O que se diz no livro.
“Maggots é o fac-símile de um livro que Brian Chippendale terminou – mas jamais publicou – em 1996 e 97 enquanto vivia em Fort Thunder (...)”. Aprendemos assim que, não obstante as suas datas de publicação, este pequeno livro de cerca de 350 páginas é em termos de cronologia e produção, anterior ao gigantesco volume Ninja. O seu aspecto é estranhíssimo, dado o facto que foi “desenhado freneticamente sobre as páginas de um catálogo de livros japonês”.
O que diz o livro.
Tornar real a mera leitura deste livro é um esforço. Trata-se não apenas de um exercício, um cumprimento, da leitura, mas de uma performance ocular. Refiro-me mesmo a uma dimensão desportiva, física, muscular, e não somente de percepção. Tal como em Ninja, a escrita/desenho é feita em boustrophedon, o que nos obriga a que olho tenha de fazer movimentos de zigue-zague bem diferentes do que já naturalmente faz na leitura de imagens e, mais especificamente, de banda desenhada. É possível fazê-la, mas o apoio de um dedo é quase obrigatório em algumas páginas, e uma atenção que não vacile é imperativo, caso contrário somos lançados numa rota sem sentido, literalmente descarrilamos. Poder-se-á já aqui complicar, vendo nestes movimentos serpeantes como que um encontro entre as culturas e os modos de ler ocidental e japonês: ou há de facto um feliz zigue-zague (junto dos destemidos e destros) ou há uma desarrumação (junto dos analfabetos ou os falhos).
Esta sensação talvez surja já começada a leitura de Maggots, mas coloco-a aqui como um fundo que assoma à superfície e transborda por sobre ela. Além do encontro de modos de ler há um encontro de escritas: o fundo das folhas originais é sempre, sempre visível, por mais que Chippendale o apague com carregadíssimas tramas – mais do que manchas de tinta a negro, parece que o autor rabisca obsessivamente os espaços em branco até estes desaparecerem quase por completo. O que fica é uma espécie de “sujidade” gráfica, de poeira constante, de uma chuva de letras indelével naquelas representações. Nalguns casos, o autor elabora complicadíssimos padrões de signos que nascem dos pré-existentes kanji ou dos caracteres dos silabários japoneses, padrões semi-psicadélicos, de uma legibilidade apagada, e que por vezes ganham estatuto de um objecto supra-dimensional – em relação às dimensões do mundo encerrado nesta história - que tem um papel activo na história que decorre. Nos primeiros casos em que surgem balões de fala, as palavras vêem-se interrompidas, ou melhor, as letras que as compõem são escritas em torno dos caracteres do fundo original. Há sempre um encontro com a escrita pré-existente.
A leitura do livro apresenta-nos uma narrativa. Tal qual como em Ninja, há aqui uma acção perseguida, uma trama narrativa simples e “fast-forward”, um protagonista (Potato Head) que se metamorfoseia e alcança poderes supra-naturais, universos feitos de vários níveis ou domínios, travessias feitas através de alçapões, escadarias, buracos na parede ou no solo, voos com o auxílio de máquinas ou com poderes sobrenaturais... Há uma absoluta subsunção à materialidade e causalidade da aventura & acção, mas como que apurada aos seus mínimos elementos e sem rodeios ou desvios. Nada do seu aspecto de acumulação sígnica impede a existência de uma estória inteligível, que mostra confrontos, viagens, relações, amores, etc. E as metamorfoses sofridas pelo protagonista podem ter a ver com a aprendizagem, dessa que se faz somente em movimento, em contexto, em conflito.
O que se desvela pelo livro.
São recorrentes as imagens em torno de olhos: arrancados, perdidos, substituídos (pelos de mortos), trocados em combate, tornados brinquedo, ou modo de transporte, etc. É como se o autor dissesse – pelos elementos que compõem esta sua banda desenhada – que deveremos olhar com atenção, para além do esforço perdido, para além dele mas nunca para lá da visualidade que se nos apresenta. Está tudo sob os nossos olhos. Basta movê-los. Demovê-los do hábito e chocá-los com um novo modo de ver.
Estas ideias de olhar em movimento, de modos de leitura diferenciados mas que não obstante se encontram num território em comum, de uma aventura que obriga à travessia de estratificações e metamorfoses leva-me a colocar a seguinte pergunta: estaremos perante uma obra que coloca em jogo, em acção, os princípios que regem a estratificação do mundo, ou dos mundos, que é sabida da perspectiva xamânica? Afinal, aqui temos uma personagem, Hot Potato ou Potato de Heat, que atravessa estes mundos-limiar, os vários estratos subterrâneos e supracelestes que se encontram ladeando o nosso mundo consensual, em busca de um qualquer objecto/objectivo que nos é evasivo ao entendimento – porque não pertencemos à mesma tribo -, em que se confronta com vários inimigos surgidos súbita e inesperadamente, alguns dos quais acabam por se tornar aliados, outros o contrário, havendo sempre um recorrente cruzamento com uma personagem que é a amada (Rabbit), em que várias vezes os confrontos levam a metamorfoses do seu corpo, a uma divisão em dois e, mais tarde, a reunião, logo seguida de nova separação, tudo terminando no que parece ser uma menos efémera morte. E, uma e outra vez, à flutuação dos olhos enquanto objectos exteriorizáveis e ofertáveis e passíveis de trocas e aquisição.
No fim da história, Potato Head desaparece no que parece ser um grande cataclismo, num buraco no solo que tudo engole, mas do qual se liberta um fantasma que revela que a última questão colocada pelo protagonista era em relação a um objecto que não existe – uma pirâmide viva. É este fantasma que diz que não existe. Mas nós testemunhámos uma pirâmide (a dos signos de que falei atrás, o objecto “supra-dimensional”), e podemos dizer “sim, existe”. O xamã sai daqui para ir ali, e retorna, para, aqui, falar dali: não é disso que se trata numa leitura em segunda mão?
30 de janeiro de 2008
28 de janeiro de 2008
Lucky. Gabrielle Bell (Drawn & Quarterly)
A banda desenhada não faz o mesmo que as artes visuais stricto sensu. Nestas, o forte da sua campanha é a emergência dos factos visuais em si mesmos, na banda desenhada a visualidade é empregue para um outro fim que implica a noção e a capacidade de leitura. Existem intervalos e medidas intermédias, como é natural. Artes visuais que se engajam em conteúdos programáticos legíveis (políticos, sociais, etc.) e banda desenhada que explora o choque visual sem qualquer condescendência para com uma dimensão narrativa (de alguns trabalhos da trupe de Fort Thunder a André Lemos, como exemplos). Mas no caminho do meio, aquele que é perseguido pela maioria dos autores desta arte em particular, poderemos dizer sem quaisquer temores de erro que se trata de uma escrita, no sentido em que os signos presentes e que constituem o texto servem para a sua interpretação, a sua leitura, a sua abertura a um sentido verbal. Uma história.
Gabrielle Bell não é, como soe dizer-se ainda que incorrendo no que me parece ser um abuso e erro, “minimalista”, mas é um facto de que as suas figuras apenas existem num limiar do estritamente necessário à execução da ideia de actantes – as personagens, os espaços, os objectos – da diegese que se desenrola à nossa frente. Quando se nota algum grau de maior complexidade ou de maior pormenor, usualmente isso deve-se a uma necessidade diegética, e não decorativa. Mesmo a utilização esparsa de planos diferentes serve esse propósito com exactidão. No entanto, os trabalhos mais recentes apenas a linhas e preto e branco parecem querer ganhar um outro tipo de consistência, abandonando esse estilo. O acompanhamento o dirá.
Lucky (publicação regular, e cuja capa do primeiro volume coligido se vê acima) revela uma escrita diarística, ainda que com diferenciações aqui e ali. Em todo o caso, as histórias que se publicam em Lucky contrastam com as demais (v. abaixo) por uma dose de “realidade” ou “autenticidade” para com a vida da autora, algumas vezes com indicações para os trabalhos noutros locais. A primeira parte deste livro (que corresponde ao primeiro número de Lucky) é composta por “entradas” que correspondem a um período de cerca de dois meses (com saltos). Há uma continuidade, não simplesmente cronológica, mas de acções que se tornam a chave do dia: a mudança do namorado, um novo emprego... A segunda parte (número/arco) inicia-se com a explicação de como a autora perdeu o "sketchbook" onde fizera grande parte do que deveria ser essa mesma parte, o que a leva a procurar uma outra forma de trabalhar, mais distante dos acontecimentos, mas ainda assim associando-se à veia do diário (ou da memória do seu quotidiano). Em todo o caso, é como se esse azar, como se essa perda, lhe permitisse explorar outros métodos de trabalho, que poderão ser vistos como libertadores, pelo menos no que diz respeito às estratégias de inscrição da própria autora nas suas histórias, enquanto personagem. Abre-se-lhe o caminho para o que parece ser auto-ficção, ou pura ficção. Não saberemos qual o grau de distância a não ser perguntando-lhe, e isso pouco importa para a fruição das suas histórias.
Os trabalhos de Bell nasceram em fanzines (ou mini-comix, como são chamados no seu burgo), e têm sido coligidos em volume (When I’m old and other stories), dizendo Lucky respeito à colecção num volume de três das publicações com o mesmo nome (entretanto, já saiu o segundo número do segundo volume; é do primeiro que se vê aqui a capa). Para além disso, Bell tem publicado histórias mais recentes, curtas e algumas a cores – que pouco contribuem, a meu ver, para garantir uma nova presença do trabalho de Bell e até se faz ressentir negativamente no trabalho da figuração, dos seus contornos legíveis -, nas francamente três melhores antologias (publicações semi-irregulares) dos Estados Unidos: Mome, Drawn & Quarterly Showcase e Kramer’s Ergot. É nesta última (a 5ª) que surge a história mais fantasiosa de Bell até à data, ainda que mais “calma” que My Affliction (volume 2, número 1), Cecil and Jordan in New York: o modo mais simples de se contar é que se trata de como o profundo ennui e alheamento de Cecil a leva a se transformar numa cadeira, que é depois “adoptada” por um desconhecido, passando a levar uma vida dupla. Se bem que se trate de uma “brincadeira”, com tudo o que ela tem de leve (mais Mrozeck que Kafka), de aplicação momentânea do que é sério e leva a pensar em exercício fátuo, ainda assim essa pequena história confirma um movimento de apagamento que Bell explora nas suas histórias. O mesmo ocorre com a história The hole, incluída no volume de Lucky.
Em todo o caso, há que notar nesse apagamento, que vejo como o seu maior tema, aquele que parece surgir em todas as prestações de Bell, o seu próprio basso continuo. A autora apaga-se enquanto personalidade discursiva sobre o mundo (excepto as falas com as outras personagens, as ocasionais legendas explicativas ou imediatamente relacionadas com o que testemunhamos também: a sensação que nos espera é a de uma voz em dúvida, não assertiva), para apenas lá estar como quem escreveu/desenhou. Este apagamento participa ainda de uma outra forma: na história The artist’s assistant, Bell ajuda uma outra artista a completar desenhos e quadros, mas esse emprego ganha uma dimensão assustadora de dissolver o seu próprio trabalho no da outra – por via ética da “assinatura” – e testemunhamos algumas desses medos-fantasias. Apesar do “final feliz” (literalmente e, por isso, cómico), paira sempre esse perigo. O equilíbrio é precário, como se depreende pela leitura de outras histórias curtas de temas contíguos: aulas de desenho que dá ou que recebe, o trabalho como modelo de que precisa mas não gosta, isto e o seu contrário... A “montanha russa” do espectáculo de que fala na primeira prancha está afinal presente em todas as suas experiências, mas nisso não tem qualquer diferença da flutuação de humores de todos nós.
A questão é saber criar, no seio dessa flutuação, uma estrutura que a devolva, e não que a disfarce – estratégia bem mais simples, acessível e corrente no acto criativo.
Gabrielle Bell não é, como soe dizer-se ainda que incorrendo no que me parece ser um abuso e erro, “minimalista”, mas é um facto de que as suas figuras apenas existem num limiar do estritamente necessário à execução da ideia de actantes – as personagens, os espaços, os objectos – da diegese que se desenrola à nossa frente. Quando se nota algum grau de maior complexidade ou de maior pormenor, usualmente isso deve-se a uma necessidade diegética, e não decorativa. Mesmo a utilização esparsa de planos diferentes serve esse propósito com exactidão. No entanto, os trabalhos mais recentes apenas a linhas e preto e branco parecem querer ganhar um outro tipo de consistência, abandonando esse estilo. O acompanhamento o dirá.
Lucky (publicação regular, e cuja capa do primeiro volume coligido se vê acima) revela uma escrita diarística, ainda que com diferenciações aqui e ali. Em todo o caso, as histórias que se publicam em Lucky contrastam com as demais (v. abaixo) por uma dose de “realidade” ou “autenticidade” para com a vida da autora, algumas vezes com indicações para os trabalhos noutros locais. A primeira parte deste livro (que corresponde ao primeiro número de Lucky) é composta por “entradas” que correspondem a um período de cerca de dois meses (com saltos). Há uma continuidade, não simplesmente cronológica, mas de acções que se tornam a chave do dia: a mudança do namorado, um novo emprego... A segunda parte (número/arco) inicia-se com a explicação de como a autora perdeu o "sketchbook" onde fizera grande parte do que deveria ser essa mesma parte, o que a leva a procurar uma outra forma de trabalhar, mais distante dos acontecimentos, mas ainda assim associando-se à veia do diário (ou da memória do seu quotidiano). Em todo o caso, é como se esse azar, como se essa perda, lhe permitisse explorar outros métodos de trabalho, que poderão ser vistos como libertadores, pelo menos no que diz respeito às estratégias de inscrição da própria autora nas suas histórias, enquanto personagem. Abre-se-lhe o caminho para o que parece ser auto-ficção, ou pura ficção. Não saberemos qual o grau de distância a não ser perguntando-lhe, e isso pouco importa para a fruição das suas histórias.
Os trabalhos de Bell nasceram em fanzines (ou mini-comix, como são chamados no seu burgo), e têm sido coligidos em volume (When I’m old and other stories), dizendo Lucky respeito à colecção num volume de três das publicações com o mesmo nome (entretanto, já saiu o segundo número do segundo volume; é do primeiro que se vê aqui a capa). Para além disso, Bell tem publicado histórias mais recentes, curtas e algumas a cores – que pouco contribuem, a meu ver, para garantir uma nova presença do trabalho de Bell e até se faz ressentir negativamente no trabalho da figuração, dos seus contornos legíveis -, nas francamente três melhores antologias (publicações semi-irregulares) dos Estados Unidos: Mome, Drawn & Quarterly Showcase e Kramer’s Ergot. É nesta última (a 5ª) que surge a história mais fantasiosa de Bell até à data, ainda que mais “calma” que My Affliction (volume 2, número 1), Cecil and Jordan in New York: o modo mais simples de se contar é que se trata de como o profundo ennui e alheamento de Cecil a leva a se transformar numa cadeira, que é depois “adoptada” por um desconhecido, passando a levar uma vida dupla. Se bem que se trate de uma “brincadeira”, com tudo o que ela tem de leve (mais Mrozeck que Kafka), de aplicação momentânea do que é sério e leva a pensar em exercício fátuo, ainda assim essa pequena história confirma um movimento de apagamento que Bell explora nas suas histórias. O mesmo ocorre com a história The hole, incluída no volume de Lucky.
Em todo o caso, há que notar nesse apagamento, que vejo como o seu maior tema, aquele que parece surgir em todas as prestações de Bell, o seu próprio basso continuo. A autora apaga-se enquanto personalidade discursiva sobre o mundo (excepto as falas com as outras personagens, as ocasionais legendas explicativas ou imediatamente relacionadas com o que testemunhamos também: a sensação que nos espera é a de uma voz em dúvida, não assertiva), para apenas lá estar como quem escreveu/desenhou. Este apagamento participa ainda de uma outra forma: na história The artist’s assistant, Bell ajuda uma outra artista a completar desenhos e quadros, mas esse emprego ganha uma dimensão assustadora de dissolver o seu próprio trabalho no da outra – por via ética da “assinatura” – e testemunhamos algumas desses medos-fantasias. Apesar do “final feliz” (literalmente e, por isso, cómico), paira sempre esse perigo. O equilíbrio é precário, como se depreende pela leitura de outras histórias curtas de temas contíguos: aulas de desenho que dá ou que recebe, o trabalho como modelo de que precisa mas não gosta, isto e o seu contrário... A “montanha russa” do espectáculo de que fala na primeira prancha está afinal presente em todas as suas experiências, mas nisso não tem qualquer diferença da flutuação de humores de todos nós.
A questão é saber criar, no seio dessa flutuação, uma estrutura que a devolva, e não que a disfarce – estratégia bem mais simples, acessível e corrente no acto criativo.
