro termina. Contudo, era exactamente nesse momento, como aliás Baudoin o confessa noutros livros, noutras experiências, que essa voz verdadeiramente “outra” se iria escutar, que o voo do pardal se tornaria mais belo.
Nota: capa tirada da net.
Mas apesar de logo a seguir se apresentar uma pequena tentativa lista de vários instrumentos, nos quais se inclui a voz, a voz humana que tanto serve de ponte como de condição de possibilidade da sua própria incomunicabilidade, como o demonstra a famosa peça-libretto de Cocteau com esse nome, Baudoin parece reduzir o seu país, o seu território, a sua voz mesmo, com este livro. A abertura das personagens parece fechar-se, lentamente, em torno de uma mesma nota, insistente. L’Arleri poderia ser descrito como uma revisitação, típica do movimento de eterno retorno em Baudoin, de certos temas que lhe são caros: temos a relação do pintor e da sua modelo, o acto de sopesar o passado, revendo nele a história pessoal da conquista humana, questões de arte do desenho, e as relações entre os homens e as mulheres. O protagonista é um velho artista, centenário, que durante uma tarde, ou várias coalescidas numa só, vai pintando um retrato, numa tela, da sua jovem modelo, juvenilíssima, quase pubente, em que a sexualidade parece estar ainda a despontar, mas é já gloriosa. Esta questão é importante, como veremos. Este velho é Baudoin, e esta identificação não faz parte da nossa interpretação, mas é fruto de exposição no próprio livro. E aquela modelo tanto poderá ser a companheira actual de Baudoin (a jovem Céline Wagner, com quem já colaborou em dois títulos), como as suas modelos todas numa só, como a ideia de mulher. Esta questão é também importante, como veremos. O velho conta à jove, enquanto pinta, ou mesmo quando mudam de papéis, a sua história, as suas conquistas amorosas, a sua busca pelo significado profundo do amor, do sexo, do que é ser-se vivo e ser-se artistas. Estas questões são igualmente importantes.
De certa forma, o que Agnés tenta com o seu filme, e qualquer autor com a sua obra, é fazer desenrolar as paisagens que levam dentro de si, dos modos como a conseguem formar. Baudoin, até à data, é o que faz, sejam essas paisagens geograficamente palpáveis – as paisagens provençais da sua infância, a montanha e o caminho do seu pai, agora seu, em Saint-Jean, as do Canadá dos seus anos de professor – sejam elas de viagens mais imaginárias ou momentâneas – as das Voyages, as de Crazyman, de Travesti – sejam ainda as que se desenrolam ao longo de todas elas e penetram na sua memória pessoal, nas suas experiêncis, nas suas actividades de artista. Em Le Portrait, um outro artista velho que ocupada o espaço de Baudoin desenhava um mural que era uma paisagem feita de pessoas, e um buraco branco mantinha-se, para ser ocupado pela “vida”. Viria a ser ocupada por uma modelo feminina, claro está, que abriria um outro buraco no artista, uma falta...
Este livro parece concentrar-se sobretudo nas questões das relações entre homens e mulheres, entre o amor possível entre os dois, entre as formas de o expressar, forma superna a da sexualidade. Mas se os gestos do artista/protagonista/Baudoin se revelam aqui capazes de alguma beleza formal, nas formas vermelhas das aguarelas que ultrapassam os contornos que haviam sido prometidos pelas linhas do pincel, pelas composições com fotografias, pelos desarranjos dos mapas dos corpos das personagens, pela quase ingénua e infantil escolha das cores, a sua política, o seu propósito temático, é algo empedernido.
Baudoin sempre teve uma faceta algo soixante-huitard em relação às questões do sexo. A sua atitude de que “amar uma mulher é amá-las a todas”, a eterna insatisfação face à conquista de uma só mulher, a desiquilibrada e sempre irrespondida questão do equilíbrio e mutualismo entre a expressão do amor através do sexo e a fidelidade sexual, ou a capacidade e possibilidade de poder amar mais do que uma pessoa, sempre se apresentou como uma característica menos forte na sua obra. Em L’Arleri é explorada de um modo totalmente descoberto, se a protecção de outros temas ou uma outra história que a tornassem numa faceta: ela é a própria superfície em que se estrutura este livro. E tudo o que daí advém: a dicotomia entre a pulsão tanática do homem versus a capacidade de amor universal, maternal da mulher; as diferenças entre as atitudes sexuais entre uns e outras; a alegria de ver as mulheres a conquistar um espaço social e económico na sociedade mas uma tristeza em vê-las a adoptar os comportamentos masculinos e não a “se tornarem mais mulheres/femininas”, e as consequentes generalizações (o “Eterno Feminino”) que a isso se associam...
O título parte do nome que o protagonista recebia enquanto jovem – projecção ou não, autoficção ou menos, do autor – , uma espécie de pardal da Provença, não só por ser um pássaro que, segundo se acreditava, fazia amor em pleno voo, e que serve de leit motiv para os encontros amorosos neste livro, mas também porque “tinha o cérebro pequeno”. Ainda que essa alcunha seja fruto de zomba, na infância, o jovem adopta-o como exercício de auto-derisão. Mas faz-nos retornar à questão do início, das cabeças fechadas, e já não abertas perante as paisagens que ainda faltam desenrolar pela vida fora. Baudoin tem hoje 67 anos, e a questão da idade tem-se notado surgir nos últimos anos, em que o autor se entrega a maiores balanços. Mas L’Arleri, se faz esses voos de retorno, faz também um voo curtinho, de saltinhos de pássaro mesmo, preso a questões que por mais que queiram dar espaço à expressividade e à liberdade feminina, acabam por se parecer mais como uma projecção de um desejo – “como gostaria que as mulheres fossem assim” – do que um real retrato. No fim do relato de quase 100 páginas (menos exactamente uma), depois do velhote artista ter vogado pelas suas memórias, e ter dado o seu lugar de pintor à sua jovem modelo, tomando o lugar dela de modelo, e depois dessa modelo ter sido capaz de o pintar, ao velho enrugado, com beleza (repescando uma perspectiva do modo como as linhas representam os rostos jovens e os velhos, em Questions de Dessin), ela declara-lhe “Agora vais escutar-me, porque também sei contar histórias”. E o livro termina. Contudo, era exactamente nesse momento, como aliás Baudoin o confessa noutros livros, noutras experiências, que essa voz verdadeiramente “outra” se iria escutar, que o voo do pardal se tornaria mais belo.
