30 de agosto de 2006
Art Out of Time. AAVV; Dan Nadel, ed. (PictureBox Inc./Abrams)
Se Masters of American Comics (MAC) é um modelo excelente para a representação de nomes incontornáveis, inabaláveis na banda desenhada norte-americana, Art Out of Time (AOT) é o seu perfeito contraponto: a re-apresentação, logo, uma forçosa re-apreciação de, como diz o subtítulo, “”visionários desconhecidos da banda desenhada”. A escolha é feita por Dan Nadel, incansável editor de títulos como a Ganzfeld, e da empresa que nos trouxe B.J. and da Dogs, e recai num grupo de 29 artistas de banda desenhada cujo trabalho acaba por não surgir de forma central nas Histórias oficiais, ou nas antologias mais famosas e recentes, mas que mereceriam uma atenção mais viva, graças aos aspectos que Nadel vai sublinhando.
Em MAC, revisitavam-se artistas famosíssimos e cuja obra está, de uma forma ou outra, acessível; logo, importava mais mostrar uma panorâmica e um mergulho visual em materiais inéditos, esboços, arte original, material adicional, etc., acompanhados que eram por textos críticos, explicativos, contextualizadores ou dialogantes. No caso de AOT, uma vez que se está a falar de obras ou trabalhos cuja acessibilidade não é a mais fácil, havendo mesmo casos em que se reedita pela primeira vez, faz sentido a estratégia de edição pessoalíssima de Nadel: a elaboração de cinco capítulos ou temas agregadores, com brevíssimos textos introdutórios, a apresentação de histórias completas (no caso dos comic-books) ou de várias pranchas (no caso das Sunday pages), e pequenas biografias compreensivas no final do volume.
Alguns dos autores já haviam sido alvo da atenção de editores criteriosos ou atentos, como no caso de Charles Forbell com o seu Naughty Pete, C.W. Kahles e Hairbreadth Harry, Harry J. Tuthill e The Bungle Family, ou os Jingle Jangle Tales, de George Carlson, respectivamente presentes os três primeiros na antologia Smithsonian de Newspaper Comics (1977) e o último na de Comic-Book Comics (1981), ou ainda Gustave Verbeek, alvo de várias edições, ora de pequenas selecções em relativamente obscuras inclusões britânicas e brasileiras, mas de quem a Pierre Horay fez a edição completa (julgo) de The Upside-Downs of Little Lady Lovekins and Old Man Muffaroo, talvez as primeiras bandas desenhadas totalmente reversíveis (temos de virar as pranchas ao contrário para ler a segunda metade da história) e geniais (não emprego a palavra em vão) exercícios oubapiannos avant la lettre. Outros nomes que não despertarão tanta surpresa serão os de Milt Gross, cujo He Done Her Wrong foi republicado recentemente (mas que nos dá a conhecer essoutra faceta) ou o de Rory Hayes, que ao mesmo tempo calma e tempestivamente fazia parte da cena da cena do underground (cf. Bob Levin). Mas tudo o resto são trabalhos que merecem ser redescobertos pelos que já conheciam, descobertos pelos que não, vistos e apreciados por todos. Uma aventura formalmente naif no Oeste do White Boy (sim, é a sério!) por Garrett Price, o estranho mundo de The Wiggle Much de Herbert Crowley (com o seu aspecto de friso medieval, que aqui se exemplifica), o absolutamente absurdo Herbie de Ogden Whitney (que em muitos aspectos farão recordar os Hernandez Bros., sobretudo Gilbert/Beto) ou a estranha invenção e convergência de estratégias nas pranchas de Hickory Hollow Folks de Walter Quermann, criam uma viva vontade de ter acesso a mais trabalhos destes artistas.
As barreiras temporais, entre 1900 e 1969, prendem-se com a necessidade de estabelecer uma arbitrariedade que se torne pertinente; assim, estabelece-se o início num momento em que se pode afirmar com alguma maior segurança o que se pode considerar comics ou não, relegando essa discussão para outras plataformas (a própria Ganzfeld, por exemplo), e um final, com o underground (Hayes) que Nadel considera uma “revolução de paradigma”.
E pertinentes são de facto os temas: “Exercícios na exploração”, procurando-se pranchas cuja linguagem ainda não está sedimentada, logo abrindo caminhos vários de experimentação gráfica e narrativa; “Slapstick”, dedicado a alguns dos exemplos mais histriónicos do desbragado e da velocidade; “Acts of Drawing”, em que o simples prazer de desenhar está presente, mesmo que isso produza coisas com um aspecto terrivelmente naif (como a inexplicável aventura de Stardust, super-herói-cientista, de Fletcher Hanks); “Words in Pictures”, onde se apresentam autores cuja força está na narrativa criada, nos diálogos, na trama surpreendente; “Form and Style”, em que se reúnem as “jóias” da banda desenhada, aqueles autores que conseguem fazer cantar todos os seus elementos num supremo equilíbrio estético raramente alcançado (e é nesta secção que se encontra Verbeek).
Alguns dos trabalhos poderão parecer derivativos de outros mais famosos - e se tenha essa tornando a razão pela qual nunca mais foram alvos de atenção -, como no caso do The Explorigator, de Harry Grant Dart, por demais decalcado de Little Nemo de McKay, ou os de Bob Powell e de Howard Nostrand, que parecem poder ter sido escolhidos ao acaso de todos os títulos da E.C. Comics ou editoras imitadoras da época e contêm ecos (ecos é dizer pouco) de Eisner no seu trabalho (lendo a biografia aperceber-se-ão das razões)... Noutros casos, como no de Herbert Crowley, dever-se-á à sua série ter durado tão pouco tempo que acabou por não se sedimentar num contínuo imaginário do público. Todavia, a escolha de Nadel não deixa de fazer sentido, pois é explícita a razão que o levou a seleccionar estes trabalhos destes indivíduos, que possuem sem dúvida alguma especificidades singulares, as quais se tornam o cerne do prazer sentido na leitura e exploração do presente volume.
Um problema mais formal desta edição é que a reprodução das pranchas não é a melhor, em alguns casos impedindo uma maior apreciação do trabalho gráfico e, noutros, como no caso das pranchas de Herbert Crowley e de Charles Forbell, cuja leitura de textos se torna um exercício de esforço óptico nem sempre agradável.
Banda desenhada feminina no Courier International.