27 de janeiro de 2008
O Local. Gipi (Vitamina BD)
A busca por estratégias visuais na banda desenhada que façam a melhor representação possível do som levou alguns autores a criar a belas pranchas, mais belas ainda quando esse som se torna música e essa música diz respeito à mais profunda modelação das paixões ou maneiras das personagens implicadas. Penso acima de tudo numa curta história de Nick Bertozzi (incluída no livro The Masochists), em que as mais esperadas onomatopeias são substituídas por formas visuais que correspondem aos instrumentos empregues na banda retratada e às relações desses sons, as quais estão em lugar dos elos de amizade entre essas personagens. Esta referência não se trata de um desvio, ou pelo menos de uma mera distracção. Há casos onde os autores pensam que a inclusão de uma pauta de música real leva a um maior entendimento do que essas marcas gráficas – que nada significam para analfabetos musicais, como eu – representarão, mas isso apenas poderá funcionar se estiver em contraste (visual, lá está) com algo anterior: Morris fê-lo em Sonata em Colt Maior.
Gipi segue uma outra estratégia de representação da música. A total invisibilidade. Ou, se preferirem, o “silêncio visual”. Surgem onomatopeias, pouco espectaculares, timidamente encerradas num balão ou soltas em torno do objecto de onde partem, em letras desenhadas do mesmo modo que as restantes palavras, e ligadas a um ladrar longe, uma máquina que mal funciona, um abrir forçado de uma janela, um estalar dos dedos, um rosnar humano. Mas quando se adivinha que os barulhos se coordenam numa qualquer espécie de harmonia para darem lugar à música, dissipam-se e não há quaisquer traços dela na superfície dos desenhos.
O tema de O Local é a amizade e as oportunidades vexadas da vida. A cola que une este grupo de jovens é a música (um potente rock de garagem como se adivinha pelos gestos, posições dos corpos, nas três pranchas “silenciosas” que encerram os três primeiros capítulos). Gipi, tal como no livro anterior, de que falámos aqui, continua a explorar o tempo que os jovens dedicam a se tornarem adultos pelas vias mais dolorosas. Torna-se natural que Apontamentos seja visto como mais “profundo” ou “sério” em relação a O Local pela matéria que constitui a circunstância dessas outras personagens – a guerra – mas em relação ao modo como as personagens se movem, se pensam a si mesmas e crescem (Gipi elabora pequenas versões do que seria um Bildungsroman da banda desenhada mergulhado no desencanto urbano e hodierno) não há quaisquer diferenças.
É curioso verificar como Gipi consegue fazer demonstrar as rotinas a que estas personagens se prendem apesar de apenas as mostrar, às rotinas, uma só vez. É na segunda canção que, pela fórmula estrutural de mostrar o espaço geral, quase anónimo, onde cada um dos membros da banda vive, e depois a sua relação com os seus familiares, erguer todo um edifício de repetições que se adivinham, as banais e esperadas tensões entre os filhos e os seus pais, tensões acerbadas pela igualmente esperada distância, desconhecimento e impaciência de uns em relação aos outros. A única personagem que escapa a esse circular é Giuliano, precisamente por ser aquele cuja rede de relações familiares e associada tensão e crise se vê dispersa por todo o livro, sendo ela a estrutura sobre a qual se ergue toda a trama: uma vez que há um tácito acordo entre Giuliano e o pai, que lhe empresta o “local” para os ensaios, que se vê quebrado, tudo o resto segue esse suporte, essa quebra e a redenção final (ainda que parcial).
A confirmação de outros aspectos anteriores verifica-se com O Local. Uma diegese construída de uma forma simples e contida, num ritmo calmo apesar da tensão que vamos sentido crescer, em que há um crescendo de informação mas sem grandes arroubos ou arranques, servida pelas suas linhas também elas simples, de uma grande estilização - tanto devedora de uma clássica “linha clara” como do estilo caligráfico tão em voga na Europa nos nossos dias - e um domínio competente e funcional da aguarela. Em relação a esta última, há a dizer que se em Apontamentos ela surgia apenas a pretos e cinzentos, que nada diminuía a sua força, aqui encontra-se já empregando cores, ainda que esbatidas, num espectro limitado que dá todo um ambiente crepuscular, e apetece dizer ainda “acimentado”, a todos os episódios, independentemente da suposta hora do dia ou sítio específico onde decorra a acção: seja na praia ou num passeio nocturno pela cidade, no interior do apartamento ou da “sala” de ensaios, está-se sempre preso à ideia do “local”.
Apenas duas palavras finais. Uma, de livre associação e quase impertinente para a interpretação da obra, é o facto da sua leitura ter sido reminiscente de uma outra, a da saga de Loverboy, de Marte e João Fazenda. Por um lado, por uma certa maneira de traço da figuração de Gipi, que está próxima do que Fazenda alcançara no terceiro volume de Loverboy, ainda que o artista português tenha alcançado um nível bem mais marcado de apuramento mínimo; por outro, um certo ambiente em torno das obsessões musicais típicas dos adolescentes, e o que ela parece representar – para além de arte, para além de expressão – em termos sociais. A banda de death metal a quem a banda de Giuliano rouba os instrumentos, os “Anjos Caídos”, e o humor que essa cena esconde ligeiramente (os protagonistas pensavam tratar-se do “grupo do padre”) é o que despoletou esta união de obras.
A outra palavra diz respeito ao gesto do editor. A Vitamina BD é uma editora relativamente recente mas mostra-se com capacidade de se consolidar e de lançar projectos a longo prazo. É com algum pesar que olhamos para a última década e vemos editoras a tentarem vingar no “mercado” (um caos) e ou a desaparecerem rapidamente ou a timidamente colocarem um título à consideração do público mas sem essa merecida atenção, e acumulamos nomes – Booktree, Witloof, Errata, Baleia Azul, Íman,... – que se esfumam no esquecimento. Mas maior pesar é verificar que as grandes editoras – na verdade, apenas uma neste momento, a Asa – ou as editoras médias – a Gradiva, por exemplo – prefiram uma política editorial confusa, com nenhuma continuidade, sem qualquer ideia de programa, ou com apostas mais a pender para o inócuo e parco em qualidade, para não dizer acéfalo, apagando muitas vezes os títulos de excelente qualidade que apresentam (por cada Gonick, dezenas de Cathys). A invasão, do momento, de uma colecção com o jornal Público que deveria dar pelo nome de – e perdoem-me a piadinha de mau gosto e seguidora das modas também – “tesourinhos deprimentes da bedê” é apenas um espécie de grito de desespero. Sejamos directos: a Vitamina BD tem um catálogo que não me preenche por completo ou que não coincide com os meus gostos (nem tem de o fazer, óbvio), mas parece haver uma contínua política de longo prazo com colecções para o grande público, concessões às circunstâncias e tendências do momento, a procura da satisfação de nichos menores, a entrega a autores clássicos e fortes (penso em Hermann), associações a outros projectos editoriais, inclusive internacionais, para maior fortalecimento nacional, o que contribui para a sua sustentabilidade, para a ocupação genuína, profissional e de bom gosto das prateleiras do país, e ainda, eis o que importa, abrir a possibilidade interna de editar de quando em vez objectos mais estranhos aos gostos “treinados” do público – daí que seja na subsidiária ou colecção 100 Sentidos. Seríamos mais felizes se houvesse maior inteligência na edição em Portugal: apontar a presença de Gipi no mundo deve ver-se como não apenas pedagogia mas abertura de novos gostos, de uma maior amplitude, e sensibilidade para com os variadíssimos caminhos da banda desenhada.
Gipi segue uma outra estratégia de representação da música. A total invisibilidade. Ou, se preferirem, o “silêncio visual”. Surgem onomatopeias, pouco espectaculares, timidamente encerradas num balão ou soltas em torno do objecto de onde partem, em letras desenhadas do mesmo modo que as restantes palavras, e ligadas a um ladrar longe, uma máquina que mal funciona, um abrir forçado de uma janela, um estalar dos dedos, um rosnar humano. Mas quando se adivinha que os barulhos se coordenam numa qualquer espécie de harmonia para darem lugar à música, dissipam-se e não há quaisquer traços dela na superfície dos desenhos.
O tema de O Local é a amizade e as oportunidades vexadas da vida. A cola que une este grupo de jovens é a música (um potente rock de garagem como se adivinha pelos gestos, posições dos corpos, nas três pranchas “silenciosas” que encerram os três primeiros capítulos). Gipi, tal como no livro anterior, de que falámos aqui, continua a explorar o tempo que os jovens dedicam a se tornarem adultos pelas vias mais dolorosas. Torna-se natural que Apontamentos seja visto como mais “profundo” ou “sério” em relação a O Local pela matéria que constitui a circunstância dessas outras personagens – a guerra – mas em relação ao modo como as personagens se movem, se pensam a si mesmas e crescem (Gipi elabora pequenas versões do que seria um Bildungsroman da banda desenhada mergulhado no desencanto urbano e hodierno) não há quaisquer diferenças.
É curioso verificar como Gipi consegue fazer demonstrar as rotinas a que estas personagens se prendem apesar de apenas as mostrar, às rotinas, uma só vez. É na segunda canção que, pela fórmula estrutural de mostrar o espaço geral, quase anónimo, onde cada um dos membros da banda vive, e depois a sua relação com os seus familiares, erguer todo um edifício de repetições que se adivinham, as banais e esperadas tensões entre os filhos e os seus pais, tensões acerbadas pela igualmente esperada distância, desconhecimento e impaciência de uns em relação aos outros. A única personagem que escapa a esse circular é Giuliano, precisamente por ser aquele cuja rede de relações familiares e associada tensão e crise se vê dispersa por todo o livro, sendo ela a estrutura sobre a qual se ergue toda a trama: uma vez que há um tácito acordo entre Giuliano e o pai, que lhe empresta o “local” para os ensaios, que se vê quebrado, tudo o resto segue esse suporte, essa quebra e a redenção final (ainda que parcial).
A confirmação de outros aspectos anteriores verifica-se com O Local. Uma diegese construída de uma forma simples e contida, num ritmo calmo apesar da tensão que vamos sentido crescer, em que há um crescendo de informação mas sem grandes arroubos ou arranques, servida pelas suas linhas também elas simples, de uma grande estilização - tanto devedora de uma clássica “linha clara” como do estilo caligráfico tão em voga na Europa nos nossos dias - e um domínio competente e funcional da aguarela. Em relação a esta última, há a dizer que se em Apontamentos ela surgia apenas a pretos e cinzentos, que nada diminuía a sua força, aqui encontra-se já empregando cores, ainda que esbatidas, num espectro limitado que dá todo um ambiente crepuscular, e apetece dizer ainda “acimentado”, a todos os episódios, independentemente da suposta hora do dia ou sítio específico onde decorra a acção: seja na praia ou num passeio nocturno pela cidade, no interior do apartamento ou da “sala” de ensaios, está-se sempre preso à ideia do “local”.
Apenas duas palavras finais. Uma, de livre associação e quase impertinente para a interpretação da obra, é o facto da sua leitura ter sido reminiscente de uma outra, a da saga de Loverboy, de Marte e João Fazenda. Por um lado, por uma certa maneira de traço da figuração de Gipi, que está próxima do que Fazenda alcançara no terceiro volume de Loverboy, ainda que o artista português tenha alcançado um nível bem mais marcado de apuramento mínimo; por outro, um certo ambiente em torno das obsessões musicais típicas dos adolescentes, e o que ela parece representar – para além de arte, para além de expressão – em termos sociais. A banda de death metal a quem a banda de Giuliano rouba os instrumentos, os “Anjos Caídos”, e o humor que essa cena esconde ligeiramente (os protagonistas pensavam tratar-se do “grupo do padre”) é o que despoletou esta união de obras.
A outra palavra diz respeito ao gesto do editor. A Vitamina BD é uma editora relativamente recente mas mostra-se com capacidade de se consolidar e de lançar projectos a longo prazo. É com algum pesar que olhamos para a última década e vemos editoras a tentarem vingar no “mercado” (um caos) e ou a desaparecerem rapidamente ou a timidamente colocarem um título à consideração do público mas sem essa merecida atenção, e acumulamos nomes – Booktree, Witloof, Errata, Baleia Azul, Íman,... – que se esfumam no esquecimento. Mas maior pesar é verificar que as grandes editoras – na verdade, apenas uma neste momento, a Asa – ou as editoras médias – a Gradiva, por exemplo – prefiram uma política editorial confusa, com nenhuma continuidade, sem qualquer ideia de programa, ou com apostas mais a pender para o inócuo e parco em qualidade, para não dizer acéfalo, apagando muitas vezes os títulos de excelente qualidade que apresentam (por cada Gonick, dezenas de Cathys). A invasão, do momento, de uma colecção com o jornal Público que deveria dar pelo nome de – e perdoem-me a piadinha de mau gosto e seguidora das modas também – “tesourinhos deprimentes da bedê” é apenas um espécie de grito de desespero. Sejamos directos: a Vitamina BD tem um catálogo que não me preenche por completo ou que não coincide com os meus gostos (nem tem de o fazer, óbvio), mas parece haver uma contínua política de longo prazo com colecções para o grande público, concessões às circunstâncias e tendências do momento, a procura da satisfação de nichos menores, a entrega a autores clássicos e fortes (penso em Hermann), associações a outros projectos editoriais, inclusive internacionais, para maior fortalecimento nacional, o que contribui para a sua sustentabilidade, para a ocupação genuína, profissional e de bom gosto das prateleiras do país, e ainda, eis o que importa, abrir a possibilidade interna de editar de quando em vez objectos mais estranhos aos gostos “treinados” do público – daí que seja na subsidiária ou colecção 100 Sentidos. Seríamos mais felizes se houvesse maior inteligência na edição em Portugal: apontar a presença de Gipi no mundo deve ver-se como não apenas pedagogia mas abertura de novos gostos, de uma maior amplitude, e sensibilidade para com os variadíssimos caminhos da banda desenhada.
25 de janeiro de 2008
Animais!. José Feitor (Imprensa Canalha)
Deveria ser óbvio logo à partida que José Feitor coloca estes animais em cena para que estes possam representar os homens no que estes, por sua vez, mais têm de animalesco. Mais, uma animalidade ainda mais abjecta porque não dominada pelo lado animal somente, mas que persiste apesar da suposta parte da humanidade que nos cabe. É o que se pode entender com a frase inserida no cartão que vem no interior desta publicação: “Foi-se o instinto, ficou o apetite”. Aliás, a isso mesmo ajuda a apresentação deste Animais! no blog que lhe é particular. Esta fórmula circular deveria ser o quanto antes suficiente para nos colocarmos no movimento de carrossel desta pequena publicação, não para verificar uma qualquer platitude ou obviedade, nem para nos colocar num rodopio incessante, mas para nos fazer pensar e repensar incessante e cada vez mais profundamente nessa questão.
Um outro aspecto óbvio é que todo e qualquer trabalho, mormente artístico, criativo, tem uma dimensão política. Todo. Inclusive, senão mais vincado por se desejar “invisível” ou, pior “inócuo”, aquele que declara não a ter. Mas também não pode deixar de ser verificável que essa dimensão pode por vezes ser mais marcada, mais visível, por alguns aspectos da obra de um autor. E a de José Feitor revela uma dimensão política marcada.
Não se entenda esta dimensão como a mais banal das partidarizações, ou rendição a princípios que rapidamente se atrofiam em dogmas. Falo dessa dimensão como concernente à opção em empregar-se os talentos e a voz pessoais numa leitura, crítica, admoestação (repare-se na exclamação do título, como se fosse um grito de chamada ou uma invectiva) e reconstrução da polis, da cidade, em que esse mesmo artista se insere. Quem acompanha o caminho de Feitor, aperceber-se-á de alguns maneirismos recorrentes, sendo a representação de e com e por animais uma delas, e uma irónica distância para com comportamentos humanos – distância que as tornam ridículas, mesmo que nós mesmos as cumpramos diariamente, mas de perto, logo, invisivelmente – outra. Esse caminho é feito sobretudo através da ilustração de imprensa ou outra, os desenhos livres que vai publicando no seu blog pessoal, Escroque, ou que vai expondo nas inúmeras mostras que organiza (associado sobretudo à Feira Laica, mas não só). Tendo em conta alguns dos temas que lança nas antologias que edita e nas exposições que organiza, apenas vemos uma confirmação desse pendor.
Este zine abre com um texto relativamente conhecido de Darwin e uma sua paralela adaptação à banda desenhada (uma prancha de seis vinhetas). As restantes páginas são ocupadas por uma pequena colecção de textos de várias proveniências, de natureza sociológica, psicológica, biológica, ou os cruzamentos possíveis dessas disciplinas, tendo o homem – o macaco nu, apetece dizer, como Desmond Morris – como objecto de observação, e desenhos que não se instituindo como ilustrações directas dessas mesmas citações, estabelecem com as mesmas vários tipos de alianças (ou tidos uns e outras como dois “todos parciais”, no seio do livro alcançando um significado ulterior”). Os desenhos em si têm vários graus de natureza, quer em termos de representação (verificando-se ou não a antropomorfização das criaturas, o estabelecimento de relações entre personagens, etc.) quer em termos de estilo gráfico (colagens, desenhos a contornos grossos ou finos, grandes manchas de negro ou linhas ténues, preto-e-branco ou a incursão por uma segunda cor).