Nota: capa tirada da net.
Art & Fact no. 27 (A&F)
Recentemente, um dos mais influentes académicos norte-americanos contemporâneos, Charles Hatfield, autor do fundamental Alternative Comics: An Emerging Literature, colocou no seu blog um breve estado da nação dos estudos de banda desenhada no seu país, texto que seria complementado pelas considerações de um outro autor importante, Joseph Witek, que assinou o igualmente fundamental Comics as History, explorando as bases expostas por Hatfield. São textos de leitura obrigatória para aqueles que se interessam pelo desenvolvimento sustentado e balizado do estudo da banda desenhada. Contudo, não é nosso propósito responder aqui aos desafios desse texto (houvesse competência para tal), até porque ele se cinge à situação dos Estados Unidos, circunstância muito particular, com as suas regras de integração e progressão académica, edição, divulgação, etc. Importa, porém, notar como alguns dos problemas apontados por ambos os autores – o facto de que cada nova obra “fundamental” parece ter de “reinventar a roda”, e ter de criar todo um novo balanço geral para poder coligar a esfera da banda desenhada com aquela da disciplina em questão pelo novo autor, a não-consolidação de um vocabulário ou um conjunto conceptual coerente, o facto de que a profunda e real transdisciplinaridade do campo, apesar de se constituir enquanto característica positiva, surge como obstáculo de diálogo noutros sectores académicos - se expressa por uma questão relativamente visível, que é a fragmentação dos discursos desse país, não havendo propriamente uma coalescência desses discursos entre si, quer dizer, em que um novo estudo venha completar, complementar, responder ou colocar em causa um outro, criando-se uma malha relativamente apertada de referências, o que acontece de facto na Europa francófona (e, mais recentemente, graças aos trabalhos de Ann Miller e de Matthew Screech, incluindo autores anglófonos). Neste outro mundo, a diferença está em que se instituíram uma mão-cheia de autores fundamentais e influentes (Lecigne, Fresnault-Deruelle, Groensteen, Peeters, Lefèvre, Baetens, Morgan, entre outros) que se respondem uns aos outros, fazendo emergir uma verdadeira massa crítica (em nada homogénea ou cristalizada). Um estudo apresentando por Pierre Huard em três números da Critix, “Questions de Méthode” (de que espero dar notícias atempadamente), apresenta um contraponto a estes textos dos americanos – se bem que Hatfield e Witek estejam a falar dum “como” e Huard de um “que” –, apresentando-se não só como um brevíssimo historial dos discursos academizantes sobre a banda desenhada em língua francesa, mas também como a formação do seu próprio campo.
A comparação com Portugal não seria sequer possível, dada as nossas deficiências gravíssimas neste sector, não obstante as tentativas de um par de pessoas e o trabalho, muitas vezes ingrato, dos investigadores que batalham nesta área: salvas excepções, não existem publicações específicas, não existem centros de estudos organizados, não existem instituições eficientes ao seu apoio, não existe um discurso concertado, não existe gravidade, surgindo muitas vezes tentativas ad hoc (e até “haddockianas”), não existe sequer um interesse mais generalizado por esses assuntos. A questão insistente de Witek, “E depois?” é um excelente instrumento para ponderarmos sobre este assunto.
Dito isto, essa malha apertada nota-se praticamente em qualquer publicação de contornos minimanente académicos em língua francesa que se dedique à banda desenhada (nem sempre, porém). Nota-se, por exemplo, na leitura das notas de rodapé e listas bibliográficas dos artigos deste número especial da Art & Fact, aliás, “Revue des historiens de l’art, des archéologues et des musicologues de l’Université de Liège”. Apesar da aparente não-relação imediata entre essa revista e o tema deste número, os artigos aqui reunidos respondem de facto a preocupações sérias e trabalhos desenvolvidos no quadro de discursos anteriores, não havendo espaço para “redescobertas” ou “apresentações”. Como se reparará pela capa, porém, não se trata somente de uma revista dedicada à banda desenhada, mas sim a um prisma muito particular, o da norma e transgressão, suas relações, como a segunda responde à primeira, ou como a primeira se consolida em relação à segunda, que negociações existem, etc.
É nesse prisma então que surgem estudos sobre o conceito do “herói” na dita “banda desenhada realista da idade de ouro”, por Albert Barrera-Vidal; sobre o modo como a “linha clara” de Hergé se tornou uma espécie de “grau zero” da legibilidade da banda desenhada clássica, e como as variações no seu no seu interiorHergHerg, classicizantes com Juillard e meta-referenciais com Marc-Antoine Mathieu, a fazem expandir, por Jean-Louis Tilleuil; sobre esse pólo de tensão e negociação na banda desenhada japonesa, em que as regras se quebram de modos bem diferentes daqueles do Ocidente, por Edit Culot; pelo modo como a banda desenhada de temática homosseual, nos Estados Unidos, partem de uma base de transgressão para, por vezes, criarem um paradoxal campo de conformismo, por Jean-Paul Jennequin; sobre os modos de edição na Bélgica, por Floriane Phillipe; e sobre experiências ou autores específicos que são interpretados ou estudados à luz das noções tema desta publicação: Jean-Claude Forest (por Harry Morgan), a série Donjon (Björn-Olav Dozo), o livro Buscavidas, de Trillo e Breccia (um brevíssimo mas surpreendente estudo sobre um estranho exercício de censura, por Aarnoud Rommens), o T.N.T. en Amérique de Jochen Gerner (por Gert Meesteers), o projecto Match de Catch à Vielsam, da Frémok, entre autores de banda desenhada e pacientes mentais de Hasse (por Erwin Dejasse), a revista belga do fim do século XIX Caprice-Revue como espaço de experimentação desta área então ainda em formação (por Frédéric Paques). Ainda inclui uma longa entrevista a Dominique Goblet, uma importante autora contemporânea de que já falámos aqui a propósito de Faire semblant c’est mentir, de uma sensibilidade verdadeiramente contemporânea (por Pascal Lefèvre, parte de uma entrevista vídeo que já havia apresentado num número da Relief), e um pequeno escrito de Olivier Deprez sobre as suas práticas performativas do desenho, ou de colegas como Vincent Fortemps e Thierry Van Hasselt, em projectos de colaborações transdisciplinares (envolvendo a coreografia, animação, desenho ao vivo), que levaram a livros tais como Blackbookblack, Barques e Heurex, Alright!, de cada um desses autores respectivamente, na Frémok.
