21 de outubro de 2025

Estância do sino coberto. Diniz Conefrey (Quarto de Jade)

Este novo livro de Conefrey é, a um só tempo, uma obra extraordinária de avanço como cria ligações a uma tradição da banda desenhada quase convencional. Com efeito, poderíamos começar com comparações a terrenos familiares, como o da banda desenhada “de aventura” por paisagens e mundos exóticos, à la Jonathan, de Cosey (uma espécie de Tintin hippie), no caso atraindo-se pela cultura mística do budismo indiano. A matéria de trabalho é dupla: a viagem que o monge chinês Xuanzang fez desde a China, pelas montanhas à volta da bacia do Tarim, descendo por Samarcanda, para se enveredar pela Índia à procura de escritos budistas, de forma a levá-los para o seu país, no século VII, e a de Nora, uma mulher ocidental na Índia contemporânea, talvez escapando de uma armadilha inefável da sua vida cansada.

Xuanzang é conhecido, de forma muito enviesada, pelos leitores de banda desenhada. Esta personagem histórica, real, de extrema influência, levaria à escrita de um dos mais celebrados clássicos da literatura chinesa, o A viagem ao Ocidente, no final do século XVI: de uma forma dramática e alegórica, mescla a realidade histórica e até alguns documentos com um rol de fantasia insuperada, como por exemplos os companheiros do monge, sob a forma do porco Zhu Bajie, o monge-demónio Sha, um cavalo-dragão e mais um ajudante que acaba por se tornar a personagem principal e mais conhecida: o rei-macaco, expulso do céu pelo seu comportamento, Sun Wokong. Sim, o Dragon Ball vem beber a esse clássico.  (Mais) 

Mas o livro de Conefrey não se veste de uma sequer peça leve de fantasia, falsa familiaridade, exoticismo e orientalismo de baixa espécie, ou explorações superficiais. Trata-se com efeito de um mergulho cuidado, íntimo, apurado e tranquilo nos ensinamentos dessas doutrinas. Mais especificamente, Xuanzang apresentou uma nova interpretação da doutrina Yogacara, uma das escolas do Budismo Mahayana, que medrou na China graças não apenas ao seu carisma pessoal mas pelo apoio imperial (sigo as lições de um livro de Benjamin Brose sobre Xuanzang, que muito me informou sobre este tema). Explicável como uma doutrina de meditação que faz compreender o poder da consciência e de que como o mundo emana da mente, e não da mera percepção da ilusão externa. Nada tem isto a ver com um certo solipsismo, mas antes que o que é conhecido passa pela mente, numa espécie de fenomenologia avant la lettre, e que influenciaria o budismo na China, Japão e Coreia. Parece-nos este princípio – como a consciência constrói a experiência a cada momento – informará, como veremos, a maneira como o autor burila o seu livro.

A estruturação do livro tem breves desafios. Fisicamente, é um livro que, na maioria das suas páginas, deve ser lido pela faixa superior, através das páginas, e depois a faixa inferior. Logo, não podemos falar de composições “por prancha”, mas “por spread”. Perguntamo-nos se essa decisão formal terá alguma relação com a materialidade dos rolos horizontais budistas implicados na narrativa (muitos dharani levados por Xuanzang encontram-se preservados ainda hoje, em múltiplas versões), mas poderá haver outras razões, como as expressivas, buscando por um outro tipo de fluidez. Mas se se pensar que há uma busca por uma qualquer linearidade, ela poderá ter a ver com a força de movimento de um rio, mas de todo com a unidade tranquila de um regato. Pois outro desafio está nas próprias frases, que vacilam entre a história de Xuanzang – o primeiro protagonista, se assim podemos dizer – contada na terceira pessoa, e depois na primeira pessoa por um dos seus companheiros indianos de viagem, desembocando na primeira pessoa de Nora – a segunda protagonista? –, e logo depois o recontar na terceira pessoa dessa mesma aventura.