Existem outros canais de "divulgação" de banda desenhada bem mais competentes e felizes do que este vosso(pouco) humilde blog, mas de quando em vez surgem projectos cuja visibilidade não é de todo imediata, o que leva a estas breves notícias.
O Courier International é um jornal que dispensa apresentações, e muito menos comentários sobre o seu equilíbrio democrático de perspectivas sobre os assuntos do momento. Àparte o cabeçalho algo tolo da secção que equivale "banda desenhada" a "leitura de praia" e a dirigir-se aos autores como se ainda pensassem na banda desenhada como há umas belas décadas, o jornal passa a apresentar, desde o número da última semana de Agosto (73), quatro páginas inéditas de artistas mulheres de banda desenhada contemporânea.
A primeira escolha recai sobre Marjane Satrapi, apesar do compreensível ódio desta em relação à "ghettoização" no "mulherio", que apresenta curtas histórias com esta estranha personagem que aqui no cimo se apresenta (é mesmo um corte do jornal, e a tradução é da responsabilidade de Ana Cardoso Pires) . Antes da banda desenhada, apresenta-se um curto texto introdutório, sério, com afirmações de Satrapi muito contudentes e certeiras e iluminadoras da sua personalidade, como quando diz, em relação à preferência pelo desenho em relação a outras tecnologias - fala da adaptação de Persepolis à animação, mas estender-se-á a outros domínios - "O que a mão produz escapa ao tempo que passa".
Nota: agradecimentos a Cristina Henriques, que "fanou" este exemplar.
28 de agosto de 2006
Chimère. Mattotti (Coconino Press/Vertige Graphic)
Este título, da colecção Ignatz, não é mais do que a “repescagem” de um anterior volume de Mattotti, de 1997, intitulado L’Arbre du Penseur, da colecção Feu!, da Amok, que aliás a Ignatz praticamente mima. A diferença está em incluir agora mais 10 pranchas em relação à anterior edição. Se se trata de uma edição de um “work-in-progress” análogo ao de Baudoin com Le Chemin de Saint-Jean, ou se se trata de uma simples revisitação de um trabalho anterior com uma coda, não sei. Mas a primeira hipótese não é de todo displicente, tendo em conta na especificidade deste trabalho de Mattotti.
Estamos de volta (ou de lá não saímos?) do Mattotti de O Homem à Janela (Fenda), em que o estilo do italiano se sublima pelo emprego de finíssimas linhas a negro, que apenas auscultam os limites da “linha clara” para logo a adensar num barroco descomedido. Longe do uso generoso da cor como em Bruit du Givre, por exemplo, mas próximo da desmesura narrativa de um Tonino Guerra, começamos com uma abertura textual sobre uma árvore onde outrora um pensador existia, e onde o narrador-sonhador se coloca: abre-se assim o espaço de um sonho, seguro, mas que acompanha as metamorfoses sucessivas de todas as formas e entes do universo, de nuvens em homens, homens em flores, planícies em curvas de mulher, tempestades criadas pelo grito de um ciclope na prisão de um mago, árvores em aves de rapina, vítimas em nós de tinta perdidos nos labirintos dos bosques. Estes labirintos não são de todo inocentes, querendo recordar os exercícios de que Umberto Eco fala, sobre as possibilidades de nos entregarmos ao prazer de nos perdermos na ficção... Há um contínuo complicar e complicar-se e adensamentos de linhas que as torna a elas mesmo vivas e as verdadeiras protagonistas da eventual “estória” contida em Chimère (tornando assim o título o mais verdadeiro e honesto possível). Talvez ainda estejamos a ser testemunhas da transformação do velho “caderno de esquissos” num verdadeiro e coeso laboratório de afecções visuais e forças de sentido.
Babel. David B. (Coconino Presse/Vertige Graphic)
David B. é um daqueles nomes que se tornou absolutamente incontornável na banda desenhada contemporânea, mesmo à escala mundial, num espaço de tempo tão curto como pouco mais de dez anos. Um aspecto surpreendente da sua promoção e subida é que não se deve a pirotecnias baratas e bombásticas, mas pura e simplesmente a um prazer claríssimo que Pierre-François Beuchard (é esse o desdobramento e origem de parte do pseudónimo) transmite através das suas estórias. A maioria dos seus títulos trata-se de transcrições de sonhos, ou transformações destes em pequenos contos; é ainda autor de um punhado de álbuns mais comerciais nas grandes editoras francesas (mas não menos competentes, divertidos e bem-feitos), mas o grande destaque reside obviamente naquele que considero (e não estou sozinho, claro, nesta obviedade) ser a sua mais acabada e maior obra, L’Ascencion de l’Haut-Mal, um longo narrar sobre a epilepsia do seu irmão, mas que se imiscui pelas dobras da memória, os interstícios do imaginário partilhado e co-criado com o irmão (neste aspecto, a relação entre ambos é muito parecida com as de Edmond Baudoin e o seu irmão, conforme muitos dos seus títulos, entre os quais Piero, por exemplo), as linhas de fuga que as leituras e as preocupações estéticas e intelectuais do David B. actual projecta sobre o pequeno Pierre-François-personagem, etc.
A recente série Babel é uma espécie de convergência de todas as linhas de trabalho de David B. e o que parece ser uma espécie de subtítulo é mesmo claro sobre isso: “Histórias, mitos, memórias, sonhos”. Mas na verdade há mais linhas, e cruzamentos entre elas, como notarão nos subtítulos dos episódios internos a cada publicação. A busca por um programa torna-se complicada, já que ainda se poderá entender Babel como a continuidade de L’Ascension, mas em que se torna possível a invasão dos outros temas nesse tratamento da memória.
O projecto editorial nasce dos esforços combinados da Coconino Press/Vertige Graphic (ou seja também em italiano, e ainda editado em inglês pela Fantagraphics, em espanhol pela Sins Entido, em holandês pela Oog & Blik, e alemão pela Avant Verlag), na colecção Ignatz (que apresenta grandes afinidades com a colecção Feu da Amok, como se entende mais claramente com Mattotti). A mais-valia formal em relação a trabalhos anteriores de David B. (afora os trabalhos mais comerciais, como Les Chercheurs de Trésors) é, para já, o uso de cor, numa bela impressão a duas cores (com redes); uma capa envolvendo o livro (ou revista, se preferirem) a quatro cores e que apresenta ainda uma história curtíssima e completa nas badanas; e a integração de muitas fórmulas plásticas que David B. experimentara em L’Ascension: sobretudo a construção de pranchas “tabulares” de rostos compósitos com elementos díspares (apresenta-se um exemplo disso).