Como é de esperar, alguns destes artigos são mais pertinentes e acabados do que outros, mesmo quando abordam autores aparentemente conhecidos, como Forest, ou séries que parecem não encerrar potencialidades de reescrita de todo um posicionamento estético e comercial, como Donjon, e alguns deles têm uma capacidade de actuação mais limitada, como o artigo sobre a produção japonesa: contudo, todos fazem, em conjunto, uma circunscrição acabada das duas noções intrinsecamente ligadas – norma e transgressão -, e mesmo assim permitindo a múltipla leitura dessas mesmas noções, conforme a contextualização em que são encontrados e estudados.
A edição da revista foi acompanhada ainda de dois outros projectos complementares. Um foi a edição de uma espécie de portfolio de Dominique Goblet. Contudo, não tendo comprado esse projecto, apenas podemos imaginar o prazer perdido. O outro trata-se de um pequeno livro que reune trabalhos anteriormente publicados e inéditos de Benjamin Monti, Ruminations, criando-se um objecto coerente – a própria ideia de “ruminação” aponta para um retorno a materiais anteriores para a sua reestruturação - , ainda que em torno de experimentalismos formais, narrativos e figurativos que surgem como um desafio à interpretação. Encontrando, em termos figurativos, ecos tanto de autores clássicos como Jean-Claude Servais como de mais independentes como Romain Slocombe ou Chantal Montellier, o que Monti nos oferta é uma espécie de alegoria em torno da violência e da morte, numa narrativa cujos experimentalismos indicados desenham um sentido mais elusivo do que cumulativo nos seus efeitos de recepção.
Nota final: agradecimentos a Isabel Baraona, por me ter colocado na senda desta publicação.
A comparação com Portugal não seria sequer possível, dada as nossas deficiências gravíssimas neste sector, não obstante as tentativas de um par de pessoas e o trabalho, muitas vezes ingrato, dos investigadores que batalham nesta área: salvas excepções, não existem publicações específicas, não existem centros de estudos organizados, não existem instituições eficientes ao seu apoio, não existe um discurso concertado, não existe gravidade, surgindo muitas vezes tentativas ad hoc (e até “haddockianas”), não existe sequer um interesse mais generalizado por esses assuntos. A questão insistente de Witek, “E depois?” é um excelente instrumento para ponderarmos sobre este assunto.
Dito isto, essa malha apertada nota-se praticamente em qualquer publicação de contornos minimanente académicos em língua francesa que se dedique à banda desenhada (nem sempre, porém). Nota-se, por exemplo, na leitura das notas de rodapé e listas bibliográficas dos artigos deste número especial da Art & Fact, aliás, “Revue des historiens de l’art, des archéologues et des musicologues de l’Université de Liège”. Apesar da aparente não-relação imediata entre essa revista e o tema deste número, os artigos aqui reunidos respondem de facto a preocupações sérias e trabalhos desenvolvidos no quadro de discursos anteriores, não havendo espaço para “redescobertas” ou “apresentações”. Como se reparará pela capa, porém, não se trata somente de uma revista dedicada à banda desenhada, mas sim a um prisma muito particular, o da norma e transgressão, suas relações, como a segunda responde à primeira, ou como a primeira se consolida em relação à segunda, que negociações existem, etc.
É nesse prisma então que surgem estudos sobre o conceito do “herói” na dita “banda desenhada realista da idade de ouro”, por Albert Barrera-Vidal; sobre o modo como a “linha clara” de Hergé se tornou uma espécie de “grau zero” da legibilidade da banda desenhada clássica, e como as variações no seu no seu interiorHergHerg, classicizantes com Juillard e meta-referenciais com Marc-Antoine Mathieu, a fazem expandir, por Jean-Louis Tilleuil; sobre esse pólo de tensão e negociação na banda desenhada japonesa, em que as regras se quebram de modos bem diferentes daqueles do Ocidente, por Edit Culot; pelo modo como a banda desenhada de temática homosseual, nos Estados Unidos, partem de uma base de transgressão para, por vezes, criarem um paradoxal campo de conformismo, por Jean-Paul Jennequin; sobre os modos de edição na Bélgica, por Floriane Phillipe; e sobre experiências ou autores específicos que são interpretados ou estudados à luz das noções tema desta publicação: Jean-Claude Forest (por Harry Morgan), a série Donjon (Björn-Olav Dozo), o livro Buscavidas, de Trillo e Breccia (um brevíssimo mas surpreendente estudo sobre um estranho exercício de censura, por Aarnoud Rommens), o T.N.T. en Amérique de Jochen Gerner (por Gert Meesteers), o projecto Match de Catch à Vielsam, da Frémok, entre autores de banda desenhada e pacientes mentais de Hasse (por Erwin Dejasse), a revista belga do fim do século XIX Caprice-Revue como espaço de experimentação desta área então ainda em formação (por Frédéric Paques). Ainda inclui uma longa entrevista a Dominique Goblet, uma importante autora contemporânea de que já falámos aqui a propósito de Faire semblant c’est mentir, de uma sensibilidade verdadeiramente contemporânea (por Pascal Lefèvre, parte de uma entrevista vídeo que já havia apresentado num número da Relief), e um pequeno escrito de Olivier Deprez sobre as suas práticas performativas do desenho, ou de colegas como Vincent Fortemps e Thierry Van Hasselt, em projectos de colaborações transdisciplinares (envolvendo a coreografia, animação, desenho ao vivo), que levaram a livros tais como Blackbookblack, Barques e Heurex, Alright!, de cada um desses autores respectivamente, na Frémok.