Porquê lançar-se a tal “confusão”? Se não ficarmos presos às mesmas fórmulas herdadas desde a modernidade do romance burguês e unifacetado, e nos recordarmos de tantas experiências de narrativas “não-naturais” (um termo consagrado na narratologia), podemos compreender que esta exploração de Conefrey se aliará profundamente às lições fundamentais do budismo, como as da natureza ilusória do si e da identidade, a profunda interdependência entre todos os seres (não necessariamente “vivos”) e a própria ontologia do tempo e da consciência, não-linear e cíclica. Não é que a viagem de Nora seja, de todo, “um retraçar dos passos” de Xuanzang pela Índia. Raras vezes, se alguma vez, nos aperceberemos do interesse engajado de Nora pelo monge chinês e a sua missão. Ela visita alguns dos mesmos locais pisados por ele, mas não há outro desdobramento (e livremo-nos de cair na tentação de fantasias patetas de “reincarnações” em literatura ou coisas quejandas).

Penso que o autor pretende demonstrar com essas fragmentações e passagens a fluidez da identidade, a da participação cármica de todos os seres uma consciência una e contínua: Xuanzang e Nora, por mais diferentes que nos pareçam, são ecos de um mesmo fundo. A própria viagem de Xuanzang não é apresentada de uma forma enciclopédica e ordenada, não existem diálogos e contextos diáfanos. Apercebemo-nos de uma vida anterior de Nora, e um impacto no final do livro, mas não há qualquer intriga fechada, unívoca e “satisfatória”, de um ponto de vista aristotélico. É assim que vemos a matéria verbal como um constante fluir que, aqui e ali, como o borbulhar das águas, e o modo como elas respondem à diferente orografia que atravessam, nos dão a ver aspectos desta ou daquela viagem, desta ou daquela personagem, deste ou daquele momento no tempo, mas em que tudo se subsume a uma única corrente.

Esta fluidez encontrar-se-á claramente traduzida igualmente nas imagens. Através de diversas técnicas para além da linha sobre a superfície, exploram-se colagens (claramente distintas pelas texturas dos papéis empregues, as sombras das camadas), variadíssimos modos de aplicar os materiais riscadores, explorações cromáticas diferentes, em “secções” ou “momentos” ou “trechos” muitas vezes criando linhas ou manchas que transitam de uma vinheta a outra, sempre buscando uma inconsútil passagem e continuidade.



Alia-se a isso uma exploração vegetal, vivaz, da língua portuguesa, criando tessituras densas de referências e linguagem, devedoras a um impressionismo, ou aproximando-se de um pós-surrealismo matizado pela concretude dos objectos, como em Herberto Helder, a quem Conefrey havia respondido com várias explorações dos textos do poeta. Se há frases que poderão tornar-se quase impenetráveis por não dominarmos os termos em si, elas podem ser lidas como tendo uma poética própria que desabrocha precisamente no espaço entre ignorância (nossa) e a futura aprendizagem.

A título de exemplo: «Repleta de flores champaka, perto de uma stupa em ruínas. A cidade fica na confluência do rio Ganges e Yamuna e é aqui que a minha peregrinação termina. Deixei tudo para trás, em busca daquele a que me ligarei pelo mantra; sadhu, asceta das cinzas». Se lermos Santo Agostinho, haverá passagens similares, ainda que com objectos e palavras familiares, mas a sensação vibra num mesmo sentido (v. “O solilóquio do amor”, cf. “Eis que estavas dentro de mim, e eu lá fora, a te procurar!”).

Esse uso judicioso da linguagem transita entre todas as sensações – temperatura, odores, sons, coloridos, densidades dos caminhos, histórias dentro da história – para desembocar num sentido (ele próprio debatido, delido, transposto) intenso. Leia-se a seguinte passagem, onde se pode suspender “o que quer dizer” em nome de “aquilo que é dito como é dito”: «Por uma voz que se tinge de palavras, montanha do mundo. E um eco desce abaixo das águas escuradas à sua volta, passa por um estreito de ampulheta e da base retorna ao centro polar, rodeado pelo oceano cativo na vasta largura de um fosso profundo.»