Estas dimensão fragmentária e de reaproveitamento de materiais alheios é ainda uma outra característica – também verificada, ainda que tangencialmente, em Babinski – de José Feitor, como se ele se atribuísse a si mesmo o papel de respigador, apanhando os bocados que as cidades e os dias deixam para trás como se não tivessem importância alguma, e com eles montasse os seus instrumentos de respingador, devolvendo-os com estes pequenos, mas operantes, certeiros e irónicos ataques de insurreição.
Nota: apesar de ter uma cópia, as imagens foram retiradas dos vários blogs citados neste post.
Um outro aspecto óbvio é que todo e qualquer trabalho, mormente artístico, criativo, tem uma dimensão política. Todo. Inclusive, senão mais vincado por se desejar “invisível” ou, pior “inócuo”, aquele que declara não a ter. Mas também não pode deixar de ser verificável que essa dimensão pode por vezes ser mais marcada, mais visível, por alguns aspectos da obra de um autor. E a de José Feitor revela uma dimensão política marcada.
Não se entenda esta dimensão como a mais banal das partidarizações, ou rendição a princípios que rapidamente se atrofiam em dogmas. Falo dessa dimensão como concernente à opção em empregar-se os talentos e a voz pessoais numa leitura, crítica, admoestação (repare-se na exclamação do título, como se fosse um grito de chamada ou uma invectiva) e reconstrução da polis, da cidade, em que esse mesmo artista se insere. Quem acompanha o caminho de Feitor, aperceber-se-á de alguns maneirismos recorrentes, sendo a representação de e com e por animais uma delas, e uma irónica distância para com comportamentos humanos – distância que as tornam ridículas, mesmo que nós mesmos as cumpramos diariamente, mas de perto, logo, invisivelmente – outra. Esse caminho é feito sobretudo através da ilustração de imprensa ou outra, os desenhos livres que vai publicando no seu blog pessoal, Escroque, ou que vai expondo nas inúmeras mostras que organiza (associado sobretudo à Feira Laica, mas não só). Tendo em conta alguns dos temas que lança nas antologias que edita e nas exposições que organiza, apenas vemos uma confirmação desse pendor.
Este zine abre com um texto relativamente conhecido de Darwin e uma sua paralela adaptação à banda desenhada (uma prancha de seis vinhetas). As restantes páginas são ocupadas por uma pequena colecção de textos de várias proveniências, de natureza sociológica, psicológica, biológica, ou os cruzamentos possíveis dessas disciplinas, tendo o homem – o macaco nu, apetece dizer, como Desmond Morris – como objecto de observação, e desenhos que não se instituindo como ilustrações directas dessas mesmas citações, estabelecem com as mesmas vários tipos de alianças (ou tidos uns e outras como dois “todos parciais”, no seio do livro alcançando um significado ulterior”). Os desenhos em si têm vários graus de natureza, quer em termos de representação (verificando-se ou não a antropomorfização das criaturas, o estabelecimento de relações entre personagens, etc.) quer em termos de estilo gráfico (colagens, desenhos a contornos grossos ou finos, grandes manchas de negro ou linhas ténues, preto-e-branco ou a incursão por uma segunda cor).
Estas dimensão fragmentária e de reaproveitamento de materiais alheios é ainda uma outra característica – também verificada, ainda que tangencialmente, em Babinski – de José Feitor, como se ele se atribuísse a si mesmo o papel de respigador, apanhando os bocados que as cidades e os dias deixam para trás como se não tivessem importância alguma, e com eles montasse os seus instrumentos de respingador, devolvendo-os com estes pequenos, mas operantes, certeiros e irónicos ataques de insurreição.
Nota: apesar de ter uma cópia, as imagens foram retiradas dos vários blogs citados neste post.
Chambres Noires. Martin Vaughn-James (Les Impressions Nouvelles)
É difícil, quando um autor, com uma sua obra, atinge um qualquer acme – mesmo que esse alcançar lhe tenha sido alheio, não procurado, simplesmente atingido como se o tivesse impelido um verdadeiro e antigo “entusiasmo” – não pautar todos e quaisquer outros dos seus gestos por esse anterior patamar. Martin Vaughn-James, quiçá malgré lui, é o autor do inimitável The Cage (1975), provavelmente um dos mais discutidos livros de banda desenhada (se for mais confortável, podemos acrescentar o adjectivo/erro/ofensa/incompletude “experimental”) entre um determinado círculo da crítica e apreciação desta arte. O que não significa ser um dos livros mais conhecidos desta mesma arte, apesar de ter sido exposto na primeira edição do Salão Lisboa (1999), e ter estado à venda durante anos numa das livrarias especializadas principais da capital. Vaughn-James é autor ainda de um outro punhado de livros, alguns obscuros e difíceis de obter (Elephant, The Projector, The Park – a reeditar brevemente, consta), outros mais recentes ou reeditados (o caso da versão francesa, textualmente diferente, de The Cage, i.e., La Cage, pela Las Impressions Nouvelles, e L’Enquêteur). Continuando uma carreira mais activa no círculo das artes visuais (pintura, colagens, desenho), e vivendo na Bélgica há largos anos, tornar-se-ia uma espécie, não diria de autor de culto (apesar dele se incorporar num, literalmente, aquando do empréstimo da sua pessoa para modelo do artista Desombres, na obra de Peeters e Schuiten, L’Enfant Penchée/A menina inclinada) mas de autor de uma obra de culto (The Cage). Qualquer rápida leitura e mera comparação superficial entre as outras obras e essa fará entender o porquê desse desequilíbrio e aparente injustiça ou cegueira ou monomania. A verdade é que The Cage estilhaça toda uma série de noções preconcebidas ou aceitadas socialmente em torno das narrativas visuais e abriu-se para um caminho inédito, que não mais seria revisitado ou pelo menos não do mesmo modo (havia já exposto esta visão a propósito de How to be Everywhere).
Dito isto, por mais que me tente libertar da leitura e, confesso-o, permanente fascínio com essa outra obra (que mais parece um caleidoscópio de dobras a qual, sob a repetente leitura, se vão desvendando sobre novas dobras a desvendar, e assim para todo o sempre), não consigo senão notar como todos os esforços de Vaughn-James posteriores parecem querer, a um só tempo, libertar-se do peso que ela havia criado – a destituição do seu universo diegético das obrigações para com a continuidade espácio-temporal, o apagar do corpo humano enquanto personagem necessária – e repetir um mesmo gesto de inauguração criativa. The Cage é ainda hoje uma obra fundamental. A sua força é fulcral para um entendimento amplo e consolidado do nosso campo. E exerce um campo magnético de interesse para com outras obras, mormente as do seu autor. Mas é um fôlego irrepetível.
Tal como L’Enquêteur, Chambres Noires desenvolve-se em torno dos elementos que compõem aquilo a que se dá o nome de “policial”. Mas esses elementos não se encontram agregados para a formação de uma trama, de uma história, de um (só) sentido. É como se habitassem as câmaras do sonho, onde um troço narrativo lançasse um qualquer elo inabalável a outro troço, apesar do próprio elo ser inanalisável, invisível mesmo, mas ainda assim puxasse para junto um do outro esses troços, fazendo deles uma unidade maior. Quer dizer, é precisamente pela desagregação dos elementos que eles podem novamente ser agregados. Tal como acontecera com L’Enquêteur – e em certa medida com todas as obras de Vaughn-James – não há uma decisão em ficarmo-nos num só “universo diegético”, havendo espaço para que vários se concatenem no espaço comum da unidade maior – o “livro”.
Apercebemo-nos que existem, porém, nódulos recorrentes. Por exemplo, a de quem alguém – o narrador-protagonista? – se encontra num quarto de hotel. Passará um filme na televisão desse quarto de hotel? Ou vários filmes, que um eventual sono do protagonista torna a percepção intermitente, quebrada, unida apenas pelos breves momentos da vigília (uma outra forma de apresentar os elos de que falava atrás)? Misturar-se-á a ficção (ou ficções) interna à “realidade” da ficção de Chambres Noires, levando-se a uma indecisão de separar a realidade da irrealidade? No fim de tudo, como concluir, como resumir, como moldar uma sinopse de Chambres Noires? Não havendo contornos nem esqueleto, apenas nos sobram órgãos, com as suas funções actanciais, sem dúvida, todos eles activos, efectivos, mas sem compor um corpo unido. Inverte-se aqui a imagem de Artaud/Deleuze/Guattari, do corpo-sem-órgãos (um corpo o qual o desejo desorganiza, procurando caminhos outros); são órgãos-sem-corpo (máquinas de apenas uma única função de desejo, monótonas, monónimas, mas sem que o desejo produzido contribua para um qualquer significado global, um sentido desse desejo).
A arte de Chambres Noires não é, de modo algum, nem surpreendente, nem muscular, nem sequer “bonita”. De novo, tal como L’Enquêteur e The Cage, verifica-se à apresentação de uma meia-dúzia de objectos (isto é, de representações de personagens, de espaços e de objectos propriamente ditos) que atravessam pequenas torções e variações. Se em The Cage isso levaria a uma fantasmagoria humana (sigo um artigo de Domingos Isabelinho), e em L’Enquêteur se entregava às variações possíveis e passíveis do romance policial, uma espécie de pastiche-homenagem-experimentalismo, aqui eleva-se a uma dispersão maior. Mas essa dispersão não termina como uma sua fortaleza. É antes uma mescla de epigonismo (mesmo que de si mesmo) e de maneirismo levado às últimas consequências, que, teme-se, é o niilismo do estilo.
Nota: agradecimentos a Martin Vaughn-James, pela oferta do seu livro.
Dito isto, por mais que me tente libertar da leitura e, confesso-o, permanente fascínio com essa outra obra (que mais parece um caleidoscópio de dobras a qual, sob a repetente leitura, se vão desvendando sobre novas dobras a desvendar, e assim para todo o sempre), não consigo senão notar como todos os esforços de Vaughn-James posteriores parecem querer, a um só tempo, libertar-se do peso que ela havia criado – a destituição do seu universo diegético das obrigações para com a continuidade espácio-temporal, o apagar do corpo humano enquanto personagem necessária – e repetir um mesmo gesto de inauguração criativa. The Cage é ainda hoje uma obra fundamental. A sua força é fulcral para um entendimento amplo e consolidado do nosso campo. E exerce um campo magnético de interesse para com outras obras, mormente as do seu autor. Mas é um fôlego irrepetível.
Tal como L’Enquêteur, Chambres Noires desenvolve-se em torno dos elementos que compõem aquilo a que se dá o nome de “policial”. Mas esses elementos não se encontram agregados para a formação de uma trama, de uma história, de um (só) sentido. É como se habitassem as câmaras do sonho, onde um troço narrativo lançasse um qualquer elo inabalável a outro troço, apesar do próprio elo ser inanalisável, invisível mesmo, mas ainda assim puxasse para junto um do outro esses troços, fazendo deles uma unidade maior. Quer dizer, é precisamente pela desagregação dos elementos que eles podem novamente ser agregados. Tal como acontecera com L’Enquêteur – e em certa medida com todas as obras de Vaughn-James – não há uma decisão em ficarmo-nos num só “universo diegético”, havendo espaço para que vários se concatenem no espaço comum da unidade maior – o “livro”.
Apercebemo-nos que existem, porém, nódulos recorrentes. Por exemplo, a de quem alguém – o narrador-protagonista? – se encontra num quarto de hotel. Passará um filme na televisão desse quarto de hotel? Ou vários filmes, que um eventual sono do protagonista torna a percepção intermitente, quebrada, unida apenas pelos breves momentos da vigília (uma outra forma de apresentar os elos de que falava atrás)? Misturar-se-á a ficção (ou ficções) interna à “realidade” da ficção de Chambres Noires, levando-se a uma indecisão de separar a realidade da irrealidade? No fim de tudo, como concluir, como resumir, como moldar uma sinopse de Chambres Noires? Não havendo contornos nem esqueleto, apenas nos sobram órgãos, com as suas funções actanciais, sem dúvida, todos eles activos, efectivos, mas sem compor um corpo unido. Inverte-se aqui a imagem de Artaud/Deleuze/Guattari, do corpo-sem-órgãos (um corpo o qual o desejo desorganiza, procurando caminhos outros); são órgãos-sem-corpo (máquinas de apenas uma única função de desejo, monótonas, monónimas, mas sem que o desejo produzido contribua para um qualquer significado global, um sentido desse desejo).
A arte de Chambres Noires não é, de modo algum, nem surpreendente, nem muscular, nem sequer “bonita”. De novo, tal como L’Enquêteur e The Cage, verifica-se à apresentação de uma meia-dúzia de objectos (isto é, de representações de personagens, de espaços e de objectos propriamente ditos) que atravessam pequenas torções e variações. Se em The Cage isso levaria a uma fantasmagoria humana (sigo um artigo de Domingos Isabelinho), e em L’Enquêteur se entregava às variações possíveis e passíveis do romance policial, uma espécie de pastiche-homenagem-experimentalismo, aqui eleva-se a uma dispersão maior. Mas essa dispersão não termina como uma sua fortaleza. É antes uma mescla de epigonismo (mesmo que de si mesmo) e de maneirismo levado às últimas consequências, que, teme-se, é o niilismo do estilo.
Nota: agradecimentos a Martin Vaughn-James, pela oferta do seu livro.
Sorcières. Daisuké Igarashi (Sakka)
Podemos entender o modo como os homens e mulheres auscultam e moldam o mundo de dois modos. Utilizemos a escultura como metáfora de partida. Desde Miguel Ângelo que alguns escultores falam de “libertar” uma forma da pedra, a génese e semente desencadeadas pelo encontro dessa pedra e do escultor. A posição diametralmente contrária é entender que essas formas novas, aliadas apenas à interpretação e leitura humanas, próprias dos seus poderes e características, são somente “forçadas” na pedra, ela é torturada para que corresponda a essa visão que lhe é externa, já que a pedra tinha a sua própria forma, aquela que lhe foi sendo moldada pela natureza, em conjunto com a natureza de que ela mesmo faz parte (esta imagem de tortura foi dada pela personagem que desempenha Satanás em The Mystery Play, de Grant Morrison e Jon J. Muth). Uma solução de compromisso, ou que tenta dar a ideia de um encontro equilibrado existindo entre o escultor e a pedra são todas aquelas acções que permeiam as outras atitudes e, em graus diferentes, encontrar-se-á o readymade, a land art, a instalação com objectos naturais, etc. ou, pelo menos no campo ficcional, e com um humor que mima as tentativas do homem em dominar em absoluto o mundo natural, acrescentem-se as engenharias novas apresentadas por Yokoyama. Em todos os casos, porém, acredita-se que existe uma correspondência possível entre a “linguagem da natureza” (as suas formas, as suas direcções, os seus plasmares com as formas humanas) e a “linguagem humana”.
A crença na magia, mormente a “simpática”, é fundamentada nessa poderosa ideia de correspondências. Sem ela, não há laços para que a magia se transporte, se efective, se formalize, funcione. Baudelaire, como é sabido: “L’homme y passe à travers des forêts de symboles/Qui l’observent avec des regards familiers”. A familiaridade é o atravessar do que deveria manter-se estranho, distante. É claro que estas circunstâncias e este modo de entender o mundo nos lançam de novo para a causalidade destas ficções, que não nos deixam surpreendidos em demasia, já que, de facto, há um demiurgo orientando e delimitando todos os elementos que se nos apresentam. O autor. Mas se Daisuké Igarashi havia-nos, com os dois volumes de Hanashippanashi, ofertado com pequeníssimas rábulas estritamente fantásticas, em cujos solos pairava sempre, no fim, as fímbrias da dúvida para com os troços de magia que pareciam surgir, em Sorcières já calcorreamos, de cabeça erguida e com os olhos bem abertos, no território do maravilhoso, no qual o milagre ocorre do modo mais claro possível.
Estes dois volumes reúnem 6 contos, cada um deles coligindo um conto maior, um “médio” e outro de um punhado de páginas. Todos eles têm em comum o facto do protagonista ser uma “feiticeira”, ou seja, uma personagem feminina, as mais das vezes adolescentes ou jovens mulheres, que tem algum grau de controlo sobre forças supra-naturais (seria interessante desvelar esse caminho de associar as mulheres mais rapidamente às esferas do mistério, das fadas às bruxas, que ainda hoje ressoam nas sociedades, por mais “racionais” que se prezem). Estas histórias decorrem da Turquia à bacia do Amazonas às ilhotas em torno do Japão, num espectro temporal que ronda o tempo presente mas dele se pode desviar em qualquer direcção. E colocam sempre as protagonistas num ponto médio, seja esse entre a dúvida, a incapacidade e a crença e abraçar dos poderes (pela mesma), seja entre a desconfiança, o ódio e a aceitação, e apoio (pelos outros). Algumas das histórias mergulham mais nos elos possíveis entre a voz humana e a mais profunda natureza, ao passo que outras alcançam antes os diálogos que são possíveis de estabelecer com os mortos, e o delir de todas as fronteiras que a vigília e a razão impõem, através da magia.