Estando nós ainda na publicação do 2º número, não se desenha, para já, uma maior coesão narrativa como a epopeia mnemónica sobre o irmão, mas estamos perante um exercício algo complexo de equilíbrio de continuidade entre e individualidade de cada episódio que poderá levantar novas questões formais em relação à narratividade na banda desenhada (analogamente ao Wimbledon Green, de Seth). Mas é bem possível que uma questão se mantenha como fio vermelho da série, cosendo e aproximando tecidos tão diferentes como “a família”, “o irmão”, “o imaginário infantil”, “as mitologias do crescimento”, etc. Essa questão, ou esse fio vermelho, é “o direito que temos às nossas próprias guerras”. A guerra, e a presença multímoda da morte, torna-se em Babel permanente e mutável, a um só tempo, como se fosse a sua própria natureza a que delineia a existência humana mais profunda e que aproxima os vivos uns dos outros.
Lucille. Ludovic Debeurme (Futuropolis)
É difícil ponderar com distância quais as consequências da presença de Ludovic Debeurme na cena contemporânea da banda desenhada, tendo em conta a relativa proximidade da maioria dos seus títulos, sobretudo este último, Lucille, também editado na nova vida da Futuropolis, tão desbastada por Menu.
Independentemente da sua longa carreira de ilustrador, cujas tipologias diversas estão presentes no seu Mes Ailes d’Homme (Éditions de l’an 2), uma colecção de desenhos livres e esboços, a produção de Debeurme é mais reduzida, com uma meia-dúzia de títulos, inclusive este mesmo. Parece-me que este artista, tal como muitos outros, faz parte de uma geração que vem imediatamente a seguir a uma geração de “inventores” ou de “instauradores” de novos processos ou mesmo linguagens, mas que ainda não trabalhando uma franca e vincada diferença, não se deixam à sombra dessoutras invenções, mas procuram com tranquilidade traçar o seu próprio espaço.
Na verdade, há uma série de características do estilo de Debeurme que me impedem de não fazer ligações com um outro artista, ligação que não deixa de ser evidente para quem conheça ambos: Chester Brown, sobretudo The Playboy e I Never Liked You. Em primeiro lugar terá a ver com a proximidade física, estilística, visual, da personagem-Lucille com a personagem desses livros indicados do autor canadiano. Mas isso seria superficial demais. A questão é que a própria estruturação das pranchas, em que as vinhetas não são mais delineadas senão através de espaços vazios que se adivinham, parecem ecoar aspectos de Chester Brown. Mas o próprio ambiente narrativo é análogo, e o ritmo também próximo: das mais de 500 páginas deste primeiro volume de Lucille, Debeurme consegue apresentar um interessante equilíbrio entre a lentidão (as vinhetas sem texto, a apresentação de espaços de contemplação, de “imagens ao longe”, de sequências de reacções das personagens, sonhos, de textos introspectivos, de separadores) e a rapidez (sequências de acção, pela simplicidade da escrita e do desenho, pela repetição rítmica de um rosto).
É verdade que Chester Brown trabalha no território da autobiografia, onde as memórias pessoais ganham uma nova dimensão quando ganham forma coesa e estanque numa procura singular, e Debeurme apresenta-nos aqui uma absoluta ficção (que nunca o é), onde seguimos a vida de uma rapariga, Lucille, e do seu primeiríssimo namorado, “Vladimir”. Mas ambos abrem-se para as feridas que o crescimento acarreta, de um foro sexual aqui, emotivo ali, da sede por independência e por respeito pela personalidade que cada vez mais se torna “única” e “própria”, as mais das vezes por oposição aos progenitores, ou aos mais velhos, mas que passa sobretudo pela crise de de repente um adolescente se sentir, pela primeira vez na sua vida, uma pessoa. Isto é, um ser humano com todas as suas contradições, fragilidades, incertezas e alegrias breves.
Lucille é a típica borboleta feia, que voga num clima confuso e ambíguo da sua personalidade que se desenvolve, que se vê feia e é julgada pelos outros, mas que subitamente pode encontrar um novo olhar num rapaz apaixonado, que descobre nela belezas que lentamente emergirão por si. Debeurme consegue alterar o aspecto de Lucille não só pelas suas transformações físicas (da idade, mas também da doença e da alimentação), mas em muitos casos acompanhando a percepção dos outros. Por vezes, é tão simples como alterar o modo como desenha as pupilas e os contornos dos olhos, mas é esse gesto que torna a protagonista num caso paradigmático do balanço entre a beleza e a falta de auto-estima de que é vítima, e como isso é possível ser tratado graficamente pelos desenhos.
Como disse, este livro apresenta-se como a “primeira parte”, apesar de ser em si uma estória perfeitamente redonda, em que as crises são resolvidas pelo par mais antigo do mundo e da existência humana, o amor e a morte. Mas se seguirmos a vida de Lucille, não será por Debeurme ter criado um espaço de curiosidade e de comercialização das expectativas, mas antes por nos ter aberto a alma desta sua personagem, nos dar a ver as suas francas feridas e ficarmos na esperança de as ver, a todas, sarar.
Japon 17. AAVV (Casterman)
Tenho que partilhar o entusiasmo que uma antologia desta natureza me suscita: é toda uma série de aspectos positivos que me fazem indicar esse movimento mais emotivo... desde o facto de ser um projecto bem conseguido que alia um interesse político-cultural (dos Institutos Franceses existentes no mundo; mas o que também nos poderia desviar para um “j’accuse!” de neo-colonialismo cultural – leia-se “dor de cotovelo”) à curadoria ponderada e estética de uma pessoa (Frédéric Boilet), passando pela capacidade dos eleitos em criarem participações muito bem conseguidas, a um só tempo simples e complexas. Está tudo muito bem explicado no texto de apresentação do projecto por isso a ele vos remeto. E sei que se prepara uma nova aventura, desta feita na Coreia do Sul.
O Japão é um país que suscita fascínios. E como já havia dito algures, o fascínio nasce sobretudo da ignorância, mas uma ignorância cujo fruto é uma sensação de maravilha, de espanto. Se se lerem todas estas histórias com atenção, reparar-se-á como as perspectivas dos “forasteiros” se complementam ou por vezes as ideias de um respondem ao fascínio de um outro; ou como contribuem para essa imagem ou a desmistificam as visões dos “nativos” ou ainda o exercício desconstrutivo de Sfar. Há ainda um culto próprio da auto-mistificação, como me parece ocorrer nas histórias de Hanawa (mas que não são mais do que uma continuação do seu trabalho em integrar a mitologia em imaginários mais pessoais) e de Moyoko Anno.
