
A escritora Ursula K. Le Guin escreveu um importantíssimo e influente ensaio intitulado “The Carrier Bag Theory of Fiction” (facilmente acessível na internet, e publicado em português como A ficção como cesta, pela Dois Dias), que costumo usar e ler em aulas de argumento. É uma espécie de bálsamo e antídoto às inúmeras estruturações narrativas, ou fórmulas, que são empregues em circunstâncias idênticas, que preferem antes apresentar as lições de Joseph Campbell (o “monomito” ou, para quem engole a pílula, “ a jornada do herói”) ou dos inúmeros gurus de Hollywood scriptwriting, como os McKees, Snyders, Syd Fields, Hauges, Chamberlains, etc. Não quer dizer que estes estejam “errados”, de forma alguma, mas tão-somente que, e como escreveu alguém, não fazem mais do que serem notas de rodapé de Aristóteles, o qual, com a Poética, fundou toda a narratologia ocidental, para bem ou para mal. O “mal”, neste caso, está em que a esmagadora maior dos escrevinhadores apenas se preocupam com a inexorável seta da intriga, da resolução do problema, e da centralidade absoluta do herói-função, e menos num moldar de pessoas. (Mais)
Daí, as lições de Le Guin. De uma forma parafraseada e simples, a autora propõe, em vez de narrativas tão lineares e obcecadas com o mecanismo repetido de acção-consequência, pensar antes na possibilidade de uma escrita mais deambulante, que vá coleccionando objectos de atenção, fios de ligação, relações entre as personagens-pessoas e, assim, acabe por se parecer um qualquer tipo de contentor: garrafa, saco, bolsa, cesta.
A razão pela qual inicio este texto com tal desvio “teórico” é porque me parece que a jovem autora, e estreante em livro, Beatriz Brajal, tem em A cada sete ondas um perfeito exemplo de uma narrativa que não se pauta pela febril ideia da “intriga”. Fruto do concurso Toma lá 500 paus e faz uma bd, da editora Chili Com Carne, a autora criou um livro pequeno, concentrado, com uma estrutura simples, mas que funciona como uma cesta cheia.
A estrutura é simples pelo seguinte: posso descrevê-lo como um momento na vida da protagonista, Bea (haverá, quiçá, possibilidades de enleios autobiográficos ou autoficcionais), em que se encontra no fim de uma relação amorosa, por dar início a uma nova. Ela está apaixonada por alguém, e esse sentimento invade todos os momentos, passados com uma outra personagem, com cabeça de solha, que pode ou não ser visto como o “antigo namorado”. Nem tudo é muito explícito, mas existe essa interpretação. Na verdade, a revelação do novo amor apenas surge no fim, e não exploramos essa relação sequer. É apenas no seu contraste, ou ainda não-cumprimento, que informa todos os momentos anteriores.
Bea e o homem-solha (sem nome no livro) passam um dia juntos: estão numa esplanada, depois leem no jardim (não sendo de todo importante, habitantes de Lisboa reconhecerão os cantos), dançam e deitam-se à sombra das árvores, e finalmente participam numa qualquer performance – drama teatral, espectáculo de dança, vídeo-clip, baile de máscaras, concurso, procissão? Nesse convívio, falam, descobrem-se, e é sobretudo ele que, atento observador, nota nas transformações íntimas dela. A expressão da paixão surge de formas fantasiosas e físicas, tangíveis.
O livro abre com um spread cheio de pequenos objectos – bilhetes de concerto, passe de transportes públicos, flores secas, um entreçado de papel, uma fita de um qualquer evento cultural – que me recorda o ciclo do “Petit archivage d'une culture quotidienne” de Fabrice Neaud, mas dispensando os comentários e até a ordem. Mais tarde, na despedida do homem-solha de Bea, aquele oferece-lhe uma mão-cheia de objectos, que explica um por um as funções que eles devem cumprir no futuro dela: um pistáchio na casca “para dares a alguém”, 10 cêntimos “para comprares uma pastilha Gorila”, uma bolacha Maria “caso tenhas fome”, um penso rápido “para os teus joelhos”, etc.
Todos estes objectos foram sendo colectados e juntos nesta “cesta” ficcional. São sinal de uma vida individual, levada a cabo dos dias, mas também poderão ser memento mori de uma relação passada, ou sementes de uma relação futura. E obrigam-nos a olhar, com atenção, à forma como a artista cria densas paisagens interiores em torno das suas personagens. As páginas flutuam entre composições cheias e composições mais vazias, mas há sempre um peso e medida constantes dos corpos. Uma concretudo, graças ao seu desenho estilizado mas sólido, de linhas e proporções elegantes, mas que permite os seus estranhos desvios misturando seres humanos com outras realidades: animais, vegetais, estelares.
Há uma outra característica da autora que está presente neste livro, e em muitos dos seus outros trabalhos criativos (ilustrações, zines, desenhos isolados, posters – e que serão alvo da sua participação na Fólio BD/Flexágono deste ano no Festival Fólio), que é a “candura”. Não tenho outra palavra. A sua figuração, a maneira como ela mostra corpos tocando-se, apenas uma mão no ombro, os olhos fechados olhando-se (não é erro), uma expressão, um pequeníssimo sorriso, são desconcertantes na maneira bela como tocam os sentimentos dessas personagens e, logo, a nossa capacidade de leitura dos mesmos sentimentos. Até mesmo a nudez, ou os momentos em que as personagens se mostram vulneráveis, não têm como intuito a titilação sexual, mas antes o demonstrar simplesmente a fragilidade humana. O homem-solha não está “nu”, está antes desprotegido, aberto, sensível, à dor que vai sentido e que expressa de maneira tranquila, libertando Bea e revelando-lhe, a ela, a paixão que nasce nela, por outro.
O livro, impresso em offset, tem duas “metades cromáticas”, começando com um esquema de cores e depois passando a outro, mas deixando excepções significativas. A cor torna-se assim um factor de leitura importante (algo como no Asterios Polyp de Mazzucchelli) que convém não descurar.
O título, curioso, permanece algo obscuro. Um ciclo? Uma expectiva? Um momento? Seja o que for, porque não aproveitar somente a sua sensação, em vez de nos preocuparmos com respostas fechadas?
Nota: agradecimentos à artista, pela oferta do seu livro. O mesmo será lançado oficialmente no próximo Sábado, dia 27, na livraria-galeria Tinta nos Nervos, com uma mostra dos seus originais.



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