É curioso notar como a mão de Daisuké Igarashi não altera os seus movimentos de um título para o outro (de Hanashippanashi a Sorcières), mantendo-se os mesmos esforços e dedicação ao pormenor, às carregadas sombras, ao equilíbrio entre a representação realista do mundo e a inscrição de criaturas maravilhosas e tenebrosas com um mesmo peso, aos inusitados ângulos para dar melhor a ver os cantos obscuros de onde fluem essas energias abscônditas. Por outra palavra, se bem que abusada, atravessa as histórias com um mesmo estilo. Todavia, o tom e atitude das histórias são diferentes, estas “feiticeiras” permitindo uma maior concentração numa personalidade precisa que molda o mundo que a rodeia e, assim, a nossa (leitores) percepção desse mesmo mundo, e onde o maravilhoso ganha um peso maior, ainda que tão poético como a fantasia de Hanashippanashi. Mais uma vez, como sempre, verificamos que não obstante um mesmo estilo (“forma”), ao ser empregue em tons (“conteúdos”) diferentes, acaba por despertar todo um diverso modo.
A crença na magia, mormente a “simpática”, é fundamentada nessa poderosa ideia de correspondências. Sem ela, não há laços para que a magia se transporte, se efective, se formalize, funcione. Baudelaire, como é sabido: “L’homme y passe à travers des forêts de symboles/Qui l’observent avec des regards familiers”. A familiaridade é o atravessar do que deveria manter-se estranho, distante. É claro que estas circunstâncias e este modo de entender o mundo nos lançam de novo para a causalidade destas ficções, que não nos deixam surpreendidos em demasia, já que, de facto, há um demiurgo orientando e delimitando todos os elementos que se nos apresentam. O autor. Mas se Daisuké Igarashi havia-nos, com os dois volumes de Hanashippanashi, ofertado com pequeníssimas rábulas estritamente fantásticas, em cujos solos pairava sempre, no fim, as fímbrias da dúvida para com os troços de magia que pareciam surgir, em Sorcières já calcorreamos, de cabeça erguida e com os olhos bem abertos, no território do maravilhoso, no qual o milagre ocorre do modo mais claro possível.
Estes dois volumes reúnem 6 contos, cada um deles coligindo um conto maior, um “médio” e outro de um punhado de páginas. Todos eles têm em comum o facto do protagonista ser uma “feiticeira”, ou seja, uma personagem feminina, as mais das vezes adolescentes ou jovens mulheres, que tem algum grau de controlo sobre forças supra-naturais (seria interessante desvelar esse caminho de associar as mulheres mais rapidamente às esferas do mistério, das fadas às bruxas, que ainda hoje ressoam nas sociedades, por mais “racionais” que se prezem). Estas histórias decorrem da Turquia à bacia do Amazonas às ilhotas em torno do Japão, num espectro temporal que ronda o tempo presente mas dele se pode desviar em qualquer direcção. E colocam sempre as protagonistas num ponto médio, seja esse entre a dúvida, a incapacidade e a crença e abraçar dos poderes (pela mesma), seja entre a desconfiança, o ódio e a aceitação, e apoio (pelos outros). Algumas das histórias mergulham mais nos elos possíveis entre a voz humana e a mais profunda natureza, ao passo que outras alcançam antes os diálogos que são possíveis de estabelecer com os mortos, e o delir de todas as fronteiras que a vigília e a razão impõem, através da magia.
É curioso notar como a mão de Daisuké Igarashi não altera os seus movimentos de um título para o outro (de Hanashippanashi a Sorcières), mantendo-se os mesmos esforços e dedicação ao pormenor, às carregadas sombras, ao equilíbrio entre a representação realista do mundo e a inscrição de criaturas maravilhosas e tenebrosas com um mesmo peso, aos inusitados ângulos para dar melhor a ver os cantos obscuros de onde fluem essas energias abscônditas. Por outra palavra, se bem que abusada, atravessa as histórias com um mesmo estilo. Todavia, o tom e atitude das histórias são diferentes, estas “feiticeiras” permitindo uma maior concentração numa personalidade precisa que molda o mundo que a rodeia e, assim, a nossa (leitores) percepção desse mesmo mundo, e onde o maravilhoso ganha um peso maior, ainda que tão poético como a fantasia de Hanashippanashi. Mais uma vez, como sempre, verificamos que não obstante um mesmo estilo (“forma”), ao ser empregue em tons (“conteúdos”) diferentes, acaba por despertar todo um diverso modo.
16 de janeiro de 2008
3 zines. André Lemos (Opuntia Books & Francis Laporte)
O princípio de série impera sobre os trabalhos de André Lemos. É cada vez mais raro que Lemos retorne às formulações mais clássicas da banda desenhada – onde, diga-se, jamais esteve na verdade, mesmo com as pequenas histórias na Lx Comics, no seu volume Quem é este homem? (Bedeteca de Lisboa), em vários fanzines, e na mais recente aventura da Glomp – para cada vez mais se deixar escapar para áreas mais longínquas mas com ela ainda por centro; como se a banda desenhada fosse um mecanismo rotativo, um carrossel aberto, centrífugo, que o impelisse para lá dela mesma. Nesse sentido, algumas das publicações que tem dado à estampa ele mesmo ou convidado a cumprir por outros editores aproximam-se de livros de desenhos em série (mais do que de “uma série de desenhos”) que têm feito a história deste campo expressivo, e sobre cujos nomes supernos, quer histórica quer contemporaneamente, temos insistido reiteradas vezes – Holbein, Goya, Hokusai, Klinger, Masereel, Dix e Grosz, Bruno Schulz, Ernst, Tiago Manuel, Tommi Musturi, de um grupo tão imenso quanto incoeso (uma mais-valia, não uma fraqueza).
Pode-se tentar configurar princípios específicos que regem a organização serial de cada uma dessas publicações, princípios que tanto podem ter de descritivos e taxinómico como revelar de interpretativos. Algumas destas características são mantidas por outro tipo de intervenções que Lemos vai fazendo um pouco por todo o lado, o que o torna o menos famoso mais internacionalizado artista português desta área artística: menos famoso das massas colectoras da “bedê = aventura”, mais internacionalizado por encontrar canais de edição, expressão e distribuição fora do espaço estreito que o destino lhe coube. De novo, repita-se a sua participação na antologia finlandesa Glomp, a elaboração da capa para o jornal ilustrado & de banda desenhada Kutikuti, do mesmo país, e ainda alguns desenhos no colectivo Weekend, editado em França pela Stratégie alimentaire. No entanto, atenhamo-nos apenas a três publicações individuais.
Family Portraits (Opuntia, 2007; capa ao lado), que ainda tem por título oculto os nomes das famílias apresentadas, os Ruins, os Plastic e os Tornadoes, apresenta retratos de vários membros das ditas famílias, acompanhados por textos mínimos, uma frase que, sucinta, nos revela uma fantasmagoria qualquer da personagem em questão, fantasmagorias que são objectificações quer dos apelidos quer das obsessões familiares. Uma certa maneira de dizer que “o sangue é mais forte que a água”?
Cirque Intraveineuse (editado em França por Francis Laporte Éditeurs) parece ser, destas publicações, a mais livre de canais temáticos. Encontramos figuras em diálogo (por vezes, explicitamente), sobreposições de duas criaturas num mesmo corpo, combates e contraposições. Algumas dessas figuras são acompanhadas pelos jogos verbais, que mais não são do que um apurar do uso da linguagem, cada vez mais objectificada, a que André Lemos nos tem habituado mesmo nas suas histórias aparentemente mais lineares, com um eixo ou um centro de gravidade (“Kunst Conqueror”, “Fruit of Acceptance”, “Vegan Chicks don’t swallow”).
Word Games (Opuntia, 2007; página ao lado) coloca fora de cena os desenhos e as imagens da maneira mais simples de os entendermos, para os subsumir na presença das palavras (e seus “jogos”), elas mesmo ganhando um estatuto ainda mais forte de imagem (são-no sempre, mas aqui, revestindo-se com as forças da caracterização do “estilo” de Lemos, são-no mais) e passando a ocupar o lugar do desenho. Os jogos são assim não apenas “verbais” nem apenas “visuais” (onde uma palavra assumiria uma forma visual que lhe fosse latente ou contígua), mas jogos verdadeiramente icónico-verbais. Uma maneira muito peculiar de mostrar o que é possível de fazer por uma arte da caligrafia ocidental, uma possível actualização dos tratadistas de caligrafia como Tagliente ou Cresci, mas desta feita – muito contemporaneamente – como Esemplari do Imperfetto scrittore. Nestes jogos visitam-se vários idiomas e conjugam-se termos inesperados (aquilo que nos buscadores da Amazon se chama “SIPs”, “Statistically Improbable Phrases”). Para aumentar o grau de objectificação das palavras, constante característica, com cada zine é ofertado um pequeno crachá com uma das frases impressa, e apenas uma vez. O crachá que me coube diz “Malström flexible”. Como quem diz, existem tempestades que se adaptam a todas as circunstâncias e necessidades...
Pode-se tentar configurar princípios específicos que regem a organização serial de cada uma dessas publicações, princípios que tanto podem ter de descritivos e taxinómico como revelar de interpretativos. Algumas destas características são mantidas por outro tipo de intervenções que Lemos vai fazendo um pouco por todo o lado, o que o torna o menos famoso mais internacionalizado artista português desta área artística: menos famoso das massas colectoras da “bedê = aventura”, mais internacionalizado por encontrar canais de edição, expressão e distribuição fora do espaço estreito que o destino lhe coube. De novo, repita-se a sua participação na antologia finlandesa Glomp, a elaboração da capa para o jornal ilustrado & de banda desenhada Kutikuti, do mesmo país, e ainda alguns desenhos no colectivo Weekend, editado em França pela Stratégie alimentaire. No entanto, atenhamo-nos apenas a três publicações individuais.
Family Portraits (Opuntia, 2007; capa ao lado), que ainda tem por título oculto os nomes das famílias apresentadas, os Ruins, os Plastic e os Tornadoes, apresenta retratos de vários membros das ditas famílias, acompanhados por textos mínimos, uma frase que, sucinta, nos revela uma fantasmagoria qualquer da personagem em questão, fantasmagorias que são objectificações quer dos apelidos quer das obsessões familiares. Uma certa maneira de dizer que “o sangue é mais forte que a água”?
Cirque Intraveineuse (editado em França por Francis Laporte Éditeurs) parece ser, destas publicações, a mais livre de canais temáticos. Encontramos figuras em diálogo (por vezes, explicitamente), sobreposições de duas criaturas num mesmo corpo, combates e contraposições. Algumas dessas figuras são acompanhadas pelos jogos verbais, que mais não são do que um apurar do uso da linguagem, cada vez mais objectificada, a que André Lemos nos tem habituado mesmo nas suas histórias aparentemente mais lineares, com um eixo ou um centro de gravidade (“Kunst Conqueror”, “Fruit of Acceptance”, “Vegan Chicks don’t swallow”).
Word Games (Opuntia, 2007; página ao lado) coloca fora de cena os desenhos e as imagens da maneira mais simples de os entendermos, para os subsumir na presença das palavras (e seus “jogos”), elas mesmo ganhando um estatuto ainda mais forte de imagem (são-no sempre, mas aqui, revestindo-se com as forças da caracterização do “estilo” de Lemos, são-no mais) e passando a ocupar o lugar do desenho. Os jogos são assim não apenas “verbais” nem apenas “visuais” (onde uma palavra assumiria uma forma visual que lhe fosse latente ou contígua), mas jogos verdadeiramente icónico-verbais. Uma maneira muito peculiar de mostrar o que é possível de fazer por uma arte da caligrafia ocidental, uma possível actualização dos tratadistas de caligrafia como Tagliente ou Cresci, mas desta feita – muito contemporaneamente – como Esemplari do Imperfetto scrittore. Nestes jogos visitam-se vários idiomas e conjugam-se termos inesperados (aquilo que nos buscadores da Amazon se chama “SIPs”, “Statistically Improbable Phrases”). Para aumentar o grau de objectificação das palavras, constante característica, com cada zine é ofertado um pequeno crachá com uma das frases impressa, e apenas uma vez. O crachá que me coube diz “Malström flexible”. Como quem diz, existem tempestades que se adaptam a todas as circunstâncias e necessidades...
Há toda uma concatenação de características que impedem alguma vez de nos enganarmos estarmos perante um “André Lemos”, i.e., a identidade dos desenhos é suficientemente marcada e forte para poder de algum modo ser dissimulada. (aqui ao lado, página de Cirque Intraveineuse) No entanto, não é de somenos verdade que existem algumas estratégias que parecem querer almejar algum grau de dissolução dessa mesma identidade como busca de uma permanente vida interna, que se desdobra para fora por multiplicação, que se metamorfoseia numa torção contínua, impelindo a novos movimentos e respirações. Já vimos o que disto toca no aspecto “temático”. Mas reparem-se igualmente nas “técnicas gráficas” e nos “traços”. (Isto é uma forma de procurarmos caracterizar o seu trabalho, não de o determinarmos. A busca e assunção de um certo “estilo” não deve ser visto como um molde ou uma fórmula na qual se irão encaixar todos os futuros - ou passados mas desconhecidos - trabalhos de um autor. Caracterizar significa ser sensível aos caracteres que surgem, aos sinais individuais, específicos, desse “aqui e agora”.)
Family Portraits é composto por desenhos a traço negro, cabeças flutuando numa mancha negra. Os rostos das famílias, apresentados como são tal qual troféus de caça num salão, acabam por se tornar numa qualquer variação de uma escrita – ideogramas, faciogramas - que entendemos possuir algum significado ulterior, mesmo que não o consigamos decifrar.
Cirque Intraveineuse não tem apenas desenhos. Uma vez que é uma publicação totalmente em serigrafia, cada página a duas cores (preto e amarelo, preto e azul, preto e amarelo, ainda vermelho, e sobre papel creme, amarelo e azul), há várias experiências, de emprego de imagens apropriadas, grandes manchas de tinta, colagens, colagens com recortes de papel de lustro, pormenores ou mesmo figuras a caneta de ponta, etc.
Family Portraits é composto por desenhos a traço negro, cabeças flutuando numa mancha negra. Os rostos das famílias, apresentados como são tal qual troféus de caça num salão, acabam por se tornar numa qualquer variação de uma escrita – ideogramas, faciogramas - que entendemos possuir algum significado ulterior, mesmo que não o consigamos decifrar.
Cirque Intraveineuse não tem apenas desenhos. Uma vez que é uma publicação totalmente em serigrafia, cada página a duas cores (preto e amarelo, preto e azul, preto e amarelo, ainda vermelho, e sobre papel creme, amarelo e azul), há várias experiências, de emprego de imagens apropriadas, grandes manchas de tinta, colagens, colagens com recortes de papel de lustro, pormenores ou mesmo figuras a caneta de ponta, etc.
Word Games (capa ao lado), apesar de quase dispensar os valores icónicos – mas não é absolutamente verdade, pois vemos aqui uma nuvem, ali um escorrimento viscoso, um talo vegetal, um broto, pedras, grão de madeira – não deixa de permitir à caneta-pincel (tinta-da-china) uma variação de contornos, de espessuras, de um equilíbrio diferenciado de curvas e rectas, de ocupação da mancha da página, mas ainda assim formando a fantasmática “assinatura” do autor.
A editora Opuntia Books é uma chancela criada por André Lemos para criar os seus idiossincráticos, belos e irrepetíveis zines (capas serigrafadas, numerados e assinados, com pequenos ex-libris e hors-texte, edições limitadas em torno dos 100 exemplares), mas também a aproveita para publicar outros artistas com os quais estabelece afinidades, não temáticas nem formais mas de atitude para com esta arte em particular: Bruno Borges, Sylvain Gérand, Mehdi Hercberg e Frederico (um seu sobrinho, então com quatro anos), havendo ainda planos para muitos outros no futuro. É um retorno a uma manufactura artesanal do objecto livresco, em que todos e quaisquer pormenores da sua factura se tornam não só uma mais-valia como uma obrigatoriedade de ser fruída aquando da sua leitura ou contemplação global. Poder-se-ia dizer livremente “livro de artista”? A nosso ver, sem dúvida alguma.
A editora Opuntia Books é uma chancela criada por André Lemos para criar os seus idiossincráticos, belos e irrepetíveis zines (capas serigrafadas, numerados e assinados, com pequenos ex-libris e hors-texte, edições limitadas em torno dos 100 exemplares), mas também a aproveita para publicar outros artistas com os quais estabelece afinidades, não temáticas nem formais mas de atitude para com esta arte em particular: Bruno Borges, Sylvain Gérand, Mehdi Hercberg e Frederico (um seu sobrinho, então com quatro anos), havendo ainda planos para muitos outros no futuro. É um retorno a uma manufactura artesanal do objecto livresco, em que todos e quaisquer pormenores da sua factura se tornam não só uma mais-valia como uma obrigatoriedade de ser fruída aquando da sua leitura ou contemplação global. Poder-se-ia dizer livremente “livro de artista”? A nosso ver, sem dúvida alguma.