São vários os ecos ao texto de Roland Barthes sobre o Japão (O Império dos Signos), em que por vezes o próprio signo ganha corpo e vida de corpo (Crécy, mas também Guibert, Boilet, Neaud, Peeters e Schuiten, e até Igarashi). É ainda essa referência central da semiologia quem afirmou, a outro propósito, de algo que “se torna explicitamente desenho, torneado por um lado, totalmente vazio por outro” (L’obvie et l’obtus): e esta afirmação, agregando-se com toda uma tradição de origem chinesa, faz com que estejam presentes exercícios dos traços cujo vazio aponta à existência de mundos “cheios” (Matsumoto – de quem se apresenta uma prancha -, Little Fish). É nesse território que se tornam possíveis certas confluências (David Prudhomme) ou ainda inversões: a história de Emmanuel Guibert que transfigura a sua própria experiência nos ateliers que partilhou com colegas para um atelier do Japão dos anos 20, ou a de Étienne Davodeau, colocando-se a si mesmo como curiosa personagem secundária numa narrativa em primeira pessoa.
Outro aspecto interessante é que, não obstante as discrepâncias de estilos e aproximações presentes, desde pequenos momentos intimistas de memória como o de Taniguchi ou de Takahama a um outro tom mais desbragado como o de Aurélia Aurita, passando pelo exercício jornalístico-publicitário da dupla d’As Cidades Obscuras, a um episódio da epopeia diarística de Neaud, o total da antologia cria de facto uma viva imagem de uma série de japões, todos eles reais e todos eles inatingíveis, confirmando a perpétua estranheza que uma cultura que nos é tão distante e alienígena nos causa, mesmo que a atravessemos com os nossos próprios corpos, ou que se mantêm subitamente plasmada à nossa própria existência quando a julgávamo-la absolutamente desagregada de nós mesmos. Japon 17 não é o espaço para nos aproximarmos do Japão pelo pensamento lógico, mas é sem dúvida uma porta de apresentação pela sensação que nos suscitam estes artistas.
26 de agosto de 2006
L'Espignole. Edmond Baudoin (L'Association)
Enquanto a terceira versão (aumentada, work-in-progress) de Le Chemin de Saint-Jean não sai, eis que Baudoin apresenta um pequeno "desvio" do caminho principal, para nos falar de um canto singular, de ribeiros e cascatas, vegetação silvestre e a beleza a que nos habituou serem possíveis pela sua memória. L'Espignole é o rio da região de Villars sur Var, e este minúsculo livro fala dele.
É como se Baudoin traçasse um caminho para de imediato sair dele e nos deixar a nós trilhá-lo, como se nosso fosse. Maior generosidade que esta não existe nas mãos do artista.
Essence. Janusz e Gawronkiewick (Glénat)
Sinais, enigmas, palíndromos, capicuas, reflexos, rimas, puzzles, rebuses, signos, coincidências... são inúmeros os estratagemas formais com que a invenção humana tenta estabelecer ordem naquilo que de mais fugaz existe: a sua própria vida. São métodos de redução da existência que tentam fazer representar a presença de um significado final nas coisas do mundo, uma espécie de instalação teleológica no caos que constitui, no fundo, a vida de todos os dias.
Na banda desenhada não faltam experiências que empregam esses estratagemas o mais centralmente possível, tentando assim fazer mostrar essa “ordem por detrás” que nos escapa na realidade. Estas experiências podem surgir da forma mais simples, como já Töppfer em Docteur Festus havia utilizado duas vinhetas contíguas para representar a queda de um escadote cheio de homens e que acaba por desenhar um “v” na prancha, até exercícios mais complexos como o álbum Nogegon, de Luc e François Schuiten, ou vivendo em plena colaboração com os acontecimentos da acção, como o quinto episódio de Watchmen, de Moore e Gibbons, “Fearful Simmetry” ou muitos dos livros de Marc-Antoine Mathieu, ou então através de exercícios oubapiannos...
Essence, álbum de estreia da dupla polaca de Janusz e Gawronkiewicz, que ganhou o concurso Arte/Glénat, cujo prémio era a sua própria publicação, vive nessa veia de trabalho e investigação. A história parece nascer de clichés aparentes – o detective sem dinheiro, Otto, carregado de idiossincrasias e pouco mais, um Watson que o acompanha, não obstante ser uma ratazana albina – mas rapidamente nos apercebemos ter sido lançados num universo de referências no qual é o absurdo o que desenha os seus contornos: no qual um cientista inventou um método de liquidificar as obras literárias, tornando-as bebíveis; no qual um concurso ubíquo (ecos daquele em que participam os seus autores?) coloca as pessoas em busca do sentido da vida; no qual um gémeo deseja morrer como o seu irmão de nome invertido; no qual tudo parece conspirar para um sentido único e eventualmente alcançável no final, mas que acaba por ser terrivelmente banal ou, pior, invisível aos néscios (ou puros, se preferirem).
Uma das curiosidades efectivas deste álbum é que por existirem vários “fios” narrativos, que se cruzam e se sobrepõem, conduzindo a um intricado novelo (ainda que sem exageros, mantém-se a história numa legibilidade lacra e até clássica), existem também vários momentos de “desenlace”, até ao final-final, aberto, ou esburacado, pois o sentido (quer o da vida, quer o que se buscava no texto de Essence) é precisamente não o entendermos e continuarmos em busca de resposta... Uma “essência”: impalpável mas que se adivinha e nos move na sua direcção.
É muito tentador ver no estilo dos desenhadores uma espécie de conjunto de traços comuns com outros artistas da banda desenhada “de leste”, mas que podem ser tão díspares como o tristemente falecido Edvin Biuković (mais conhecido entre nós via E.U.A. com Grendel Tales: Devils and Deaths) ou Grabowski e Milosev (Daddy is So Far Away… We Must Find Him), se bem que um Comès também me parece ser um eco longínquo presente neste livro: um relativamente tipificado encontro entre o realismo e o exagero da caricatura, contornos nervosos para todos e quaisquer objectos, um generalizado ambiente enegrecido e cheio de informação (manchas, sombras, texturas), os espaços entre as vinhetas a negro aumentando o “peso” desse mesmo ambiente, o contínuo humor cínico do protagonista e o seu pragmatismo quase intolerável.