Como é de esperar, alguns destes artigos são mais pertinentes e acabados do que outros, mesmo quando abordam autores aparentemente conhecidos, como Forest, ou séries que parecem não encerrar potencialidades de reescrita de todo um posicionamento estético e comercial, como Donjon, e alguns deles têm uma capacidade de actuação mais limitada, como o artigo sobre a produção japonesa: contudo, todos fazem, em conjunto, uma circunscrição acabada das duas noções intrinsecamente ligadas – norma e transgressão -, e mesmo assim permitindo a múltipla leitura dessas mesmas noções, conforme a contextualização em que são encontrados e estudados.
A edição da revista foi acompanhada ainda de dois outros projectos complementares. Um foi a edição de uma espécie de portfolio de Dominique Goblet. Contudo, não tendo comprado esse projecto, apenas podemos imaginar o prazer perdido. O outro trata-se de um pequeno livro que reune trabalhos anteriormente publicados e inéditos de Benjamin Monti, Ruminations, criando-se um objecto coerente – a própria ideia de “ruminação” aponta para um retorno a materiais anteriores para a sua reestruturação - , ainda que em torno de experimentalismos formais, narrativos e figurativos que surgem como um desafio à interpretação. Encontrando, em termos figurativos, ecos tanto de autores clássicos como Jean-Claude Servais como de mais independentes como Romain Slocombe ou Chantal Montellier, o que Monti nos oferta é uma espécie de alegoria em torno da violência e da morte, numa narrativa cujos experimentalismos indicados desenham um sentido mais elusivo do que cumulativo nos seus efeitos de recepção.
Nota final: agradecimentos a Isabel Baraona, por me ter colocado na senda desta publicação.
Para mais informações e compra, ver site da instituição.
17 de setembro de 2009
Manga Mammoth. Francesc Ruiz en Tokio. Francesc Ruiz (Save as… Publications)
Já sabemos o modo como a cultura japonesa exerce ainda um fascínio que é muito diferente daquele que é conquistado por outras culturas Outras (não é gralha). O entrosamento entre a cultura popular, a potencialidade especial das ficções da mangá e animé se prestarem à fan-fiction, o desejo em manter para com a vida uma situação de perene adolescência (senão mesmo infância), e a impermeabilidade da cultura japonesa à leitura total (desde Barthes, desde antes?) resultam numa estranha mescla de imitação superficial, de transformação daquela cultura e suas produções em desculpa para a criação de características diferenciadoras no indivíduo que as persegue, num discurso que, por mais entre nós que se mobilize, é sempre outro.
Esse posicionamento, e enquadramento sócio-cultural é apenas um ponto de partida mas que ganha uma qualificação diferenciadora, leve, por Francesc Ruiz. Este artista catalão explora algumas das possíveis ligações entre a vertente formal da banda desenhada e um modo de criação visual da arte contemporânea. Vários textos, partindo quiçá da sua própria capacidade discursiva, alegam trabalhar num “campo expandido” da banda desenhada. Aquilo que me leva a definir essa diferenciação como “leve” deve-se ao facto do seu trabalho se inserir naquilo que chamei a “experimentação sobre a banda desenhada”, isto é, essas conexões possíveis, mas necessariamente parciais, pontuais, entre os discursos e práticas específicos às artes visuais de galeria (e espaços afins) e os da banda desenhada, por oposição à “experimentação na banda desenhada”, que verificamos no interior do seu próprio campo (e de quem temos tentado acompanhar, juntamente com outros críticos, os trabalhos, e a que Divide & Impera tentou responder).
Dito isto, esses projectos de Ruiz, que poderão ser explorados através das galerias a que está afecto, a barcelonesa Galeria d’art Estrany ou a berlinense Maribel Lopez, também se dedica – paralelamente?, complementarmente?, extensivamente?, o termo correcto não é consensual – à produção de objectos mais próximos da banda desenhada propriamente dita, como este livro. Em muitos dos seus trabalhos, de “banda desenhada expandida” (nas galerias) ou de banda desenhada, Ruiz, homossexual, explora não apenas os formalismos e estratégias narrativas análogas à da banda desenhada, como particularmente a banda desenhada japonesa de temática gay, sobretudo aquela criada por mulheres e consumida por mulheres, a que se dá o nome de yaoi manga. Tendo em conta a forte e regradamente estratificada produção cultural de banda desenhada naquele país, faz todo o sentido circunscrever essa objecto de estudo. Se pareço declarar gratuitamente aqui um aspecto da vida pessoal do autor, é porque essa informação é central na trama deste pequeno diário, ou relato, de viagem. Manga Mammoth. Francesc Ruiz en Tokio trata de uma curta viagem de uma semana de Ruiz a Tóquio, cujo objectivo era “un proyecto de cómic autobiográfico en el que quería reflejar el mundo del manga y su relación con la comunidad gay”, explorando-se portanto os fundamentos e as consequências daquele tipo de mangá aventado acima – com todas as leituras possíveis, de hipocrisia a abertura, de opressivo a libertário – mas também na senda do caminho aberto pelos trabalhos do artista japonês Jiraiya, que ilustrava as capas da revista G-Men, dedicada a homens usualmente muito musculados e barbudos, da dita comunidade homossexual “bear” (“ursos”). Essa investigação é a desculpa da viagem – e o autor expressa ao longo do texto o seu conhecimento histórico, teórico e político deste campo, citando estudos e autores, datas e publicações (a que existe progressivamente mais acesso com as traduções nos círculos académicos, como pela norte-americana Mechademia) -, mas não a matéria do livro em si. Aqui e ali acompanhamo-lo na sua procura de publicações, no seu trabalho de pesquisa e até adivinhamos entrevistas e conversas profícuas, mas o livro centra-se num só acontecimento cumulativo: a descoberta do bar gay Mammoth.