Mas esse termo parece ser reservado para projectos onde se movem interesses económicos mais desenvoltos, não necessariamente mais interessantes nem dignificantes dos autores envolvidos – como, para dar dois exemplos recentes, a re-publicação de Comunidade, um conto do recentemente morto (finalmente “aceite” pela “Coltura” oficial?) Luís Pacheco com requentamentos de Cruzeiro Seixas e um hilariante volume intitulado Artistas Retratam Escritores Que Retratam Artistas pela recentemente aberta livraria Byblos –. Assim sendo, assuma-se “zine” como uma nova denominação bem mais livre e respirando viva que cansadas fórmulas para circuitos fechados (aqui ao lado, página de Family Portraits). Tomando as distâncias históricas, contextuais e económicas devidas, recordam-me estas edições as experiências que muitos dos artistas das vanguardas russas (poetas inclusive) seguiram. Este gesto está em consonância com uma tendência contemporânea, que se espelha nas edições da Imprensa Canalha, de José Feitor, partilhando-se tantas outras afinidades (e projectos em comum), mas que foi sempre apanágio de uma maneira de criar fanzines (expoente em Portugal atingido por João Bragança, com a Succedâneo) e também se repercute em outras áreas mais atreitas à impressão, mesmo que misturada em projecto comercial (o caso paradigmático dos cadernos Serrote).
15 de janeiro de 2008
Postais de Viagem. Teresa Câmara Pestana (auto-edição)
Postais de Viagem parte de um pressuposto: dá-nos conta de eventos (e documentos) que ocorreram realmente a uma pessoa ausente, conhecida pelas siglas de “A.C.”, que se torna uma personagem-sombra na sua própria história, e cuja representação física nem sempre se procura efectuar ou que se disfarça noutras formas, ganhando apenas contornos através da sua voz, um “eu” que igualmente se vai dissolvendo na sua descrição da particular África que a rodeia, o antigo Benin/Dahomey (o qual, como veremos, não existindo no modo oficial de desenhos a tinta sobre mapas, corresponde ainda a uma realidade, intangível, que respira num domínio outro: espiritual).
Apesar desta imensa linha narrativa central, que alinha as cerca de cinquenta pranchas do livro (que o é, apesar do formato nos remeter mais ao universo de revista, e que pode constituir um factor “comercial” para a invisibilidade deste - e outros - projecto nas enchentes dos escaparates mais conformados e normalizados), há todo um ritmo de staccato que nos remete para as obras anteriores de Teresa Câmara Pestana, nomeadamente o seu longo e saudável Gambuzine, e a dilogia Aqui? Babilónia e Continuamos aqui? Com isto quero chamar a atenção para a construção de uma diegese, indubitável, através do que parecem ser momentos separados em termos temporais e espaciais bem mais intervalados do que sucede na banda desenhada mais normativa. Nesse sentido, remete-nos para todo um universo de discussões de fronteiras entre esse modo apertado de ver a banda desenhada com outras obras que se veriam mais próximas da área da ilustração, ora pelo seu carácter de uma fragmentação maximal que faz emergir um sentido coeso (aproximando-se de Holbein ou Hokusai, de Warren Craghead a algumas obras de Gorey) ora por esse tal movimento pausado mas rítmico de narrar (aproximando-se, desta feita, de Loustal ou José Feitor/Luís Henriques em Babinski).
Uma pequena nota: a possível psicologização da leitura através de um confronto da protagonista com a personalidade da autora pertence a um outro tipo de trabalho interpretativo que não me pertence. Será curioso levantar algumas questões por entrevista, sem dúvida, e do cotejamento com a “personalidade” das publicações anteriores, mais “neuro-bio-psico-quemo-molabilo-sapiens”, ou “cultura escarreta”, para utilizar as palavras da autora, transformada em Postais numa pessoa inserida numa maior serenidade, resultará seguramente alguma leitura de interesse. Mas não é esse o meu papel, repito-o, e falo aqui da protagonista (elemento narratológico) e dos eventos do livro através dos signos legíveis nele inscritos.
O que emerge é um retrato de um encontro. Um encontro entre uma mulher e um lugar, o qual, apesar de ser identificado na sua mais exacta concrescibilidade, o território do Dahomey (hoje compreendendo “parte do Togo, Nigéria e todo o Benin”), surge como metonímia de um outro lugar, que pelos seus contornos vagos se torna metáfora: África. Metonímia, não sinédoque, porque é como se esse Dahomey não fosse meramente uma “parte” de um “todo”, que é África, mas como se a relação fosse de exponencial projecção de fantasmas (quer os dos mortos, da tradição, quer os mais ilusórios, provocados pelo estrangeiro). Por outro lado, a protagonista, diminuída a um “A.C.”, e já que estamos a falar de figuras de retórica relativas aos significados implicados, constitui o que na antiguidade se chamava de inopia (“carência de uma expressão própria”, segundo Lausberg). Ou seja, o que vemos aqui suceder é um movimento paralelo e diametralmente oposto: à medida que a protagonista se “apaga” (se torna sigla, sombra, fantasma) mais assoma uma imagem de África (que, de tanto consumir em seu torno, também se torna igualmente fantasmática). Esse movimento é logo explicitado nas duas primeiras páginas do livro, que parecem opostas: uma explicando o desaparecimento progressivo de A.C., a outra explicando, quase enciclopedicamente, a unidade espácio-temporal (e para além dela) onde se desvendará a sorte da protagonista, o seu mergulhar.
Existem, como se sabe, muitos livros sobre este tipo de encontros, entre o homem-de-fora (o estrangeiro, o forasteiro, o bárbaro) e a nova terra (“nova” para o recém-chegado); e África parece suscitar paixões mais arreigadas que os demais locais, para nós (“nós”, que a ideografia e infografia apelida de “homens” do mundo de Cá). Existem vários graus de entrega e de diálogo, obviamente. Aquando da Cimeira Europa-África, um grafitti de rua rezava o seguinte: “África Minha, o caralho”. Penso que essa frase congrega todo um sentido múltiplo que se pode entender dos papéis que se efectuam para com esse animal mítico que é África. As mais das vezes, não se fala de um país concreto – e as suas pessoas, suas culturas, línguas – já que foram as linhas de tinta dos europeus que delimitaram o espaço de um modo como ele não existia para as famílias que ali existiam. Por isso, fala-se de África, no geral, como se houvesse mais em comum, uma massa uniforme (para não dizer informe, pronta a moldar consoante os propósitos) entre um etíope e um angolano do que entre um português e um lapónio. E esses livros e obras mostram sempre uma distância entre essa África, desconcretizada, descarnada, mitificada enfim, e o visitante. Teresa Câmara Pestana esforça-se por mostrar uma entrega muito profunda de A.C. à sua nova casa, lar, mundo, onde o mergulhar não é o de uma observadora externa, muito menos de uma curiosa ou turista, mas a de uma estudante que pretende atingir uma metamorfose final. Procurada sobretudo através da sua entrada no círculo religioso ali existente, o do yoruba/orixá. E conseguida, afinal, pela sua obliteração absoluta.
Todavia, há ainda pequenas máculas da natureza citada, dessa distância impossível de transpor. Em alguns momentos, a protagonista desvenda essa distância de duas maneiras. Por um lado, facto inevitável, depreende-se, queiramos explicar isso através dos exercícios da auto-ficção, do ligeiro disfarce autobiográfico, do desvio permitido pela criação ficcional, que a protagonista é ocidental (branca?, portuguesa?) e, logo, não cresceu no interior da cultura na qual deseja, não só entrar (através da aprendizagem ou da emulação) mas mergulhar (confundir-se em). Prova: aquando da cerimónia do ebo (rito de purificação, em que a protagonista finalmente estabelece paz e se plasma com o espírito que a persegue), lê-se o seguinte: “O ambiente é no entanto extremamente solene, apesar do ar pouco sério das figuras felinas no altar”. De que deriva esse “ar pouco sério”? De uma verdade intrínseca à cultura vudu, em que o leão e o leopardo são considerados como impossíveis de domesticar e por isso sinal de um poder que escapa às malhas dos homens, da circunstância específica de representação do artista que esculpiu estas imagens, com um humor pessoal? Ou antes da atitude desta “estrangeira” que vê nesta representação – quiçá austera até – laivos de alguma “ingenuidade”? Logo a seguir, quando finalmente os “cavaleiros” (i.e., a pessoa que o espírito, o orixá, “monta”) entram em transe, a protagonista descreve como todos os elementos conjuntos “induzem rapidamente os participantes mais sensíveis a um estado de mente alterado”. A escolha deste termo, praticamente clínico, aceite na literatura que lhe é específica, induz-nos na crença que há uma diferenciação entre esse estado “alterado” de um outro, “normal”. Todavia, num crente (por outras palavras, numa pessoa que está no interior desse sistema de crença, de pensamento, de modo de estruturação do mundo), essa diferenciação dissipa-se, não existe, é um contínuo. Nós, os “de fora”, não entendemos, apenas vemos o contorno, linha grossa, da diferença. O mesmo sucede na nossa própria cultura. Em todas as missas católicas, dá-se um milagre: a transubstanciação. Para os crentes, a hóstia é (torna-se, transforma-se, metamorfoseia-se) o corpo de Cristo, o vinho é o sangue de Cristo; para os não-crentes, não passa de um disco de pão, de uma gotas de vinho. Não há milagre, para nós, os não-crentes. Não tem nada a ver com uma verdade adquirível pela lógica, pela cientificidade, pelo racionalismo positivo. Não se trata de uma simples dicotomia de ser versus não ser. É antes uma oposição intransponível entre crer-se ou não se crer.
Entenda-se, porém, que estas ligeiras diferenciações da protagonista são isso mesmo, ligeiras, mínimas. Quase sempre, o retratista toma alguma distância do retratado. Podem ser uns meros passos, para poder reverter todas as sombras e luz num rosto legível e claro, ou ausentar-se de qualquer ideia de proximidade para poder fazer emergir um panorama. E, seja qual for essa distância, portanto, nós, leitores, somos confrontados – ainda que numa só unidade de espaço e de tempo – com o retratista e o retratado, duas presenças. Contíguas ou sobrepostas, justapostas ou ligeiramente diferenciadas, duas presenças. A protagonista do livro de Teresa Câmara Pestana atasca-se de tal modo no seu retratado que estas duas presenças acabam por se dissimular uma na outra, e impedem-nos de as destrinçar com facilidade, se de todo. A presença de uma repercute-se na da outra, incessantes.
Esta flutuação, transporte, trânsito, indecisão, ou até indiscernibilidade, ganha forma nalguns dos modos de estruturação das pranchas de Postais de viagem. Todas elas são compostas, regular e infalivelmente, por duas grandes vinhetas – os “postais”. Mas em muitos casos (dez, para ser preciso), as vinhetas unem-se para formar um rosto (ou corpo) único, que parece emergir das marcas impressas nos desenhos, mesmo que partes desse rosto sejam outros tantos rostos (lembra, sem que haja aqui necessariamente ligações directas, algumas das pranchas de David B.); noutros casos, há pequenos ecos entre as duas vinhetas, de uma sombra que continua, de uma cobra que se repete, de uma porta que se move, uma cabeça que se afoga. É como se fosse uma estratégia da autora em fazer com que algo “oculto” emirja no plano do visual para além do visível. Se faço esta distinção, é porque estou a seguir uma lição de Georges Didi-Huberman, a qual, para expô-la de modo sucinto (mas redutor, atenção), a segunda refere-se àqueles elementos que correspondem às nossas percepções mais superficiais, ao passo que o visual está para o campo que as obras de arte abrem ao nosso olhar, “maior”, digamos assim, que a mera visibilidade. Não se trata de nenhuma espécie de magia, nem de uma representação do “invisível” – que se o é não é representável de modo algum – mas de um acesso ao “inconsciente do visível” (expressão do autor francês): “uma região da figura que terá a potência obsidiante dos fantasmas, ou a fatalidade dos sintomas, ou o valor de prazer dos trocadilhos, ou ainda o valor alucinatório das imagens dos sonhos... Em suma, a capacidade, a potência de constituir cada figura numa dialéctica do desejo e num verdadeiro tesouro de sobredeterminações psíquicas e culturais” (L’image ouverte, pg. 198). A sobredeterminação – na qual interferem vários factores criando essa massa de significados intricados - é veiculada aqui por uma junção num plano maior do que nos surge separadamente, como se existisse um fundo uno, uma dimensão superior, no qual as diferentes camadas “visíveis” (vinhetas/postais) nos surgissem separadamente. E a existência desse plano superior leva-nos a pensar na continuidade desse movimento, até atingirmos o livro como um todo (ou até além, pela via dos conceitos e da Imaginação; Thierry Groensteen discutiu isto, de outro modo, sob o conceito da tressage).
Falei, a propósito de outro livro, da ascensão e integração daqueles sinais a que se dá o nome de “outsider art” nas artes contemporâneas, sobretudo na banda desenhada. Os traços gráficos de Teresa Câmara Pestana desfazem-se dos elos historicistas que insistem no primitivismo das artes africanas, no seu domínio decorativo, funcional, ingénuo – e, seja como for, isto é verbalizado pelas palavras de A.C. São raras as vinhetas que se pautam pela claridade legível mais típica da banda desenhada, onde a personagem principal se inscreve numa indiscutível unidade espácio-temporal, de acção, de sentido, etc. As imagens e a plasticidade das formas e dos sinais ganham nestes desenhos um valor de presença carregado, que não revela de um emprego metafórico – outro modo de diferenciar, de estranhar – mas antes de uma cidadania que pretende ecoar essa derrocada de fronteiras. O mundo outro é aqui. Vejam-se as discussões em torno das três manchas que acompanham, ou melhor, são qualquer mulher e homem: a sua sombra, a sua alma, o seu duplo (de extremo interesse, por serem “separados à nascença” de nós mesmos, mas que “andam sempre por perto” apesar de “não devemos ver”; mais, “significam morte iminente”: separar-ajuntar-separar-ajuntar até à mescla final, de resto, idêntica à inicial... Este movimento é contínuo em Postais...).
Porém, se todo este jogo contínuo de movimentos compassados e de sombras se faz ao nível da inscrição visual, isto é, a própria construção de Postais de Viagem, é devido à vontade de a autora procurar a genuidade dessa relação, desse intervalo intransponível. Assim, o desvendar dessa imperfeição torna esta obra mais justa do que aquelas outras que pretendem dissimular essa distância através de elos românticos ou mais mitificadores ainda do que a ebriedade que os mitos locais permitem, e à qual A.C. se entrega.
Nota: agradecimentos a Teresa Câmara Pestana, pela oferta do livro.
Apesar desta imensa linha narrativa central, que alinha as cerca de cinquenta pranchas do livro (que o é, apesar do formato nos remeter mais ao universo de revista, e que pode constituir um factor “comercial” para a invisibilidade deste - e outros - projecto nas enchentes dos escaparates mais conformados e normalizados), há todo um ritmo de staccato que nos remete para as obras anteriores de Teresa Câmara Pestana, nomeadamente o seu longo e saudável Gambuzine, e a dilogia Aqui? Babilónia e Continuamos aqui? Com isto quero chamar a atenção para a construção de uma diegese, indubitável, através do que parecem ser momentos separados em termos temporais e espaciais bem mais intervalados do que sucede na banda desenhada mais normativa. Nesse sentido, remete-nos para todo um universo de discussões de fronteiras entre esse modo apertado de ver a banda desenhada com outras obras que se veriam mais próximas da área da ilustração, ora pelo seu carácter de uma fragmentação maximal que faz emergir um sentido coeso (aproximando-se de Holbein ou Hokusai, de Warren Craghead a algumas obras de Gorey) ora por esse tal movimento pausado mas rítmico de narrar (aproximando-se, desta feita, de Loustal ou José Feitor/Luís Henriques em Babinski).
Uma pequena nota: a possível psicologização da leitura através de um confronto da protagonista com a personalidade da autora pertence a um outro tipo de trabalho interpretativo que não me pertence. Será curioso levantar algumas questões por entrevista, sem dúvida, e do cotejamento com a “personalidade” das publicações anteriores, mais “neuro-bio-psico-quemo-molabilo-sapiens”, ou “cultura escarreta”, para utilizar as palavras da autora, transformada em Postais numa pessoa inserida numa maior serenidade, resultará seguramente alguma leitura de interesse. Mas não é esse o meu papel, repito-o, e falo aqui da protagonista (elemento narratológico) e dos eventos do livro através dos signos legíveis nele inscritos.
O que emerge é um retrato de um encontro. Um encontro entre uma mulher e um lugar, o qual, apesar de ser identificado na sua mais exacta concrescibilidade, o território do Dahomey (hoje compreendendo “parte do Togo, Nigéria e todo o Benin”), surge como metonímia de um outro lugar, que pelos seus contornos vagos se torna metáfora: África. Metonímia, não sinédoque, porque é como se esse Dahomey não fosse meramente uma “parte” de um “todo”, que é África, mas como se a relação fosse de exponencial projecção de fantasmas (quer os dos mortos, da tradição, quer os mais ilusórios, provocados pelo estrangeiro). Por outro lado, a protagonista, diminuída a um “A.C.”, e já que estamos a falar de figuras de retórica relativas aos significados implicados, constitui o que na antiguidade se chamava de inopia (“carência de uma expressão própria”, segundo Lausberg). Ou seja, o que vemos aqui suceder é um movimento paralelo e diametralmente oposto: à medida que a protagonista se “apaga” (se torna sigla, sombra, fantasma) mais assoma uma imagem de África (que, de tanto consumir em seu torno, também se torna igualmente fantasmática). Esse movimento é logo explicitado nas duas primeiras páginas do livro, que parecem opostas: uma explicando o desaparecimento progressivo de A.C., a outra explicando, quase enciclopedicamente, a unidade espácio-temporal (e para além dela) onde se desvendará a sorte da protagonista, o seu mergulhar.