Se bem que este livro esteja protegido por lei de ser “liquidificado” pelo processo do “Boticário” que ele próprio anuncia, se o pudesse vir a ser transformado, penso que, pelas suas características indicadas e ainda pelas piadas espalhadas a cada página, levaria a um vinho pouco encorpado, mas de uma adstringência bem vincada, e um final que revelaria uma complexa combinação de perfumes diferentes.
Nota: agradecimentos a Nelson Dona, que me emprestou o livro.
21 de agosto de 2006
Mome [#s 2, 3 & 4]. AAVV (Fantagraphics)
Fica aqui uma brevíssima nota sobre os três últimos volumes desta antologia, de que já havia falado em termos menos entusiastas, não para repisar os mesmos argumentos - cuja factualidade se mantém até certo ponto - nem para me retratar das minhas afirmações. Simplesmente gostaria de frisar que, não obstante ser verdade de que Mome não é o espaço de experimentação gráfica e formal que se esperaria a um primeiro encontro - talvez movido por uma impressão de que os editores pugnariam por uma pequena revolução soft (v. aqui), mais próxima de L'Association do que da Frémok (em termos europeus)- ainda assim deverei confessar que as escolhas se têm mantido pela mesma família de valores, sem surpresas de maior, mas que criam, todavia, hábitos de leitura, uma esperança regular em ver ritmicamente estes mesmos autores com novas histórias.
Em primeiro lugar, e para explicar porque disse "até certo ponto" em relação à ausência de exercícios formais, destacaria mais uma vez Anders Nielsen, que vai apresentando cada vez mais experiências menos imediatas do entendimento clássico da banda desenhada. Desde já, necessários a um conhecimento de certo caminho da "vanguarda". Depois, para sublinhar que o trio Gabrielle Bell, Jonathan Bennet (ambos entrevistados nestes últimos números) e Paul Hornschemeier demonstram continuar a trilhar um espaço que foi inaugurado por Seth e Chester Brown (para não ir procurar mais atrás filiações que se estendem no tempo e nos estilos), sem grandes rasgos de revolução e negação, mas comprovando a capacidade de "contar uma história" de interesse humano. Os pequenos desvios (estilísticos, morais) de David Heatley e John Pham tornam-se outros pontos favoritos. A tradução dos trabalhos de David B. não é surpresa para quem acompanhou as edições originais, mas é uma interessante co-habitação com os restantes artistas. E fica a nota de esperança para que os trabalhos curtos de R. Kikuo Johnson (autor de Night Fisher) surjam novamente (não no #5, já se confirmou).
Há uma constante desilusão com as histórias de Sophie Crumb, que surge como que uma artista que deseja batalhar "para fora" de um espaço de herança que só lhe pode ser opressivo, mas essa fuga tem feito de uma forma pouco feliz, pelo menos nestas curtas histórias incluidas em Mome. Não é demais esperar pelo seu desenvolvimento, claro está.
Enfim, não preenchendo todos os cantos que se desejava pudesse encher, ainda assim a curiosidade leva a consultar toda e qualquer nova Mome.
18 de agosto de 2006
El día de la Historieta, Argentina. 4 de Setembro.
Serve a presente para anunciar uma efeméride, digníssima. Um grupo de entusiastas argentinos pugna para que o dia 4 de Setembro se torne o dia, na Argentina, da banda desenhada (historieta, no arrastado e sibilante sotaque porteño). Para mais pormenores, aqui.
Repetindo a informação aí dada, a data aponta para 1957, o dia em que chegou às mãos dos leitores argentinos a revista Hora Cero, que aqui vemos nas mãos do seu instigador, e talvez o melhor escritor argentino de banda desenhada, e um dos mais profundos e humanos em todo o mundo (esta é a capa de uma biografia, da editora La Bañadera del Comic).
Relembrando um outro projecto de data comemorativa já aqui anunciado, aqui fica o meu desejo de essa data se cumprir nesse país, e ter alguma repercussão na atenção pelos trabalhos dos autores argentinos, pelos menos aqueles de maior qualidade, mas sobretudo o deste homem, criador de títulos tão diversos mas de grande repercussão, desde El Eternauta a Che, de Mort Cinder a Ernie Pike (por cá, pela inépcia editorial do costume, ainda esperamos uma atenção condigna a todas estas séries, já que a outra série, Sgt. Kirk [eu tinha escrito Ernie Pike, v. comentários abaixo] que por cá existe, fá-lo no interior do conluio de Pratt-como-autor-solitário; independentemente das razões que levaram do autor italiano a fazer isso).
Nota: a tip o' the hat para Domingos Isabelinho, pela informação.
17 de agosto de 2006
Guerres Civiles. Jean-David Morvan, Sylvain Ricard e Christophe Gaultier (Futuropolis)
Estoutro título da Futuropolis 32 poderia ser ligeiramente mais interessante, uma vez que tenta explorar as relações humanas e as cadeias da amizade sob a pressão de uma guerra civil, para a qual os autores se basearam nos acontecimentos recentes dos tumultos nos subúrbios, nas várias guerras civis em países ou ocidentais ou árabes mas que não deixavam se ser (ainda o são) metrópoles contemporâneas... França desagrega-se, rompe-se por todos os lados, Paris está na iminência de cair na mão “deles”, e é preciso lá chegar antes de tudo, os amigos separam-se e fazem-se promessas de sobrevivência e comunicação.
Mais uma vez, todas estas informações são externas ao próprio livro, o que nos faz desconfiar em “notas de intenções” nestas publicações todas, contribuindo assim para o aumento demográfico do Inferno. Mais uma vez, este livro é vago, com buracos informativos que em vez de contribuir para um ambiente de absurdo e de caos, aponta pura e simplesmente para questões adiadas de trama narrativa. Mais uma vez, estamos perante uma sequência de episódios soltos do que uma verdadeira necessidade de partes encaixadas entre si (Aristóteles). Mais uma vez, a arte do desenhador (Sylvain Ricard) parece ser fruto de um maior esforço do que de eficácia: os desenhos não deixam de ser interessantes, dentro dos limites de um novo “realismo descontraído” (onda cabem autores como Chester Brown, Jeffrey Brown, Ludovic Debeurme), mas se o artista se soltasse mais e não estivesse preocupado com exactidão – que jamais atinge – talvez conseguisse pelo menos um estilo solto mais aprazível.