Ruiz faz, pelo menos fisicamente, parte dessa comunidade “bear” e o bar Mammoth agrega particularmente cliente japoneses que partilham as mesmas características e interesses – não quero com estes comentários parecer redutor das liberdades e idiossincracias destas pessoas, mas somente ter em conta que numa sociedade assaz estratificada e em que as dicussões sobre a sexualidade, ao contrário do que possa parecer, não são públicas, a necessidade de “portos de abrigo” é maior, tal como é ainda, infelizmente, em Portugal, em que os preconceitos e os estigmas ainda não foram abolidos por completo. O livro dá conta do lento ritual de entrada e descoberta deste espaço, dos seus espectáculos, da dificuldade e dos passos necessários para encetar conversas com as pessoas que lá trabalham ou que o frequentam, o modo como o autor vai conseguindo comunicar, ligar e aproximar-se dessas pessoas – atravessando todas as estratégias típicas dos turistas, do forasteiro no Japão ávido pela sedução em seu torno. E o corolário está, como não podia deixar de ser, nas súbitas paixonetas por esses, mas que se manterão somente nesse círculo de diálogo afastado, cumprido por pequenos gestos que lhe serve de matéria para estas memórias. Não há qualquer tipo de tensão, e Ruiz não inventa – ou não parece inventar – nenhum tipo de trama empolgante em torno destes acontecimentos quase banais de um turista em Tóquio (não obstante os seus interesses específicos, alheios às cartilhas mais usuais: aliás, o autor não deixa de, a um só tempo, revelar-se como “turista banal” como de marcar a sua “diferença dos demais”). No fundo, essa é uma lição que quase todos os diários de viagem sobre “culturas exóticas”, mormente os de banda desenhada, que se prendem usualmente mais às relações entabuladas com as pessoas “de lá”, nos dão a ver: como é possível criar laços de proximidade, até de amizade (por mais circunstancial e transitória que seja), não deixando que a “alteridade” se dissipe e até se torne mesmo factor de um processo de busca e descoberta muito particular.
O próprio formato do livro parece querer dar a ver, a um só tempo, a ideia de “alteridade” e de “viagem”. Se bem que o scan da capa faça imaginar um livro ao comprido, a espinha do mesmo está acima, isto é, o formato está muito próximo dos tankobon, mas para se ler temos de o folhear como se de um livro de postais se tratasse. Tudo está impresso num laranja vivo, quase fluorescente, e as letras são todas impressas em maiúsculas com os pontos minúsculos: tudo isto concorre para alguma dificuldade de leitura, que apenas podemos integrar na tentativa de a “estranhar”, acompanhando as sensações de atravessar a cidade de Tóquio.
Notas finais: agradecimentos a Marco Mendes, pelo empréstimo do livro.
Esse posicionamento, e enquadramento sócio-cultural é apenas um ponto de partida mas que ganha uma qualificação diferenciadora, leve, por Francesc Ruiz. Este artista catalão explora algumas das possíveis ligações entre a vertente formal da banda desenhada e um modo de criação visual da arte contemporânea. Vários textos, partindo quiçá da sua própria capacidade discursiva, alegam trabalhar num “campo expandido” da banda desenhada. Aquilo que me leva a definir essa diferenciação como “leve” deve-se ao facto do seu trabalho se inserir naquilo que chamei a “experimentação sobre a banda desenhada”, isto é, essas conexões possíveis, mas necessariamente parciais, pontuais, entre os discursos e práticas específicos às artes visuais de galeria (e espaços afins) e os da banda desenhada, por oposição à “experimentação na banda desenhada”, que verificamos no interior do seu próprio campo (e de quem temos tentado acompanhar, juntamente com outros críticos, os trabalhos, e a que Divide & Impera tentou responder).
Dito isto, esses projectos de Ruiz, que poderão ser explorados através das galerias a que está afecto, a barcelonesa Galeria d’art Estrany ou a berlinense Maribel Lopez, também se dedica – paralelamente?, complementarmente?, extensivamente?, o termo correcto não é consensual – à produção de objectos mais próximos da banda desenhada propriamente dita, como este livro. Em muitos dos seus trabalhos, de “banda desenhada expandida” (nas galerias) ou de banda desenhada, Ruiz, homossexual, explora não apenas os formalismos e estratégias narrativas análogas à da banda desenhada, como particularmente a banda desenhada japonesa de temática gay, sobretudo aquela criada por mulheres e consumida por mulheres, a que se dá o nome de yaoi manga. Tendo em conta a forte e regradamente estratificada produção cultural de banda desenhada naquele país, faz todo o sentido circunscrever essa objecto de estudo. Se pareço declarar gratuitamente aqui um aspecto da vida pessoal do autor, é porque essa informação é central na trama deste pequeno diário, ou relato, de viagem. Manga Mammoth. Francesc Ruiz en Tokio trata de uma curta viagem de uma semana de Ruiz a Tóquio, cujo objectivo era “un proyecto de cómic autobiográfico en el que quería reflejar el mundo del manga y su relación con la comunidad gay”, explorando-se portanto os fundamentos e as consequências daquele tipo de mangá aventado acima – com todas as leituras possíveis, de hipocrisia a abertura, de opressivo a libertário – mas também na senda do caminho aberto pelos trabalhos do artista japonês Jiraiya, que ilustrava as capas da revista G-Men, dedicada a homens usualmente muito musculados e barbudos, da dita comunidade homossexual “bear” (“ursos”). Essa investigação é a desculpa da viagem – e o autor expressa ao longo do texto o seu conhecimento histórico, teórico e político deste campo, citando estudos e autores, datas e publicações (a que existe progressivamente mais acesso com as traduções nos círculos académicos, como pela norte-americana Mechademia) -, mas não a matéria do livro em si. Aqui e ali acompanhamo-lo na sua procura de publicações, no seu trabalho de pesquisa e até adivinhamos entrevistas e conversas profícuas, mas o livro centra-se num só acontecimento cumulativo: a descoberta do bar gay Mammoth.