Existem, como se sabe, muitos livros sobre este tipo de encontros, entre o homem-de-fora (o estrangeiro, o forasteiro, o bárbaro) e a nova terra (“nova” para o recém-chegado); e África parece suscitar paixões mais arreigadas que os demais locais, para nós (“nós”, que a ideografia e infografia apelida de “homens” do mundo de Cá). Existem vários graus de entrega e de diálogo, obviamente. Aquando da Cimeira Europa-África, um grafitti de rua rezava o seguinte: “África Minha, o caralho”. Penso que essa frase congrega todo um sentido múltiplo que se pode entender dos papéis que se efectuam para com esse animal mítico que é África. As mais das vezes, não se fala de um país concreto – e as suas pessoas, suas culturas, línguas – já que foram as linhas de tinta dos europeus que delimitaram o espaço de um modo como ele não existia para as famílias que ali existiam. Por isso, fala-se de África, no geral, como se houvesse mais em comum, uma massa uniforme (para não dizer informe, pronta a moldar consoante os propósitos) entre um etíope e um angolano do que entre um português e um lapónio. E esses livros e obras mostram sempre uma distância entre essa África, desconcretizada, descarnada, mitificada enfim, e o visitante. Teresa Câmara Pestana esforça-se por mostrar uma entrega muito profunda de A.C. à sua nova casa, lar, mundo, onde o mergulhar não é o de uma observadora externa, muito menos de uma curiosa ou turista, mas a de uma estudante que pretende atingir uma metamorfose final. Procurada sobretudo através da sua entrada no círculo religioso ali existente, o do yoruba/orixá. E conseguida, afinal, pela sua obliteração absoluta.
Todavia, há ainda pequenas máculas da natureza citada, dessa distância impossível de transpor. Em alguns momentos, a protagonista desvenda essa distância de duas maneiras. Por um lado, facto inevitável, depreende-se, queiramos explicar isso através dos exercícios da auto-ficção, do ligeiro disfarce autobiográfico, do desvio permitido pela criação ficcional, que a protagonista é ocidental (branca?, portuguesa?) e, logo, não cresceu no interior da cultura na qual deseja, não só entrar (através da aprendizagem ou da emulação) mas mergulhar (confundir-se em). Prova: aquando da cerimónia do ebo (rito de purificação, em que a protagonista finalmente estabelece paz e se plasma com o espírito que a persegue), lê-se o seguinte: “O ambiente é no entanto extremamente solene, apesar do ar pouco sério das figuras felinas no altar”. De que deriva esse “ar pouco sério”? De uma verdade intrínseca à cultura vudu, em que o leão e o leopardo são considerados como impossíveis de domesticar e por isso sinal de um poder que escapa às malhas dos homens, da circunstância específica de representação do artista que esculpiu estas imagens, com um humor pessoal? Ou antes da atitude desta “estrangeira” que vê nesta representação – quiçá austera até – laivos de alguma “ingenuidade”? Logo a seguir, quando finalmente os “cavaleiros” (i.e., a pessoa que o espírito, o orixá, “monta”) entram em transe, a protagonista descreve como todos os elementos conjuntos “induzem rapidamente os participantes mais sensíveis a um estado de mente alterado”. A escolha deste termo, praticamente clínico, aceite na literatura que lhe é específica, induz-nos na crença que há uma diferenciação entre esse estado “alterado” de um outro, “normal”. Todavia, num crente (por outras palavras, numa pessoa que está no interior desse sistema de crença, de pensamento, de modo de estruturação do mundo), essa diferenciação dissipa-se, não existe, é um contínuo. Nós, os “de fora”, não entendemos, apenas vemos o contorno, linha grossa, da diferença. O mesmo sucede na nossa própria cultura. Em todas as missas católicas, dá-se um milagre: a transubstanciação. Para os crentes, a hóstia é (torna-se, transforma-se, metamorfoseia-se) o corpo de Cristo, o vinho é o sangue de Cristo; para os não-crentes, não passa de um disco de pão, de uma gotas de vinho. Não há milagre, para nós, os não-crentes. Não tem nada a ver com uma verdade adquirível pela lógica, pela cientificidade, pelo racionalismo positivo. Não se trata de uma simples dicotomia de ser versus não ser. É antes uma oposição intransponível entre crer-se ou não se crer.
Entenda-se, porém, que estas ligeiras diferenciações da protagonista são isso mesmo, ligeiras, mínimas. Quase sempre, o retratista toma alguma distância do retratado. Podem ser uns meros passos, para poder reverter todas as sombras e luz num rosto legível e claro, ou ausentar-se de qualquer ideia de proximidade para poder fazer emergir um panorama. E, seja qual for essa distância, portanto, nós, leitores, somos confrontados – ainda que numa só unidade de espaço e de tempo – com o retratista e o retratado, duas presenças. Contíguas ou sobrepostas, justapostas ou ligeiramente diferenciadas, duas presenças. A protagonista do livro de Teresa Câmara Pestana atasca-se de tal modo no seu retratado que estas duas presenças acabam por se dissimular uma na outra, e impedem-nos de as destrinçar com facilidade, se de todo. A presença de uma repercute-se na da outra, incessantes.
Esta flutuação, transporte, trânsito, indecisão, ou até indiscernibilidade, ganha forma nalguns dos modos de estruturação das pranchas de Postais de viagem. Todas elas são compostas, regular e infalivelmente, por duas grandes vinhetas – os “postais”. Mas em muitos casos (dez, para ser preciso), as vinhetas unem-se para formar um rosto (ou corpo) único, que parece emergir das marcas impressas nos desenhos, mesmo que partes desse rosto sejam outros tantos rostos (lembra, sem que haja aqui necessariamente ligações directas, algumas das pranchas de David B.); noutros casos, há pequenos ecos entre as duas vinhetas, de uma sombra que continua, de uma cobra que se repete, de uma porta que se move, uma cabeça que se afoga. É como se fosse uma estratégia da autora em fazer com que algo “oculto” emirja no plano do visual para além do visível. Se faço esta distinção, é porque estou a seguir uma lição de Georges Didi-Huberman, a qual, para expô-la de modo sucinto (mas redutor, atenção), a segunda refere-se àqueles elementos que correspondem às nossas percepções mais superficiais, ao passo que o visual está para o campo que as obras de arte abrem ao nosso olhar, “maior”, digamos assim, que a mera visibilidade. Não se trata de nenhuma espécie de magia, nem de uma representação do “invisível” – que se o é não é representável de modo algum – mas de um acesso ao “inconsciente do visível” (expressão do autor francês): “uma região da figura que terá a potência obsidiante dos fantasmas, ou a fatalidade dos sintomas, ou o valor de prazer dos trocadilhos, ou ainda o valor alucinatório das imagens dos sonhos... Em suma, a capacidade, a potência de constituir cada figura numa dialéctica do desejo e num verdadeiro tesouro de sobredeterminações psíquicas e culturais” (L’image ouverte, pg. 198). A sobredeterminação – na qual interferem vários factores criando essa massa de significados intricados - é veiculada aqui por uma junção num plano maior do que nos surge separadamente, como se existisse um fundo uno, uma dimensão superior, no qual as diferentes camadas “visíveis” (vinhetas/postais) nos surgissem separadamente. E a existência desse plano superior leva-nos a pensar na continuidade desse movimento, até atingirmos o livro como um todo (ou até além, pela via dos conceitos e da Imaginação; Thierry Groensteen discutiu isto, de outro modo, sob o conceito da tressage).
Falei, a propósito de outro livro, da ascensão e integração daqueles sinais a que se dá o nome de “outsider art” nas artes contemporâneas, sobretudo na banda desenhada. Os traços gráficos de Teresa Câmara Pestana desfazem-se dos elos historicistas que insistem no primitivismo das artes africanas, no seu domínio decorativo, funcional, ingénuo – e, seja como for, isto é verbalizado pelas palavras de A.C. São raras as vinhetas que se pautam pela claridade legível mais típica da banda desenhada, onde a personagem principal se inscreve numa indiscutível unidade espácio-temporal, de acção, de sentido, etc. As imagens e a plasticidade das formas e dos sinais ganham nestes desenhos um valor de presença carregado, que não revela de um emprego metafórico – outro modo de diferenciar, de estranhar – mas antes de uma cidadania que pretende ecoar essa derrocada de fronteiras. O mundo outro é aqui. Vejam-se as discussões em torno das três manchas que acompanham, ou melhor, são qualquer mulher e homem: a sua sombra, a sua alma, o seu duplo (de extremo interesse, por serem “separados à nascença” de nós mesmos, mas que “andam sempre por perto” apesar de “não devemos ver”; mais, “significam morte iminente”: separar-ajuntar-separar-ajuntar até à mescla final, de resto, idêntica à inicial... Este movimento é contínuo em Postais...).
Porém, se todo este jogo contínuo de movimentos compassados e de sombras se faz ao nível da inscrição visual, isto é, a própria construção de Postais de Viagem, é devido à vontade de a autora procurar a genuidade dessa relação, desse intervalo intransponível. Assim, o desvendar dessa imperfeição torna esta obra mais justa do que aquelas outras que pretendem dissimular essa distância através de elos românticos ou mais mitificadores ainda do que a ebriedade que os mitos locais permitem, e à qual A.C. se entrega.
Nota: agradecimentos a Teresa Câmara Pestana, pela oferta do livro.
Carlitos e O Projecto de Fecundar a Lua. Marco Mendes, com Janus e Lígia Paz (auto-edição)
Durante algum tempo, devo confessar que olhava o trabalho de Marco Mendes como pequenas peças disjuntas de um grande projecto que se adivinhava. Isto é, pecava eu naquela visão de que uma legitimação – seja esta cultural, artística, literária e, pasme-se, banda desenhística - tivesse necessariamente de passar por aquela medida que se diz “de maior fôlego”, “mais conseguida”, “mais acabada” e a que se chama livro (ou “novela gráfica” ou termos quejandos, todos eles tolos e vazios). No entanto, é até mesmo graças ao nome de série que o autor desenvolveu (presente nos fanzines, nos títulos de algumas pranchas, e no seu blog e desenhos que vai produzindo noutros circuitos, ditos “artísticos”, como se o resto não o fosse) que atingimos o verdadeiro tom e ponto de justiça do seu trabalho: Diário Rasgado.
Se a palavra “diário” nos remete a uma espécie de prova de esforço, ritmada, que se pretende como uma capacidade de remeter toda uma série de eventos para a sua possibilidade de escrita, de merecimento dessa transformação e transmissão, já o qualificativo de “rasgado” faz-nos pensar numa revisão dessa mesma ideia. Poder-se-á referir a páginas que afinal não merecem ser recuperadas pela memória, excepções a esse merecimento, e logo são sacrificadas, arrancadas do corpo maior. Mas também poderemos entender que foram rasgadas precisamente como forma de resgate, isto é, o diário em si continuando inacessível – por não nos pertencer, por não ganhar corpo no mundo – e apenas são estas aquelas que ganham contornos de legibilidade. Mas o acto de rasgar, movimento manual de alguma violência, leva também a que se pense numa folha agora tornada (mais) imperfeita: não se trata de “cortar” ou “separar” ou “destacar”, mas “rasgar”: um dos lados ficará desigual, com várias curvas, esta frase e aquele desenho “magoados”, “incompletos”: a imperfeição é uma das características destas páginas, com estilos ligeiramente diferentes, vários graus de completude do desenho, textos corrigidos... Como se a dificuldade em nos vermos a nós mesmos, todos os dias, do mesmo modo, fosse expressa por essas diferenciações internas, e o acto de nos rasgarmos de nós mesmos, para permitir que nos possamos ver “de fora”, se tornasse possível.
Seria um erro tremendo não partirmos da ideia de que Marco Mendes conhece bem a tradição em que se insere. Apesar da banda desenhada viver numa crise da sua própria memória, em que cada nova geração parece desenvolver-se na ignorância do que veio atrás, Marco Mendes pertence a uma outra nova geração, que se ocupa de uma recuperação, quer directa quer indirecta, de todo um rol de criadores, assim como ao estabelecimento consciente de linhas de desenvolvimento artístico muito próprias, retrospectivamente, mas também projectivamente, nas quais depois se inserirão estes mesmos artistas. Julgo que é claríssima a “família” aqui eleita, e a que se poderia dar o nome de autobiografia, com todas as certeiras certezas e igualmente os frágeis defeitos que tal nome implica. Logo, o cotejamento do trabalho de Mendes com o da linha americana que se estende de Justin Green, Harvey Pekar até aos mais recentes autores, e da europeia desde Moebius (um punhado de histórias curtas) ou Gotlib a Fabrice Neaud, não é de todo displicente, e obriga-nos a encontrar a sua especificidade e valor. As afinidades de Marco Mendes aproximam-no mais de autores como Joe Matt, pela forma como o autor-enquanto-personagem nos aborda directamente (puxando-nos de uma forma poderosa a que respeitemos o papel de narratário que nos é destinado) para ofertar com uma franquíssima exposição dos seus defeitos de toda a ordem (física, económica, profissional, amorosa, sexual...). Mas onde Joe Matt o faz empregando um tom de humor excessivo, quase de absurda caricatura, e para o qual concorre o seu estilo gráfico fortemente estilizado e devedor de uma produção infantil, e para que, segundo as boas regras retóricas da captatio benevolentiae, “perdoemos” essas confessadas imperfeições de carácter, Mendes não parece procurar o mesmo tipo de reacção. É certo que também este autor num momento ou outro emprega o humor (veja-se a capa de Carlitos) ou a metamorfose como forma de escape ao peso “real” que essas confissões assumirão, mas além se serem excepcionais, servem como veículo de uma abertura mais sincera, despojada mesmo de uma suposta empatia que pudesse vir a desenvolver-se. Mesmo as recriações pela ficção (de variadíssimos tons e naturezas) acabam por reforçar um baixo contínuo em todas as bandas desenhadas, que se nos aventa pertencer à melancolia, na verdade.
Torna-se assim mais perigoso num aspecto, que é o da ulterior confusão entre a vida e a arte. O que, por sua vez, se expressa de dois modos. O primeiro é o dos leitores, com maior ou menor ou inexistente intimidade com o autor Marco Mendes, levarem os acontecimentos retratados nestas estórias por um seu valor predicativo: “isto foi mesmo assim?”, parece apetecer perguntar. Não há resposta possível a esta pergunta, e mesmo que o autor avançasse com uma resposta – uma conversa descomprometida – estar-se-ia perante um erro categórico ou uma falácia. O segundo tipo de confusão é um repetido mote que surge aquando das críticas à autobiografia (mormente na banda desenhada) e que já algumas vezes debati, que reza que se não há muito a dizer na vida desse autor não suscitará interesse ele ou ela expressar esse “pouco”. O problema está em colocar um peso maior na ontologia do autor real que na capacidade e eficácia estética da obra; de certa forma, é idêntico ao primeiro problema, mas com consequências mais lesantes para a sua interpretação. No entanto, é precisamente esse perigo o que torna aliciante a sua leitura e consequente interpretação estética.
Lígia Paz (sua colaboradora em Carlitos, v. abaixo) escreveu um excelente texto sobre o seu trabalho, por ocasião da sua apresentação na galeria Plumba, no blog de Marco Mendes, ainda que dissolva precisamente a barreira última entre a sua intimidade com o artista enquanto pessoa e a leitura do seu trabalho, obra, a arte. A meu ver, e esta é uma posição que, espero tornar cada vez mais apurada, o trabalho crítico não deve incorporar jamais elementos que tenham uma proveniência externa à da própria obra. Não é difícil aceder a elementos dessa natureza, para começar, graças ao convívio directo com o artista, que tanto pode surgir da amizade como dessa aproximação jornalística, essa criação de uma comunicabilidade ilusória, e que dá pelo nome de “entrevista”.
Esta palavra, neste seu sentido moderno, precisamente jornalístico, surgiu a meados do século XIX e pelo inglês, mas a existência da sua forma verbal anciã, entrever, é já atestada desde o século XVI, e possivelmente relacionada com o francês. O seu significado oscila por “ver por entre”, “ver brevemente” (“entrevista num rápido olhar”, lê-se algures em Poe), e até mesmo “encontrar-se directamente com alguém”. O sentido jornalístico, desvirtuado ou tornado explícito no verbo entrevistar, nada tem a ver com essa realidade:
Em todo o caso, o texto de Lígia Paz não se reveste, nem o pretende, de uma natureza crítica absoluta, e deseja antes revelar o que da intimidade se pode despedir como pista de leitura. As suas palavras não nascem de uma entrevista nem de um entre-vistar, mas de uma supervisão, i.e., um “ver por cima”, e “para dentro” do autor, desdobrando desse interior linhas que se tornam texto. Há duas características sublinhadas, nesse texto, de importância máxima na apreciação do trabalho de Mendes: uma “sujidade gráfica” e a assunção de “pseudo-histórias”. Isto é, a narrativa acaba por não se concentrar em torno de um nódulo de significados, mas antes formar-se por acumulação das notas que se propõem sedimentar nestas curtas bandas desenhadas.