Esta passagem segue-se imediatamente à (nossa) despedida do monge chinês, regressado à sua terra e dedicando-se ao estudo e tradução dos escritos que trouxe, e que seriam tão influentes na Ásia Oriental (por exemplo, é dessa longa tradição que surgirá o Tripitaka coreano, um dos mais antigos objectos da história da prensa no mundo). Já nas últimas páginas do livro, está antes da última visita de Nora às ruínas da antiga universidade-mosteiro de Nalanda, no noroeste da Índia, e grande centro de saberes e aprendizagem a partir do século V, visitado por Xuanzang; segue-se uma notícia dramática para Nora, espoletando uma secção do livro que se abandona a estruturas abstractas e fluidas, e a uma espécie de dissolução de Nora no sonho.

Por momentos, lembra-me a parte final de A morte de Virgílio, de Hermann Broch, na qual se tecem frases fluídas e rítmicas, alucinatórias e inefáveis, na qual a sintaxe quebradiça e em crise dá conta da dissolução do ego, da impermanência do si, de uma perspectiva cósmica que abraça o indivíduo numa massa maior. Naturalmente, Broch explora uma metafísica ocidental, ao passo que Conefrey mergulha explicitamente num cadinho do budismo, acompanhado por comentários – na boca das personagens, mas não só – que visa uma crítica ao materialismo e a sofreguidão consumista da cultura europeia/ocidental. Será esse um outro assunto aqui presente e que é de extrema importância na leitura deste livro, corrigindo as nossas palavras iniciais: não é uma “aventura” no sentido de ser uma seta de intriga sempre a avançar linearmente e com pressa de chegar ao fim, à “moral da história”, ao “significado”; mas um convite a ler de outra maneira, de um ler permanentemente atento, de um reler, de um ler nova mas diferentemente, de ler noutra direcção, de compreender que a leitura não cessa nunca e se entrosa com tudo o que nos rodeia.

O autor publicou um outro pequeno livro, “ao mesmo tempo”, de prosa poética, pela Companhia das Ilhas. O título coincide com o desta banda desenhada, assim como o assunto (a “diegese”?), e até as palavras. Ler este E
stância-prosa é ter acesso a uma corrente da matéria verbal desassociada das imagens gráficas buriladas e compostas na Estância-banda desenhada. De modo superficial, poderíamos dizer que temos acesso a “mais história”? Talvez. Pequenos acentos e pormenores da intriga e da psicologia e gestos dos protagonistas. Mas essa não é necessariamente uma mais-valia na leitura dupla. A escavação das apenas-palavras não tem a mesma ambiência ou toque do que as palavras-nas-imagens.

Este gesto de publicação dupla não é propriamente inédito. José Luís Peixoto publicara um romance e um ciclo de poemas co-relacionados com Uma casa na escuridão (romance) e Uma casa, a escuridão (poemas); ainda o mesmo autor e os Moonspell haviam colaborado no objecto duplo disco/livro com Antidote/Antídoto. Poderíamos falar ainda do romance “revisto” de Marguerite Duras O Amante sob a forma de O amante da China do Norte, ou os desdobramentos sucessivos da Trilogia de Nova Iorque de Paul Auster. Exercício de comparação sem fim se nos enveredarmos pela música, cinema e artes visuais. Mas o que Conefrey faz aqui não pertence à esfera da variação ou revisão, nem sequer de uma “arqueologia de trabalho” – em que poderíamos ler a prosa como o esforço primitivo das “ideias” e “matéria verbal” depois “adaptada” à banda desenhada. Julgamos que se tratará de um gesto paralelo, necessário, imposto, de carregar ora na lavra da banda desenhada ora na da prosa poética de um mesmo ímpeto de resposta às solicitações da semente.

Em suma, viagens.

Nota final: agradecimentos ao autor, pela oferta de ambos os títulos.

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