Ruiz faz, pelo menos fisicamente, parte dessa comunidade “bear” e o bar Mammoth agrega particularmente cliente japoneses que partilham as mesmas características e interesses – não quero com estes comentários parecer redutor das liberdades e idiossincracias destas pessoas, mas somente ter em conta que numa sociedade assaz estratificada e em que as dicussões sobre a sexualidade, ao contrário do que possa parecer, não são públicas, a necessidade de “portos de abrigo” é maior, tal como é ainda, infelizmente, em Portugal, em que os preconceitos e os estigmas ainda não foram abolidos por completo. O livro dá conta do lento ritual de entrada e descoberta deste espaço, dos seus espectáculos, da dificuldade e dos passos necessários para encetar conversas com as pessoas que lá trabalham ou que o frequentam, o modo como o autor vai conseguindo comunicar, ligar e aproximar-se dessas pessoas – atravessando todas as estratégias típicas dos turistas, do forasteiro no Japão ávido pela sedução em seu torno. E o corolário está, como não podia deixar de ser, nas súbitas paixonetas por esses, mas que se manterão somente nesse círculo de diálogo afastado, cumprido por pequenos gestos que lhe serve de matéria para estas memórias. Não há qualquer tipo de tensão, e Ruiz não inventa – ou não parece inventar – nenhum tipo de trama empolgante em torno destes acontecimentos quase banais de um turista em Tóquio (não obstante os seus interesses específicos, alheios às cartilhas mais usuais: aliás, o autor não deixa de, a um só tempo, revelar-se como “turista banal” como de marcar a sua “diferença dos demais”). No fundo, essa é uma lição que quase todos os diários de viagem sobre “culturas exóticas”, mormente os de banda desenhada, que se prendem usualmente mais às relações entabuladas com as pessoas “de lá”, nos dão a ver: como é possível criar laços de proximidade, até de amizade (por mais circunstancial e transitória que seja), não deixando que a “alteridade” se dissipe e até se torne mesmo factor de um processo de busca e descoberta muito particular.
O próprio formato do livro parece querer dar a ver, a um só tempo, a ideia de “alteridade” e de “viagem”. Se bem que o scan da capa faça imaginar um livro ao comprido, a espinha do mesmo está acima, isto é, o formato está muito próximo dos tankobon, mas para se ler temos de o folhear como se de um livro de postais se tratasse. Tudo está impresso num laranja vivo, quase fluorescente, e as letras são todas impressas em maiúsculas com os pontos minúsculos: tudo isto concorre para alguma dificuldade de leitura, que apenas podemos integrar na tentativa de a “estranhar”, acompanhando as sensações de atravessar a cidade de Tóquio.
Notas finais: agradecimentos a Marco Mendes, pelo empréstimo do livro.
16 de setembro de 2009
Ponyo. Filme de Hayao Miyazaki
Em todos os filmes anteriores de Miyazaki, a ideologia ecologista era clara, pelo menos desde a sua longa-metragem Nausicaä (1984), se bem que possamos encontrar contornos das mesmas ideias em Conan. Existem sempre personagens dispostas nos tabuleiros das suas tramas narrativas de forma a construir como que duas posições antagónicas (poder-se-ia dizer até manequeístas, mas isso não é totalmente verdade em Miyazaki, havendo sempre espaços de intervalo e dissolução desses mesmos papéis), uma da quais que entende o sacrifício da natureza como passo necessário para um qualquer tipo de “avanço” (exteriorizado, material, palpável) e outra que procura defender as coisas da natureza (interiorizada, espiritual, um “avanço para dentro”). No caso de Ponyo à beira-mar, a primeira posição surge dissolvida em toda a humanidade, ao passo que a primeira, apesar de subsumida a um princípio mais egoísta – o desejo da sereia Ponyo em se tornar humana -, é ocupada pelas personagens principais do filme. Ora, poderemos nós afirmar que em Ponyo essa noção se torna demasiado explícita, roçando o proselitismo (mais até do que a cena de Chihiro a salvar o rio da poluição que o enclausurava)?
Podemos ver o filme de duas formas distintas, penso. Ou a partir da perspectiva de um adulto, querendo encontrar estrutura, um equilíbrio interessante entre o número de elementos e a forma como se encaixam e criam variações internamente ao filme, associações com outros textos culturais (a colagem a Pequena Sereia, pela versão original de Andersen, é por demais clara), e a partir daí transformando-o num texto legível através de toda uma série de instrumentos críticos. Essa é uma actividade não só plausível e possível como expectável da parte de um discurso crítico, propriamente. Outra é a perspectiva infantil, para quem o filme é sobretudo criado. Nesse campo, no que diz respeito à produção mainstream da animação clássica, Miyazaki ocupa um indiscutível lugar de destaque. Na verdade, Miyazaki responde sempre a alguns dos temas mais prementes do animé, como as “monstruosidades biológicas e/ou tecnológicas” e as “fantasias apocalípticas” – como identificados na antologia de ensaios Cinema Anime, a título de exemplo – mas sempre colocando-os em termos infantis (e não adolescentes, como a esmagadora maioria da produção cinematográfica de animação japonesa). Ponyo à beira-mar evoca a ideia de fim do mundo, mas a violência desse acontecimento é expressa através de elementos aparentemente inócuos: uma chuva de estrelas brilhantes, a invasão das águas que transforma a pequena terreola numa espécie de utopia aquática, habitada por magníficos peixes pré-históricos e medusas, e uma ideia de limpeza que não é secundária na leitura global do significado do filme. E a monstruosidade encontra-se presente em criaturas de contornos doces: Fujimoto, que já foi homem e agora é criatura do mar, a deusa (xintoísta) do mar, a própria Ponyo. Não há nenhuma personagem que se horrorize verdadeiramente com o facto de Ponyo ser uma sereia e que se prometa ali uma relação futura com um humano (ela torna-se humana, claro). Qualquer vertente que possa ser explorada de modo violento desaparece, e fica apenas o ambiente do milagre: na sua acepção literária mais estrita, Ponyo (tal como os anteriores filmes) pertence à esfera do maravilhoso. [É curioso comparar o plano da casa de Susuke e Lisa com a da mãe de Norman Bates: estrutura a focalização idêntica, sinal completamente diverso; tal como o plano da deusa-mãe nos poderá recordar o da mulher em A Valsa com Bashir: os modos de emprego diferenciados de formas análogas levam a sentidos distintos].
A esmagadora maioria das longas-metragens de cinema de animação, pelas próprias condições de produção (isto é, integradas numa verdadeira indústria de princípios e objectivos num quadro económico), pauta-se por uma inscrição nas regras mais clássicas da representação e da narração.