O mais grave, parece-me, é de natureza ética. Tendo existido de facto uma série de guerras civis ou desagregações nacionais que levaram ao aparecimento de alguns dos mais conseguidos livros em banda desenhada nos últimos anos (Persepolis, Safe Area: Gorazde, Daddy’s So Far Away... We Must Find Him), parece-me que este exercício entre amigos, que se fazem auto-representar como as personagens sofridas nesse universo, acaba por ser um culto demasiado ensimesmado e pouco respeitoso para as dores reais que se passam no mundo, e cuja exploração fictícia não serve tanto o propósito programado (as relações humanas e de amizade) mas pequenas “piadas de guerra” (as pessoas a fugirem da bomba de gasolina por causa dos tanques).
Enfim, um programa editorial que se preocupa mais com os objectivos gerais e finais do que no prazer que cada parte deveria causar no presente, na leitura efectiva dos objectos que nos ofertam.
Après la Guerre. Luc Brunschwig, Freddy Martin e Étienne le Roux (Futuropolis)
Menu que me perdoe, mas fiquei curioso quando encontrei à venda estes objectos enormes – são finas publicações de 23 x 32,5 cm, com mais de 30 páginas, em papel de grande qualidade e capa em cartão flexível -, ainda para mais quando está indicado na capa serem um primeiro episódio de uma série a continuar. Trata-se da ‘Futuropolis 32’, uma colecção dirigida por um dos seus autores, Luc Brunschwig, autor de uma dezena de livros, e cuja premissa é a seguinte: editar por episódios, de forma regular, estes livros com 32 pranchas a cor (daí o nome, apesar de Guerres Civiles ter 40), apresentando-se dessa forma como um projecto editorial relativamente inédito em França-Bélgica. O objectivo, portanto, é mais associado a um programa comercial, de marcar a diferença pela presença material do que qualquer outra coisa. É isso o que leva ao ódio de Menu, esta “nova” Futuropolis ser um braço da Gallimard, editora generalista – não obstante a qualidade das suas edições -, aventurar-se no mercado da banda desenhada com dinheiros provindos da Soleil, editora cujo catálogo é sobretudo ocupado por high-fantasy, ficção científica, traduções de comics americanos (The Spirit é a jóia da coroa), de banda desenhada japonesa e coreana (inclusive os títulos infantis de Tezuka), mas tudo, quase tudo, sob o signo de um público juvenil ou infantil... O problema é açambarcarem-se do nome de uma das melhores editoras de tempos idos em França, a antiga Futuropolis, que foi a casa de edição de autores ou jovens ou no auge nessa época como Moebius, Tardi, Montpellier, Villem, Francis Masse, etc. Editam David B. e Tardi, é certo, mas o restante catálogo é fracote e nivela-se por uma fasquia medianeira.
Porque o problema reside aí mesmo: o objectivo está estipulado nesses limites formais e comerciais, e não numa vontade interior à obra que mova os autores. Bom, poderia ainda assim estarmos perante um bom exemplo de banda desenhada comercial – como o estamos com Donjon, uma série de títulos do Batman, a obra de Barks... Mas não é o caso. Après la Guerre vive num espaço de clichés da FC: num futuro distópico, em que existe um Governo da ONU, mas no qual nunca nos apercebemos bem porque é que é mais caótico que o nosso, recebemos notícia de que em um ano seremos visitados por alienígenas, e há que nos prepararmos para a guerra. Se bem que isto possa recordar de imediato El Eternauta, de Oesterheld e Solano López, a história é mais clara nos press-release e notas de edição do que propriamente no livro que se nos apresenta, e isso revela desde já uma debilidade grave. Mais, a moral presente recai mais uma vez num maniqueísmo pouco explícito – isto é, é mas finge não ser - e a catadupa de mecha, imitando muitos dos estratagemas da mangá, também não ajudam a montar uma narrativa coesa e adulta. A presença das leituras de Judge Dredd e outros títulos quejandos é muito presente, e não ajuda a criar uma história de ficção científica ou futurologia sequer surpreendente. Outro problema é a total ausência de humor. Nesse (e noutros) aspecto, a Viagem da Virgem é muito mais forte. A arte de Martin já foi chamada de “glauca”, mas isso não deve ser visto como um elogio, pois apenas sublinha o ambiente vago que é criado neste livro. Afinal, se é para se editarem episódios separados numa cadência regular, poderiam ter aprendido com os americanos a fazê-los contendo um manancial de informação problemática que “nos prendesse às cadeiras” e nos fizesse, de facto, ansiar por mais (como ocorre na nova série de Batman escrita por Grant Morrisson, por exemplo)... Não é o que acontece neste caso. E sabendo que Après la Guerre se esticará por 15 episódios, talvez a paciência não...
A colecção é vendida como sendo dinâmica, jovem, arriscada, devido à presença da violência, de uma expressão sem limitações, etc. Mas não entendo: desde quando a presença da violência é sinal de “maturidade”? As milhentas invasões dos Skrulls e os massacres em Donjon mostram, de formas radicalmente diferentes – isto é, sem e com ironia – como isso não é verdade. E pelos vistos os livros de Baudoin são “imaturos” nessa perspectiva? Menu pode ter-me perdoado por ter agarrado nos livros, mas deve-se rebolar a rir com um “bem te disse!”.
Désoeuvré. Lewis Trondheim (L'Association)
Onde a colecção Côtelette abria um largo espaço a que os autores de L’Association se espraiassem com desenhos livres, sketches, apontamentos diarísticos sem preocupações narrativas ou de continuidade e anotações sobre o que lhes viesse à cabeça, inaugurou a Éprouvette um espaço de mais coesa e dirigida reflexão sobre a banda desenhada, sobretudo a relação pessoal dos artistas com a sua própria criação. Se Menu a iniciou com um libelo cheio de verve e bílis, Trondheim vira o instrumento a si mesmo, e faz um balanço da sua vida, da sua obra, do seu papel e relacionamento com os demais. É tempo de uma crise criacional de um autor que atingiu um auge na sua carreira, para mais um autor que a iniciou sem pretensões de desenhador, mas que acabou por se tornar um dos mais inventivos autores dos últimos tempos vindos do espaço franco-belga, e para mais um autor com uma característica algo rara em combinação com essa inventabilidade: o humor.