Se a palavra “diário” nos remete a uma espécie de prova de esforço, ritmada, que se pretende como uma capacidade de remeter toda uma série de eventos para a sua possibilidade de escrita, de merecimento dessa transformação e transmissão, já o qualificativo de “rasgado” faz-nos pensar numa revisão dessa mesma ideia. Poder-se-á referir a páginas que afinal não merecem ser recuperadas pela memória, excepções a esse merecimento, e logo são sacrificadas, arrancadas do corpo maior. Mas também poderemos entender que foram rasgadas precisamente como forma de resgate, isto é, o diário em si continuando inacessível – por não nos pertencer, por não ganhar corpo no mundo – e apenas são estas aquelas que ganham contornos de legibilidade. Mas o acto de rasgar, movimento manual de alguma violência, leva também a que se pense numa folha agora tornada (mais) imperfeita: não se trata de “cortar” ou “separar” ou “destacar”, mas “rasgar”: um dos lados ficará desigual, com várias curvas, esta frase e aquele desenho “magoados”, “incompletos”: a imperfeição é uma das características destas páginas, com estilos ligeiramente diferentes, vários graus de completude do desenho, textos corrigidos... Como se a dificuldade em nos vermos a nós mesmos, todos os dias, do mesmo modo, fosse expressa por essas diferenciações internas, e o acto de nos rasgarmos de nós mesmos, para permitir que nos possamos ver “de fora”, se tornasse possível.
Seria um erro tremendo não partirmos da ideia de que Marco Mendes conhece bem a tradição em que se insere. Apesar da banda desenhada viver numa crise da sua própria memória, em que cada nova geração parece desenvolver-se na ignorância do que veio atrás, Marco Mendes pertence a uma outra nova geração, que se ocupa de uma recuperação, quer directa quer indirecta, de todo um rol de criadores, assim como ao estabelecimento consciente de linhas de desenvolvimento artístico muito próprias, retrospectivamente, mas também projectivamente, nas quais depois se inserirão estes mesmos artistas. Julgo que é claríssima a “família” aqui eleita, e a que se poderia dar o nome de autobiografia, com todas as certeiras certezas e igualmente os frágeis defeitos que tal nome implica. Logo, o cotejamento do trabalho de Mendes com o da linha americana que se estende de Justin Green, Harvey Pekar até aos mais recentes autores, e da europeia desde Moebius (um punhado de histórias curtas) ou Gotlib a Fabrice Neaud, não é de todo displicente, e obriga-nos a encontrar a sua especificidade e valor. As afinidades de Marco Mendes aproximam-no mais de autores como Joe Matt, pela forma como o autor-enquanto-personagem nos aborda directamente (puxando-nos de uma forma poderosa a que respeitemos o papel de narratário que nos é destinado) para ofertar com uma franquíssima exposição dos seus defeitos de toda a ordem (física, económica, profissional, amorosa, sexual...). Mas onde Joe Matt o faz empregando um tom de humor excessivo, quase de absurda caricatura, e para o qual concorre o seu estilo gráfico fortemente estilizado e devedor de uma produção infantil, e para que, segundo as boas regras retóricas da captatio benevolentiae, “perdoemos” essas confessadas imperfeições de carácter, Mendes não parece procurar o mesmo tipo de reacção. É certo que também este autor num momento ou outro emprega o humor (veja-se a capa de Carlitos) ou a metamorfose como forma de escape ao peso “real” que essas confissões assumirão, mas além se serem excepcionais, servem como veículo de uma abertura mais sincera, despojada mesmo de uma suposta empatia que pudesse vir a desenvolver-se. Mesmo as recriações pela ficção (de variadíssimos tons e naturezas) acabam por reforçar um baixo contínuo em todas as bandas desenhadas, que se nos aventa pertencer à melancolia, na verdade.
Torna-se assim mais perigoso num aspecto, que é o da ulterior confusão entre a vida e a arte. O que, por sua vez, se expressa de dois modos. O primeiro é o dos leitores, com maior ou menor ou inexistente intimidade com o autor Marco Mendes, levarem os acontecimentos retratados nestas estórias por um seu valor predicativo: “isto foi mesmo assim?”, parece apetecer perguntar. Não há resposta possível a esta pergunta, e mesmo que o autor avançasse com uma resposta – uma conversa descomprometida – estar-se-ia perante um erro categórico ou uma falácia. O segundo tipo de confusão é um repetido mote que surge aquando das críticas à autobiografia (mormente na banda desenhada) e que já algumas vezes debati, que reza que se não há muito a dizer na vida desse autor não suscitará interesse ele ou ela expressar esse “pouco”. O problema está em colocar um peso maior na ontologia do autor real que na capacidade e eficácia estética da obra; de certa forma, é idêntico ao primeiro problema, mas com consequências mais lesantes para a sua interpretação. No entanto, é precisamente esse perigo o que torna aliciante a sua leitura e consequente interpretação estética.
Lígia Paz (sua colaboradora em Carlitos, v. abaixo) escreveu um excelente texto sobre o seu trabalho, por ocasião da sua apresentação na galeria Plumba, no blog de Marco Mendes, ainda que dissolva precisamente a barreira última entre a sua intimidade com o artista enquanto pessoa e a leitura do seu trabalho, obra, a arte. A meu ver, e esta é uma posição que, espero tornar cada vez mais apurada, o trabalho crítico não deve incorporar jamais elementos que tenham uma proveniência externa à da própria obra. Não é difícil aceder a elementos dessa natureza, para começar, graças ao convívio directo com o artista, que tanto pode surgir da amizade como dessa aproximação jornalística, essa criação de uma comunicabilidade ilusória, e que dá pelo nome de “entrevista”.
Esta palavra, neste seu sentido moderno, precisamente jornalístico, surgiu a meados do século XIX e pelo inglês, mas a existência da sua forma verbal anciã, entrever, é já atestada desde o século XVI, e possivelmente relacionada com o francês. O seu significado oscila por “ver por entre”, “ver brevemente” (“entrevista num rápido olhar”, lê-se algures em Poe), e até mesmo “encontrar-se directamente com alguém”. O sentido jornalístico, desvirtuado ou tornado explícito no verbo entrevistar, nada tem a ver com essa realidade:
Em todo o caso, o texto de Lígia Paz não se reveste, nem o pretende, de uma natureza crítica absoluta, e deseja antes revelar o que da intimidade se pode despedir como pista de leitura. As suas palavras não nascem de uma entrevista nem de um entre-vistar, mas de uma supervisão, i.e., um “ver por cima”, e “para dentro” do autor, desdobrando desse interior linhas que se tornam texto. Há duas características sublinhadas, nesse texto, de importância máxima na apreciação do trabalho de Mendes: uma “sujidade gráfica” e a assunção de “pseudo-histórias”. Isto é, a narrativa acaba por não se concentrar em torno de um nódulo de significados, mas antes formar-se por acumulação das notas que se propõem sedimentar nestas curtas bandas desenhadas.
A concorrência da linguagem visual de Joe Matt para a construção do seu modo verifica-se igualmente em Marco Mendes (ou em qualquer autor, não me cansando de insistir nesta perspectiva que abalroa o desmembramento de uma obra em formas e conteúdos, não mergulhando na especificidade do modo como é transmitido). Ora a apresentação gráfico de Mendes, que bebe de uma figuração realista, anatomicamente correcta, competente, até mesmo virtuosa, complementada por toda uma série de estratégias de incompletude – as discrepâncias entre os traços a lápis visíveis e a passagem a tinta, os sumários riscos para dar conta de uma sombra, cor ou textura de um objecto, as correcções através da rasura, a presença de tinta correctora, a flutuação entre vários graus de execução de um desenho, os textos que extravasam os espaços que lhes seriam classicamente reservados, ou seja, tudo convergindo numa ideia una de “sujidade” e de “imperfeição” – tornam o tipo de relação estabelecida com o narratário como cindida, como que tornando o mais visível e intransponível possível a distância entre ambas as personalidades. Não pode jamais existir confusão. Onde interna e erroneamente poderia haver a ilusão de que não existiria uma fronteira entre a vida tangível e respirável que se vive todos os dias e aquela que apenas emerge e se desenvolve no interior da arte, e apenas ela se transmitindo, a obra desdobra este lado externo que apenas nos pode surgir como estranhamento.
Uma outra forma de entendermos esta estratégia – ao arrepio das “reais” condições de produção que, inanalisáveis e sem peso para uma interpretação estética – é aferir-lhe um valor espiritual ou, se tal vocábulo incomodar os que negam esse domínio inerente ao ser humano, existencialista. Existem variadíssimas tradições, um pouco por todo o mundo, de entregar ao mundo obras “imperfeitas” como forma de respeitar a transcendência ou, de novo desviando-nos por outros vocábulos, uma existência mais plena, mais profunda, mais acabada (que não nos é alcançável, que se torna fonte de angústia e movimento: fosse um cume atingível, não mais avançaríamos): ceramistas budistas, depois de tornearam um vaso perfeitamente redondo, impõem-lhe uma mossa ou curvatura antes da cozedura para que não seja “perfeita”; alguns dos povos ameríndios em torno do rio Amazonas chamam a esse canto do mundo “a parte que Deus não acabou”, revelando assim a um só tempo um contínuo work-in-progress e a presença divina, ainda; e quem sabe se as Capelas Imperfeitas não possuem um propósito mais exacto de perfeição tal como existem hoje, ou abrindo-se a outra natureza de perfeições (segundo uma lição de Fiama Hasse Pais Brandão)...
Uma outra forma de entendermos esta estratégia – ao arrepio das “reais” condições de produção que, inanalisáveis e sem peso para uma interpretação estética – é aferir-lhe um valor espiritual ou, se tal vocábulo incomodar os que negam esse domínio inerente ao ser humano, existencialista. Existem variadíssimas tradições, um pouco por todo o mundo, de entregar ao mundo obras “imperfeitas” como forma de respeitar a transcendência ou, de novo desviando-nos por outros vocábulos, uma existência mais plena, mais profunda, mais acabada (que não nos é alcançável, que se torna fonte de angústia e movimento: fosse um cume atingível, não mais avançaríamos): ceramistas budistas, depois de tornearam um vaso perfeitamente redondo, impõem-lhe uma mossa ou curvatura antes da cozedura para que não seja “perfeita”; alguns dos povos ameríndios em torno do rio Amazonas chamam a esse canto do mundo “a parte que Deus não acabou”, revelando assim a um só tempo um contínuo work-in-progress e a presença divina, ainda; e quem sabe se as Capelas Imperfeitas não possuem um propósito mais exacto de perfeição tal como existem hoje, ou abrindo-se a outra natureza de perfeições (segundo uma lição de Fiama Hasse Pais Brandão)...
Todas estas atitudes e comportamentos revelam de uma associação da imperfeição à escala humana a uma outra perfeição, mais além, e por isso mais justa. Ajudará este desvio a ler Marco Mendes melhor? Julgo que sim, pois essa suposta imperfeição gráfica fortalece a assunção destas imagens como isso mesmo, imagens, e não ilusões passíveis de entrada do leitor. Porque essa falta de um último gesto de acabamento revela um certo reconhecimento e até adopção ciente de uma impossibilidade de superar a angústia que nos pertence enquanto seres vivos, isto é, incompletos, entregues a buscas, à construção permanente de um caminho que se vai fazendo.
Assim é que a própria capa de Projecto para fecundar a lua, ocupada somente por um diálogo verbal transcrito manuscritamente, ganhe a cidadania de “imagem”: as correcções, as incertezas marcadas, as correcções por riscos, a estrutura de lápis que está “por baixo”, a conclusão negada (mas mesmo assim legível) prepara o terreno que se encontrará no interior: “Acredita. Senão não estaríamos aqui”.
Abandonando Marco Mendes à sua sorte, e de quem cuja verve se espraia uma das mais definidas, malgré lui, e fortes vozes da banda desenhada contemporânea portuguesa, abordemos os seus colaboradores.
Janus é um autor sobejamente conhecido nos círculos mais alternativos, tendo sido o seu Macaco Tozé, publicado em volume pela MMMNNNRRRG (2000) [desculpem, havia confundido com a Chili com Carne, como de costume] talvez uma porta de maior acesso a um maior público: é assim como que uma espécie de assombroso e cáustico fantasma que assalta quem não o conheceria antes e de repente se apercebe de uma presença fortíssima, despertando-se as mais intestinas paixões, que nem sempre passarão pela empatia. No entanto, onde parece o autor criar histórias padecentes das mais proverbiais “vascas da agonia”, profundamente existencial e quase niilistas, as questões que coloca deveriam obrigar-nos a pensar: “Como é que tu aguentas viver todos os dias, Marco?”, pergunta Janus-desenhado-por Marco-Mendes na contracapa de Projecto. “A rir, Janus”, responde Marco-Mendes-personagem. Janus, fazendo jus a esse nome emprestado, obriga à capacidade de olhar em ambas as direcções (sejam elas quais forem, que amamos dicotomias em todos os planos da existência), e Marco, entretanto e no interior de Projecto (e mais além) mostra a capacidade de distância, não só pelo riso, como vimos, mas pelos sucessivos desdobramentos, que lhe serve de resposta, mesmo que momentânea.
Provavelmente é essa, dizíamos, a qualidade máxima de Janus, a de provocar um incómodo em certos sectores que preferem bem vincadas as dobras mas menos visíveis as varizes. O seu traço é usualmente carregado, de uma densa trama e um uso imenso de manchas negras, e onde a figuração orla o grotesco e o virtuoso anatómico (ou melhor, é por utilizar o virtuosismo numa fronteira com a caricatura e a mistura de figurações – macaco/homem – que se torna mais grotesco), mas as três páginas com que participa em Projecto são esboços leves e rápidos, como se se tratasse de facto de um “diário rasgado”, apontamentos breves e feitos in prasentia dos acontecimentos, a saber, uma peregrinação domingueira por tabernas e cafés. Uma espécie de périplo substantivo, criando-se um ambiente e uma linha de acção que construiremos nós a seguir.
Abandonando Marco Mendes à sua sorte, e de quem cuja verve se espraia uma das mais definidas, malgré lui, e fortes vozes da banda desenhada contemporânea portuguesa, abordemos os seus colaboradores.
Janus é um autor sobejamente conhecido nos círculos mais alternativos, tendo sido o seu Macaco Tozé, publicado em volume pela MMMNNNRRRG (2000) [desculpem, havia confundido com a Chili com Carne, como de costume] talvez uma porta de maior acesso a um maior público: é assim como que uma espécie de assombroso e cáustico fantasma que assalta quem não o conheceria antes e de repente se apercebe de uma presença fortíssima, despertando-se as mais intestinas paixões, que nem sempre passarão pela empatia. No entanto, onde parece o autor criar histórias padecentes das mais proverbiais “vascas da agonia”, profundamente existencial e quase niilistas, as questões que coloca deveriam obrigar-nos a pensar: “Como é que tu aguentas viver todos os dias, Marco?”, pergunta Janus-desenhado-por Marco-Mendes na contracapa de Projecto. “A rir, Janus”, responde Marco-Mendes-personagem. Janus, fazendo jus a esse nome emprestado, obriga à capacidade de olhar em ambas as direcções (sejam elas quais forem, que amamos dicotomias em todos os planos da existência), e Marco, entretanto e no interior de Projecto (e mais além) mostra a capacidade de distância, não só pelo riso, como vimos, mas pelos sucessivos desdobramentos, que lhe serve de resposta, mesmo que momentânea.
Provavelmente é essa, dizíamos, a qualidade máxima de Janus, a de provocar um incómodo em certos sectores que preferem bem vincadas as dobras mas menos visíveis as varizes. O seu traço é usualmente carregado, de uma densa trama e um uso imenso de manchas negras, e onde a figuração orla o grotesco e o virtuoso anatómico (ou melhor, é por utilizar o virtuosismo numa fronteira com a caricatura e a mistura de figurações – macaco/homem – que se torna mais grotesco), mas as três páginas com que participa em Projecto são esboços leves e rápidos, como se se tratasse de facto de um “diário rasgado”, apontamentos breves e feitos in prasentia dos acontecimentos, a saber, uma peregrinação domingueira por tabernas e cafés. Uma espécie de périplo substantivo, criando-se um ambiente e uma linha de acção que construiremos nós a seguir.