Quanto à primeira, trata-se daquilo que o princípio do real dirige, em que mesmo a aparentemente mais fantástica, mais fantasiosa, mais fantasmagórica das formas corresponde a uma “realidade” – com peso gravitacional, redes de interacção, tangibilidade – do universo em que se insere. Isto é o que se passa em todos filmes de fantasia (inclusive ficção científica, high fantasy e super-heróis): o “monstro” existe mesmo naquele local, os raios de luz são disparados de uma arma, etc. E quanto se trata de filmes que implicam algum grau de realismo (ao acaso: Mulan e Coraline), os acontecimentos respeitam as mesmas regras do que seria um filme com actores reais, objectos na gravidade terrestres, etc. (por exemplo, o jogo de cortes entre cenas de Coraline é totalmente “cinematográfico”, em vez de procurar uma plasticidade mais livre, permitida pelas próprias formas animadas: veja-se o My Love, de Aleksandr Petrov, para transições mais livres, animadas). A animação que mais jogaria contra esta “regra” é aquela “de autor”, onde podemos encontrar os clássicos trabalhos de Len Lye, Norman McLaren e René Jodoin (e ao qual poderíamos acrescentar nomes do cinema experimental, como os Rhythmus de Hans Richter).
Quanto à narração, tem a ver com o facto de que todas e quaisquer formas ou elementos que surjam no espaço de representação tenham que estar subsumidas ao programa narrativo. A ideia de exploração de formas para efeitos plásticos puros, efeitos visuais, atracções, etc., está como que diluída, senão mesmo negada. Nalguns filmes de Ivan Maximov (como Niti ou Da esquerda para a direita) encontramos esses princípios esbatidos, na sua procissão de personagens múltiplas; o ainda magnífico Yellow Submarine explora as várias estratégias de animação para construir espaços de representação musical e de efeitos visuais o mais livremente possível. Por exemplo, os mais recentes Waking Life, A Scanner Darkly e Renaissance usam a rotoscopia mas para efeitos muito limitados, “surrealismos” (i.e., algo “por sobre” a realidade) de um grau muito curto. Não há, neles, uma utilização da eventual mais-valia permitida pela animação em relação a toda a panóplia de intervenções que hoje as tecnologias digitais permitem. E essa mais-valia é, acima de tudo, ontológica, estética, e não meramente técnica.
Ponyo inscreve-se na abordagem clássica destas questões. Tem uma história para contar e todos os seus elementos concorrem de um modo claro para ela. Na fundo, tendo em conta o facto de que este filme se apresenta na condição de narrativa clássica, a trama é algo pobre, não existindo crises nem internas às personagens nem obstáculos de maior externos que possam impedir a prossecução dos seus objectivos. A Princesa Mononoke e A Viagem de Chihiro eram relativamente mais complexos (mas ainda assim simples) do que o presente filme, o que o leva a interpretar como algo que tenha sido criado quase exclusivamente para as crianças mais novas – daí as contínuas cenas “maravilhosas”. As características formais-narrativas de Miyazaki mantêm-se perenes: personagens de rostos límpidos e inocentes, uma personagem ocupando o espaço ou função de antagonista com traços físicos muito diferentes dos das restantes personagens, momentos de humor que passam pela expressividade mais frenética da felicidade simples das crianças, localidades que sublimam os aspectos mais positivos das cidades reais, grandes massas de matéria a cavalgar ou a atravessar grandes distâncias, etc.
Esta ideia de uma infantilização persegue-se noutras linhas. As figuras paternais nunca se encontram muito à vontade nos filmes do realizador japonês e, mesmo que sejam identificados e ajam até neste filme, a verdade é que o pai é apenas uma figura semi-ausente e sem qualquer importância na economia da trama, e a mãe acaba por também se revestir de uma importância secundária. O próprio facto do pequeno Susuke a tratar por “Lisa” e não por “Oka-san” ou outro termos qualquer, aponta para uma distanciação que, não sendo explorada e exposta, se torna significativa nessa secundarização. Há, porém, um momento digno de Hitchcock, se bem que menos tenso: quando Lisa fala com a Deusa no interior de uma bolha protectora, observamos essa cena “de fora”, com as velhotas do lar. Nada nos é dado a ver dessa conversa, nem uma frase solta, nem expressão corporal... Não é que seja pouco importante, talvez, mas que essa comunicação entre “mães” seja deixada fora de alcance, pois é “conversa de adultos”, reforçando sempre esta perspectiva infantil (as velhotas, apesar da idade, agem, de novo, como crianças).
Dito isto, o entrosamento de uma quase impositiva filosofia ecologista aliada à simplificação de quase todos os elementos que compõem este filme tornam-no uma das obras menos acabadas de Miyazaki, que foi bem mais comovente com Totoro, e elaborado com Mononoke. Não obstante, se nos abstrairmos do peso necessário da história e dos movimentos lineares a que as personagens são obrigadas – para que de facto se possa dizer que existe uma “história” -, restam algumas imagens e sequências de puro movimento e metamorfose que poderiam muito bem sobreviver como obras autónomas, se o realizador se entregasse a exercícios de experimentalismo.
Podemos ver o filme de duas formas distintas, penso. Ou a partir da perspectiva de um adulto, querendo encontrar estrutura, um equilíbrio interessante entre o número de elementos e a forma como se encaixam e criam variações internamente ao filme, associações com outros textos culturais (a colagem a Pequena Sereia, pela versão original de Andersen, é por demais clara), e a partir daí transformando-o num texto legível através de toda uma série de instrumentos críticos. Essa é uma actividade não só plausível e possível como expectável da parte de um discurso crítico, propriamente. Outra é a perspectiva infantil, para quem o filme é sobretudo criado. Nesse campo, no que diz respeito à produção mainstream da animação clássica, Miyazaki ocupa um indiscutível lugar de destaque. Na verdade, Miyazaki responde sempre a alguns dos temas mais prementes do animé, como as “monstruosidades biológicas e/ou tecnológicas” e as “fantasias apocalípticas” – como identificados na antologia de ensaios Cinema Anime, a título de exemplo – mas sempre colocando-os em termos infantis (e não adolescentes, como a esmagadora maioria da produção cinematográfica de animação japonesa). Ponyo à beira-mar evoca a ideia de fim do mundo, mas a violência desse acontecimento é expressa através de elementos aparentemente inócuos: uma chuva de estrelas brilhantes, a invasão das águas que transforma a pequena terreola numa espécie de utopia aquática, habitada por magníficos peixes pré-históricos e medusas, e uma ideia de limpeza que não é secundária na leitura global do significado do filme. E a monstruosidade encontra-se presente em criaturas de contornos doces: Fujimoto, que já foi homem e agora é criatura do mar, a deusa (xintoísta) do mar, a própria Ponyo. Não há nenhuma personagem que se horrorize verdadeiramente com o facto de Ponyo ser uma sereia e que se prometa ali uma relação futura com um humano (ela torna-se humana, claro). Qualquer vertente que possa ser explorada de modo violento desaparece, e fica apenas o ambiente do milagre: na sua acepção literária mais estrita, Ponyo (tal como os anteriores filmes) pertence à esfera do maravilhoso. [É curioso comparar o plano da casa de Susuke e Lisa com a da mãe de Norman Bates: estrutura a focalização idêntica, sinal completamente diverso; tal como o plano da deusa-mãe nos poderá recordar o da mulher em A Valsa com Bashir: os modos de emprego diferenciados de formas análogas levam a sentidos distintos].