Mas o humor desaparece quase por completo destas páginas, em que os pesos da idade, das correrias entre festivais, das responsabilidades, da glória fugaz, acabam por subverter o prazer que havia dado início à sua, na falta de palavras e preso no interior de uma redução da banda desenhada, “aventura”. A fatiga e a depressão parecem estar ao virar da esquina, e o acumular de exemplos de outros autores derrotados por esse factor (Franquin, Macherot) parecem conspirar para que Trondheim também faça parte dos números.
É curioso que o autor abra este pequeno livrinho confessando que se passaram 80 dias desde que desenhou uma prancha de um álbum. Ele é preciso: “dessin d’un album”. Continuará a desenhar, certamente, mas não naquilo que constitui o seu central “ganha-pão”, ou o seu métier. É curioso porque essa é a primeira afirmação no desenho da primeira página de m novo livro que ali temos nas mãos. Por isso é um derrotismo (inicial) que se vê gorado pela própria existência do livro presente. Haverá confissão menos velada de que a crise num autor desta envergadura é facilmente superada? Pois apesar de ser um livro em que haveria toda a liberdade para criar camadas de textos e desenhos desconexos – como surge aqui e ali nos seus próprios Carnet de Bord – Trondheim estabelece aqui estratégias de espaços e tempos (os saltos entre um comboio e um avião), emprega metáforas visuais dramáticas, cultiva um cruzamento de referências salutar entre a realidade (autores como Moebius, Fred, Tibet, Gotlib, os amigos de L’Association, os festivais) ou da sua própria obra (Lapinot emergindo da terra é um momento alto)... Como se pode ser désoeuvré através da sua obra? Trondheim namora com a beira do abismo, mas ser-lhe-á impossível tombar nele. Por exemplo, a prancha que aqui se apresenta figura bem esse contínuo antagonismo: uma sensação de quebra, mas que se sublima na capacidade de “jouer encore”. No entanto, não se pode ser insensível perante as dúvidas que assolam as conversas e reflexões presentes neste livro. É talvez necessário passar pelas barreiras de Trondeheim (inclusive as da idade) para se perceber que escolhos a simples passagem do tempo nos ergue à frente.
Este livro, porém, que parte para responder às questões de Trondheim sobre o “envelhecimento dos autores de banda desenhada”, serve outros propósitos que não estariam no centro da sua origem: serve de história, de uma história íntima, da vida de muitos autores famosos (não só franceses) e de que usualmente apenas vemos o lado glorioso – a obra; serve de caveat aos autores jovens ou que continuam a trabalhar. Mais uma vez, como Plates-Bandes, a sua acomodação à realidade portuguesa pode não ser totalmente correspondente ponto por ponto, já que o sucesso comercial nem sempre ou nunca é atingido entre nós, o sucesso crítico é impossível pois não há crítica, e o sucesso dos leitores pouco se reflecte para além de uma boçal e acrítica massa de fãs... Haverá excepções, dirão, e é claro que sim, confirmando as razões que levam tantos autores “promissores” a desistirem pelo meio em nome de carreiras mais sólidas noutros campos, ou em busca de um respeito mínimo que lhes era devido mas é-lhes negado pelos próprios cultores daquilo que pensavam ser o seu “campo”... Basta pensar na quantidade de mulheres que “desistiram” (leia-se “foram empurradas para fora de”) da banda desenhada em Portugal. Um outro propósito também é que a própria existência de Désoeuvré é um passo decisivo para a demonstração de uma banda desenhada plenamente adulta, sem truques alguns, no despojamento total da existência humana do seu autor (fora os bicos de pássaro com que Trondheim se desenha....?). O desenho incompleto das paredes do estúdio de Trondheim na última prancha serão sinal de que há ainda muito a fazer?
Plates-Bandes. J.-C. Menu (L'Association)
Haverá outras plataformas onde poderão aprender mais do que rodeia socialmente a publicação deste livro de Jean-Christophe Menu, autor de poucos amigos: a própria história da editora L’Association, a saída de David B., um dos fundadores da associação, uma espécie de barricadização de Menu na sua cruzada “sozinho contra todos”. Aqui falaremos da relação que este livrinho, uma diatribe contra a “bedofilia” (como alguém cunhou entre nós, e certeiramente) francesa, poderá estabelecer com a cena portuguesa. Muitos aspectos da forma de trabalhar de L’Association, como o próprio Menu aponta, não são novos, é verdade; mas também não é menos verdade que, para esta geração presente, foi L’Association que marcou o passo e cadência pelos quais outros tentariam ou conseguiriam pautar-se. Basta relembrar que a colecção Patte de Mouche – esse formato exacto – despoletaria experiências tais como a Quadradinho, do SIBDP, a Miniburger, parte da edição da Stripburger, e ainda a Minitonto, do Brasil. Se insisto neste aspecto do formato, é porque esta diatribe deu início a uma nova colecção da L’Association chamada "Éprouvette" (v. símbolo; e está na continuidade das outras colecções, com palavras de ressonância fonética idêntica e significados muito precisos em francês e que informam a tipologia dos trabalhos nelas editados: no caso presente significa “tubo de ensaio”), que deu já um livro de Trondheim, uma revista do mesmo nome que é uma plataforma de ensaios sobre a banda desenhada; até mesmo em banda desenhada, e onde é continuada esta batalha de Menu (para um bom artigo sobre este assunto e algumas das suas mais imediatas consequências, v. The Importance of Being "Published". A Comparative Study of Different Comics Formats, de Pascal Lefèvre, in Comics and Culture. Analytical and Theoretical Approaches to Comics; Dinamarca 2000).
A diatribe de Menu centra-se sobretudo no facto de que muitos dos gestos editoriais de L’Association foram reaproveitados por grandes editoras, mas que os subverteram para criar mais produtos comerciais do que verdadeiras inovações, inclusivamente roubando espaço ao que os alternativos tinham criado. Menu fala da colecção Écritures, da Casterman, por exemplo, de que aqui já se falou, num ou outro exemplo, ou da nova Futuropolis, que edita novas colecções ou novos autores, mas não deixando de ser uma editora de preocupações maioritariamente comerciais, sobretudo na sua vertente Soleil. Mas Menu parece esquecer-se que lutar contra essa situação não deixa de ser algo “quixotesco” (no sentido banal da palavra, já que Quixote é outra coisa): afinal de contas, o que não é aproveitado pela hegemonia cultural a partir dos experimentalismos mais criativos? Quando é que aquilo que antes era de “vanguarda” não é utilizado na “massificação”? Bastaria falar de Mondrian. Por outro lado, Menu não faz jus a gestos editoriais das “grandes” que parecem não fazer sentido nessa visão, como por exemplo a edição de T.N.T. en Amérique, de Jochen Gerner pela L’Ampoule.