Quanto às prestações de Lígia Paz em Carlitos, as regras são dadas pela própria autora. A confissão de que já não desenha há sete anos, e que esse interregno demonstra como a banda desenhada não lhe serviria de modo de fuga, transfiguração ou catarse às suas crises, torna-se o próprio mote para a fraqueza com que tudo isso é assim dito. Talvez a última aventura na banda desenhada tenha sido a que se encontra na antologia da Mutate & Survive (Chili com Carne). Se assim o for, é portanto claro que a metamorfose não se deu, uma metamorfose interna, à autora enquanto “de banda desenhada”, claro está, que lhe permitisse uma sobrevivência dessa linguagem em si mesma. O seu despertar, que se acredita com Carlitos, é no entanto lento e algo displicente, apalpando vários terrenos de humor, direcções e grafismos que se poderão vir a desenvolver na força que se vê conter, mas que, lá está, ainda contida ficou nestas páginas (mas encontram-se as pontas das obsessões, o problema da auto-figuração/representação, a transformação de sintomas em marcas de uma vontade de expressão...). Mas mesmo com o “poster central”, mergulhando numa oferta generosa pela sexualidade mais livre, não se coaduna com essa outra natureza de força de que se anseia ver a voz da autora. A sua auto-limitação pela justificação não é suficiente para a fortalecer.
Faz parte, portanto, da política de Marco Mendes esta convivência com os outros (já presente na sua acção de editor com Miguel Carneiro, nos vários fanzines do colectivo portuense A Mula), uma entrega total à amizade e à liberdade. Pode-se, de facto, fazer-se o que se quiser, e este diálogo estranho entre duas personalidades que partilham vidas (informações internas às história, não a um biografismo externo, no caso de Carlitos) ou afinidades (no caso de Projecto) faz com que se prove a certidão de um ditado como “o amor é cego”, permitindo-se que dois, três ou mais territórios se mesclem, que percam entre si as fronteiras, lá onde um outro tipo de policiamento – gráfico, temático, político, outros – preferiria delimitá-las claramente.
Faz parte, portanto, da política de Marco Mendes esta convivência com os outros (já presente na sua acção de editor com Miguel Carneiro, nos vários fanzines do colectivo portuense A Mula), uma entrega total à amizade e à liberdade. Pode-se, de facto, fazer-se o que se quiser, e este diálogo estranho entre duas personalidades que partilham vidas (informações internas às história, não a um biografismo externo, no caso de Carlitos) ou afinidades (no caso de Projecto) faz com que se prove a certidão de um ditado como “o amor é cego”, permitindo-se que dois, três ou mais territórios se mesclem, que percam entre si as fronteiras, lá onde um outro tipo de policiamento – gráfico, temático, político, outros – preferiria delimitá-las claramente.
11 de janeiro de 2008
LERBD no Público online - propósitos
A partir do dia de hoje, este passa a ser um dos blogs convidados do jornal Público online. É com agrado que vejo aqui uma oportunidade de rearranjar o espaço (por mais virtual que seja), e que talvez signifique igualmente uma espécie de novo alento, ao chegar talvez a outros leitores, e um outro tipo de diálogo (por mais silencioso que seja) em torno da banda desenhada.
Para aqueles que acompanham o blog lerbd desde meados de 2004, sabem que tipo de discurso se espera, que fantasmas se perseguem, que obsidiantes vontades se metamorfoseiam, se bem que esses discursos, fantasmas e vontades flutuem, se desdobrem e até mesmo aprendam a mover-se por novos (e melhores?) caminhos. Todavia, para aqueles que não conhecem, ou mesmo para tornar claros os objectivos do lerbd – claros em relação a este momento – permitam-me uma apresentação geral.
Este blog chama-se lerbd, porque o que quer trazer a público são textos sobre leituras de bandas desenhadas. Esses textos querem-se críticos, com todos os perigos e todas as forças que essa palavra acarreta. São textos que versam bandas desenhada lidas, isto é, em que elas surgem enquanto textos interpretáveis e que suscitam uma determinada leitura. Não encontrarão aqui notícias de lançamentos ou relativas a certames de banda desenhada, existindo muitos outros meios de comunicação excelentes para esse efeito. Não se trata, portanto, de uma abordagem jornalística, abdicando-se assim do seu efeito nutritivo e imediato, mas também da sua celeridade e redução ao fluxo informativo. Estes são textos relativamente longos e espaçados, nos quais pretendo tecer considerações que são suscitadas por livros efectivamente lidos, considerações que se desejam aproximar de disciplinas de saber a que se poderia dar o nome de História da Arte, ou da Imagem ou da Cultura, precisamente para poder inflectir-se retrospectivamente numa História da Banda Desenhada o mais ampla e consolidada possível, entendendo-a, assim, enquanto um modo de expressão e uma disciplina artística, um saber-fazer que reflecte algo do mundo e a ele pertence. Logo, até mesmo o nome "banda desenhada" não deverá ser entendido de um modo, digamos, imediatamente consensual: entendo-a como um espaço de fronteiras móveis, progressivamente inclusivas. É possível encontrar-se uma nota sobre um álbum de banda desenhada franco-belga numa sua tradução portuguesa por uma editora nacional que ocupe grandes fileiras de escaparates, mas será mais a excepção que a regra, não me cingindo apenas ao que é editado e publicado em Portugal, quer nos círculos comerciais (que muito menos levanta questões pertinentes sobre este modo de expressão) quer nos alternativos, mas atendendo onde possível a vários pólos de produção (mormente Estados Unidos e França, mas passando pelo Brasil, Espanha, Itália, ou onde as circunstâncias nos levarem – mas sempre esperando que a acessibilidade aos livros seja real, salvo excepções raras), sem quaisquer barreiras pré-concebidas de estilos, formatos, modos de edição, "escolas", linguagem, públicos-alvo... Tal não significa que pretenda fazer emergir uma teoria acabada, uma definição, ou ainda uma instrumentalização abstracta passível de se empregar em todo e qualquer texto de banda desenhada (todas metas impossíveis). Aliás, se as teorias existem, servem para ser ultrapassadas, apagadas pela seguinte, reaprendidas. Mas negá-las por princípio é negar-se um diálogo que apenas se fortalece pela positiva. Só se contraria o pensamento pensando para além dele. Se me permitem, faço minhas as palavras de Henri Bergson: "De resto talvez ganhemos com este contacto atento algo mais do que uma definição teórica – um conhecimento prático e íntimo, como o que nasce de uma prolongada camaradagem" (de O Riso). E permitam-me transformar estas palavras nas minhas (mais ainda), explicando o significado, ou repetindo-o, que cada uma destas expressões representa para mim, tendo em conta sobretudo o fim deste blog:
contacto atento – um círculo continuamente em expansão, sem fronteiras de género, de estilos, ou geográficas – apesar de se seguir uma regra implícita (nem sempre respeitada, convenhamos) de se falar de livros saídos no espaço dos últimos dois anos; não tendo como objectivo vender ou ganhar papel, não me sinto na obrigação de apenas falar do que é publicado em Portugal, que é pouco, e tendo a dar mais prioridade a projectos portugueses de edição independente do que das casas mais comerciais e "centrais", as mais das vezes de um interesse ou paroquial ou mesmo pobre em relação à verve desta arte em termos contemporâneos.
conhecimento prático – livros lidos; e insisto neste ponto; evitando cair em expressões formulaicas, num uso convencional da linguagem, que apenas falsamente se pretende passar por objectiva ou mais próxima de um consenso ("um traço seguro", "todos conhecem", "como toda a gente sabe", "um clássico", "genial", "magnífico", a menos que esmiúce o sentido que desejo transmitir com essas palavras). Bem pelo contrário, será antes através do pequeno desvio da linguagem, de uma metáfora que se pretende mais exacta que a linguagem diurna, de uma intricada explicitação de uma palavra, de uma expressão, de uma etimologia, para melhor as empregar no seu contexto preciso e ali e nesse momento, mergulhar na linguagem para dela nos servirmos melhor. É mais complicado, seguramente, mas nem sempre a via mais simples é aquela que leva a melhores resultados. E quem o diz, normalmente é porque pretende evitar que se descubram as armadilhas mais perniciosas que essa aparente "simplicidade" comporta: muros que se pretendem intransponíveis. Este convite à complicação é um convite a que se acompanhe um caminho, por vezes tortuoso, sem dúvida, mas que dá a volta a esses muros e nos faz chegar, cada vez mais perto, às planícies desejadas (mas jamais finalmente alcançadas, o que significaria o fim da interpretação de uma obra, isto é, a sua morte para o sentido, ou seja, a sua morte efectiva).
conhecimento íntimo – a intimidade é com as obras, pouco importa a pessoa do autor, no seu trânsito diário ou nos cruzamentos pessoais; se o autor gosta de cozido ou se tem uma cicatriz no joelho desde os onze anos pouco informa a obra, a menos que esses dados sejam transmitidos claramente no interior da obra (e se tornem pertinentes para a sua interpretação); a subjectividade do crítico existe sempre pois a sua voz apenas a ele lhe pertence e não a outrem; mas há formas de corrigir a subjectividade e uma delas é o caminho mais recto possível dos instrumentos críticos, e o fascínio ou os elos pessoais, intransmissíveis ao leitor, são precisamente o contrário, o caminho esquerdo que leva ao caos.
prolongada camaradagem – tampouco aqui se deve entender como uma espécie de intimidade que se transforma num muro em relação ao leitor, e muito menos de uma nostalgia de qualquer espécie. Trata-se de uma crença (que pode ser errada) de que ler-se muita e atentamente banda desenhada leva à emergência de um saber próprio que providencia ele mesmo os tais instrumentos reutilizáveis, e que ajudam à construção de um discurso crítico. Por isso, é muitas vezes avançada a criação de uma rede de referências (outros títulos, autores, estilos, "escolas")... Partindo-se do pressuposto que os leitores conhecem essas mesmas referências ou que têm capacidade, naturalmente, para as descobrir. Caso contrário, e para tudo o mais, é sempre deixada a oportunidade de deixar perguntas, fazer comentários, alertar para erros, debater uma perspectiva, contestar uma afirmação. Todos esses gestos são respondidos e agradecidos.
Bem-vindos, outra vez.
Para aqueles que acompanham o blog lerbd desde meados de 2004, sabem que tipo de discurso se espera, que fantasmas se perseguem, que obsidiantes vontades se metamorfoseiam, se bem que esses discursos, fantasmas e vontades flutuem, se desdobrem e até mesmo aprendam a mover-se por novos (e melhores?) caminhos. Todavia, para aqueles que não conhecem, ou mesmo para tornar claros os objectivos do lerbd – claros em relação a este momento – permitam-me uma apresentação geral.
Este blog chama-se lerbd, porque o que quer trazer a público são textos sobre leituras de bandas desenhadas. Esses textos querem-se críticos, com todos os perigos e todas as forças que essa palavra acarreta. São textos que versam bandas desenhada lidas, isto é, em que elas surgem enquanto textos interpretáveis e que suscitam uma determinada leitura. Não encontrarão aqui notícias de lançamentos ou relativas a certames de banda desenhada, existindo muitos outros meios de comunicação excelentes para esse efeito. Não se trata, portanto, de uma abordagem jornalística, abdicando-se assim do seu efeito nutritivo e imediato, mas também da sua celeridade e redução ao fluxo informativo. Estes são textos relativamente longos e espaçados, nos quais pretendo tecer considerações que são suscitadas por livros efectivamente lidos, considerações que se desejam aproximar de disciplinas de saber a que se poderia dar o nome de História da Arte, ou da Imagem ou da Cultura, precisamente para poder inflectir-se retrospectivamente numa História da Banda Desenhada o mais ampla e consolidada possível, entendendo-a, assim, enquanto um modo de expressão e uma disciplina artística, um saber-fazer que reflecte algo do mundo e a ele pertence. Logo, até mesmo o nome "banda desenhada" não deverá ser entendido de um modo, digamos, imediatamente consensual: entendo-a como um espaço de fronteiras móveis, progressivamente inclusivas. É possível encontrar-se uma nota sobre um álbum de banda desenhada franco-belga numa sua tradução portuguesa por uma editora nacional que ocupe grandes fileiras de escaparates, mas será mais a excepção que a regra, não me cingindo apenas ao que é editado e publicado em Portugal, quer nos círculos comerciais (que muito menos levanta questões pertinentes sobre este modo de expressão) quer nos alternativos, mas atendendo onde possível a vários pólos de produção (mormente Estados Unidos e França, mas passando pelo Brasil, Espanha, Itália, ou onde as circunstâncias nos levarem – mas sempre esperando que a acessibilidade aos livros seja real, salvo excepções raras), sem quaisquer barreiras pré-concebidas de estilos, formatos, modos de edição, "escolas", linguagem, públicos-alvo... Tal não significa que pretenda fazer emergir uma teoria acabada, uma definição, ou ainda uma instrumentalização abstracta passível de se empregar em todo e qualquer texto de banda desenhada (todas metas impossíveis). Aliás, se as teorias existem, servem para ser ultrapassadas, apagadas pela seguinte, reaprendidas. Mas negá-las por princípio é negar-se um diálogo que apenas se fortalece pela positiva. Só se contraria o pensamento pensando para além dele. Se me permitem, faço minhas as palavras de Henri Bergson: "De resto talvez ganhemos com este contacto atento algo mais do que uma definição teórica – um conhecimento prático e íntimo, como o que nasce de uma prolongada camaradagem" (de O Riso). E permitam-me transformar estas palavras nas minhas (mais ainda), explicando o significado, ou repetindo-o, que cada uma destas expressões representa para mim, tendo em conta sobretudo o fim deste blog:
contacto atento – um círculo continuamente em expansão, sem fronteiras de género, de estilos, ou geográficas – apesar de se seguir uma regra implícita (nem sempre respeitada, convenhamos) de se falar de livros saídos no espaço dos últimos dois anos; não tendo como objectivo vender ou ganhar papel, não me sinto na obrigação de apenas falar do que é publicado em Portugal, que é pouco, e tendo a dar mais prioridade a projectos portugueses de edição independente do que das casas mais comerciais e "centrais", as mais das vezes de um interesse ou paroquial ou mesmo pobre em relação à verve desta arte em termos contemporâneos.
conhecimento prático – livros lidos; e insisto neste ponto; evitando cair em expressões formulaicas, num uso convencional da linguagem, que apenas falsamente se pretende passar por objectiva ou mais próxima de um consenso ("um traço seguro", "todos conhecem", "como toda a gente sabe", "um clássico", "genial", "magnífico", a menos que esmiúce o sentido que desejo transmitir com essas palavras). Bem pelo contrário, será antes através do pequeno desvio da linguagem, de uma metáfora que se pretende mais exacta que a linguagem diurna, de uma intricada explicitação de uma palavra, de uma expressão, de uma etimologia, para melhor as empregar no seu contexto preciso e ali e nesse momento, mergulhar na linguagem para dela nos servirmos melhor. É mais complicado, seguramente, mas nem sempre a via mais simples é aquela que leva a melhores resultados. E quem o diz, normalmente é porque pretende evitar que se descubram as armadilhas mais perniciosas que essa aparente "simplicidade" comporta: muros que se pretendem intransponíveis. Este convite à complicação é um convite a que se acompanhe um caminho, por vezes tortuoso, sem dúvida, mas que dá a volta a esses muros e nos faz chegar, cada vez mais perto, às planícies desejadas (mas jamais finalmente alcançadas, o que significaria o fim da interpretação de uma obra, isto é, a sua morte para o sentido, ou seja, a sua morte efectiva).
conhecimento íntimo – a intimidade é com as obras, pouco importa a pessoa do autor, no seu trânsito diário ou nos cruzamentos pessoais; se o autor gosta de cozido ou se tem uma cicatriz no joelho desde os onze anos pouco informa a obra, a menos que esses dados sejam transmitidos claramente no interior da obra (e se tornem pertinentes para a sua interpretação); a subjectividade do crítico existe sempre pois a sua voz apenas a ele lhe pertence e não a outrem; mas há formas de corrigir a subjectividade e uma delas é o caminho mais recto possível dos instrumentos críticos, e o fascínio ou os elos pessoais, intransmissíveis ao leitor, são precisamente o contrário, o caminho esquerdo que leva ao caos.
prolongada camaradagem – tampouco aqui se deve entender como uma espécie de intimidade que se transforma num muro em relação ao leitor, e muito menos de uma nostalgia de qualquer espécie. Trata-se de uma crença (que pode ser errada) de que ler-se muita e atentamente banda desenhada leva à emergência de um saber próprio que providencia ele mesmo os tais instrumentos reutilizáveis, e que ajudam à construção de um discurso crítico. Por isso, é muitas vezes avançada a criação de uma rede de referências (outros títulos, autores, estilos, "escolas")... Partindo-se do pressuposto que os leitores conhecem essas mesmas referências ou que têm capacidade, naturalmente, para as descobrir. Caso contrário, e para tudo o mais, é sempre deixada a oportunidade de deixar perguntas, fazer comentários, alertar para erros, debater uma perspectiva, contestar uma afirmação. Todos esses gestos são respondidos e agradecidos.
Bem-vindos, outra vez.
A entrada deste blog pode fazer-se a partir de agora ou pelo caminho habitual: http://lerbd.blogspot.com/, ou através da edição online do Público: http://blogs.publico.pt/lerbd/
Nota: agradecimentos a Sérgio Gomes, Mário Cameira e Hugo Castanho, do Público online, pelo convite, insistência e rearranjo gráfico do blog.
Nota: agradecimentos a Sérgio Gomes, Mário Cameira e Hugo Castanho, do Público online, pelo convite, insistência e rearranjo gráfico do blog.