A esmagadora maioria das longas-metragens de cinema de animação, pelas próprias condições de produção (isto é, integradas numa verdadeira indústria de princípios e objectivos num quadro económico), pauta-se por uma inscrição nas regras mais clássicas da representação e da narração.
Quanto à primeira, trata-se daquilo que o princípio do real dirige, em que mesmo a aparentemente mais fantástica, mais fantasiosa, mais fantasmagórica das formas corresponde a uma “realidade” – com peso gravitacional, redes de interacção, tangibilidade – do universo em que se insere. Isto é o que se passa em todos filmes de fantasia (inclusive ficção científica, high fantasy e super-heróis): o “monstro” existe mesmo naquele local, os raios de luz são disparados de uma arma, etc. E quanto se trata de filmes que implicam algum grau de realismo (ao acaso: Mulan e Coraline), os acontecimentos respeitam as mesmas regras do que seria um filme com actores reais, objectos na gravidade terrestres, etc. (por exemplo, o jogo de cortes entre cenas de Coraline é totalmente “cinematográfico”, em vez de procurar uma plasticidade mais livre, permitida pelas próprias formas animadas: veja-se o My Love, de Aleksandr Petrov, para transições mais livres, animadas). A animação que mais jogaria contra esta “regra” é aquela “de autor”, onde podemos encontrar os clássicos trabalhos de Len Lye, Norman McLaren e René Jodoin (e ao qual poderíamos acrescentar nomes do cinema experimental, como os Rhythmus de Hans Richter).
Quanto à narração, tem a ver com o facto de que todas e quaisquer formas ou elementos que surjam no espaço de representação tenham que estar subsumidas ao programa narrativo. A ideia de exploração de formas para efeitos plásticos puros, efeitos visuais, atracções, etc., está como que diluída, senão mesmo negada. Nalguns filmes de Ivan Maximov (como Niti ou Da esquerda para a direita) encontramos esses princípios esbatidos, na sua procissão de personagens múltiplas; o ainda magnífico Yellow Submarine explora as várias estratégias de animação para construir espaços de representação musical e de efeitos visuais o mais livremente possível. Por exemplo, os mais recentes Waking Life, A Scanner Darkly e Renaissance usam a rotoscopia mas para efeitos muito limitados, “surrealismos” (i.e., algo “por sobre” a realidade) de um grau muito curto. Não há, neles, uma utilização da eventual mais-valia permitida pela animação em relação a toda a panóplia de intervenções que hoje as tecnologias digitais permitem. E essa mais-valia é, acima de tudo, ontológica, estética, e não meramente técnica.
Ponyo inscreve-se na abordagem clássica destas questões. Tem uma história para contar e todos os seus elementos concorrem de um modo claro para ela. Na fundo, tendo em conta o facto de que este filme se apresenta na condição de narrativa clássica, a trama é algo pobre, não existindo crises nem internas às personagens nem obstáculos de maior externos que possam impedir a prossecução dos seus objectivos. A Princesa Mononoke e A Viagem de Chihiro eram relativamente mais complexos (mas ainda assim simples) do que o presente filme, o que o leva a interpretar como algo que tenha sido criado quase exclusivamente para as crianças mais novas – daí as contínuas cenas “maravilhosas”. As características formais-narrativas de Miyazaki mantêm-se perenes: personagens de rostos límpidos e inocentes, uma personagem ocupando o espaço ou função de antagonista com traços físicos muito diferentes dos das restantes personagens, momentos de humor que passam pela expressividade mais frenética da felicidade simples das crianças, localidades que sublimam os aspectos mais positivos das cidades reais, grandes massas de matéria a cavalgar ou a atravessar grandes distâncias, etc.
Esta ideia de uma infantilização persegue-se noutras linhas. As figuras paternais nunca se encontram muito à vontade nos filmes do realizador japonês e, mesmo que sejam identificados e ajam até neste filme, a verdade é que o pai é apenas uma figura semi-ausente e sem qualquer importância na economia da trama, e a mãe acaba por também se revestir de uma importância secundária. O próprio facto do pequeno Susuke a tratar por “Lisa” e não por “Oka-san” ou outro termos qualquer, aponta para uma distanciação que, não sendo explorada e exposta, se torna significativa nessa secundarização. Há, porém, um momento digno de Hitchcock, se bem que menos tenso: quando Lisa fala com a Deusa no interior de uma bolha protectora, observamos essa cena “de fora”, com as velhotas do lar. Nada nos é dado a ver dessa conversa, nem uma frase solta, nem expressão corporal... Não é que seja pouco importante, talvez, mas que essa comunicação entre “mães” seja deixada fora de alcance, pois é “conversa de adultos”, reforçando sempre esta perspectiva infantil (as velhotas, apesar da idade, agem, de novo, como crianças).
Dito isto, o entrosamento de uma quase impositiva filosofia ecologista aliada à simplificação de quase todos os elementos que compõem este filme tornam-no uma das obras menos acabadas de Miyazaki, que foi bem mais comovente com Totoro, e elaborado com Mononoke. Não obstante, se nos abstrairmos do peso necessário da história e dos movimentos lineares a que as personagens são obrigadas – para que de facto se possa dizer que existe uma “história” -, restam algumas imagens e sequências de puro movimento e metamorfose que poderiam muito bem sobreviver como obras autónomas, se o realizador se entregasse a exercícios de experimentalismo.