Se tem a ver com algum tipo de ressentimento de Menu (David B., Lewis Trondheim e Joann Sfar mantêm os seus trabalhos independentes na L’Association e outras aventuras mais comerciais noutras editoras; Menu, que em si não encerra as mesmas forças criativas, não tem o mesmo peso), não tenho a certeza, mas que soa a isso, sem dúvida que sim. Afinal, o facto de se arrogar de uma certa “aura” de vanguarda não deixa Menu ser completo, já que a esmagadora maioria dos livros publicados na L’Association não se reveste de reinvenções radicais, nem na experimentação formal nem na recriação narrativa, sendo esse papel – ainda no espaço francófono – ocupado sobretudo pela Amok, mais ainda pela Fréon (ambas amalgamadas na Frémok), e também pela Le Dernier Cri (que nem chega a citar). Certes, é na L’Association que se dão e publicam as experiências da Oubapo, mas essa é uma experiência que extravasa os limites da associação, enquanto grupo e espaço de criação – e claramente “programada”. Não quero com isto dizer que os trabalhos da L’Association não merecem o nosso respeito ou que não encontremos neles exemplos de excelência em banda desenhada; bem pelo contrário, é nessa editora que se reúnem alguns dos nomes daqueles autores que vejo serem o mais profícuos e inteligentes na exploração deste modo de expressão (David B., Edmond Baudoin, Marjane Satrapi, Emmanuel Guibert, já para não falar dos autores traduzidos, o que revela uma atenção e escolha exímia, etc.). Mas esse tratamento é ainda dentro de algumas regras de “legibilidade” narrativa e visual; não estamos perante os trabalhos de Stefano Ricci, nem de Alex Barbier, nem de Nuvish, nem de Vaughn-James, nem de Valium (e esta diversidade de exemplos apontará as possíveis direcções das “diferenças” à legibilidade).
Em Portugal, o contexto não é o mesmo de modo algum. O nosso mercado livreiro é pobre e mal gerido, quer no que diz respeito aos valores clássicos e contemporâneos, quer os nomes nacionais quer os internacionais. Existem exemplos de sucesso, mas não são mais do que dados de fenómenos integrados em movimentos maiores de cultura popular (O Código da Vinci é o último desses fenómenos), ou em que a qualidade se mistura com a relevância do esforço de promoção (Gonçalo M. Tavares), ou à pura e simples nulidade artística aliada à facilidade de “comunicação” (Margarida Rebelo Pinto). A banda desenhada não é, de modo algum, excepção, e até mais grave em termos de critérios editoriais (inexistentes na maioria dos casos, errante em quase todos, coroados de felicidade mas pontual noutros: último exemplo, o The Complete Peanuts na Afrontamento).
Mas a esmagadora maioria das edições são de uma fasquia terrivelmente baixa, integrada plenamente na atitude de muitos dos agentes culturais deste país (e aqui inscrevem-se os agentes de todas as áreas), de que o público é estúpido, e só quer comer do mesmo (e se for trampa, ainda mais fácil). A democracia cultural, porém, é precisamente o contrário: é tentar expor as pessoas a tudo, ao mais possível, e garantir a existência e a acessibilidade das plataformas e instrumentos para que façam as suas escolhas, acompanhadas de alguma condução do processo (aquilo que merece o nome de “pedagogia”) como e óbvio, mas sem grandes arrogâncias de iluminado. No entanto, quem pugna por essa atitude é, as mais das vezes, acusado de “intelectual”, “elitista”, “snob”, “amante de rabiscos” ou “de esquisitices”, como se fossem insultos; ao passo que o conluio dos que apenas divulgam aquilo que as editoras lhes mandam, precisamente para continuarem a receber borlas e a perpetuar a inércia cerebral, são vistos como pessoas informadas. Pois, mas a quantidade de informação jamais rimou com o livre e próprio exercício da razão.
Bom, a verdade mais profunda é que muitas vezes escuto editores a dizer que não existe material português de qualidade (mesmo que se esteja a pedir por uma material mais “vendável”, de públicos mais vastos), pergunto-me se estarão assim tão errados, já que esse esforço não parece surgir em nenhumas outras frentes. Temos mais artistas “alternativos” do que “comerciais”, mais “adultos” do que “infantis” de qualidade. Por outro, quando escuto artistas a dizer que as editoras não arriscam, não sendo falso, por um lado não apresentaram esses projectos às editoras todas e por outro lado há sempre excepções que deitam por terra as generalizações. Escuso-me de indicar exemplos concretos, já que quem os conhece, preencherá essa lacuna, quem não os conhece, que os busque. Como disse numa conversa pessoal, e contra mim falo em me pronunciar sobre este assunto, encerrado que estou aqui num mero território doxológico: “É uma questão complexa, sem dúvida... Nem sei onde começar, faltam-me a sociologia e os dados reais.” As eternas pescadinhas de rabo na boca sobre a qual acrescentamos, arrotando, as nossas postas de bacalhau. Faltam estudos palpáveis e balizados e uma discussão pública profunda e descomprometida. Impossível? Vocês mo dirão.
Não quero com isto dizer que a diatribe de Menu encontra em mim um acérrimo seguidor – há aspectos que são por vezes discutíveis, mas fica o louvor ao abrir esse espaço -; e muito menos transformar essa diatribe numa outra pessoal e adaptada à “nossa” cena. O meu único inimigo é não pensarmos mais sobre a banda desenhada num espaço público, ou o que é público se reduza aos típicos feudos dos “bedéfilos”: coleccionismo, auto-ficção, enfeudamentos dos territórios nos quais se cultiva ou bebe, falta de cultura, mas pior, de inteligência própria. Saber tudo o que aconteceu na História dos X-Men não é o mesmo que aperceber-se dos valores sociais que eventualmente cada um dos seus títulos pode estar a discutir.
Plates-Bandes significa “canteiro”, por um lado, mas é também um jogo com “bandas (desenhadas) chãs”. Por cá, aplastam-se muitas vezes os poucos canteiros realmente floridos que vão surgindo, com tantas “desistências” pelo caminho... É nossa responsabilidade saber como os medrar, não enmerdar.
Sobre este assunto, escreveu Domingos Isabelinho (que me autorizou esta longa citação): "Portugal não tem um público leitor adulto para a banda desenhada de qualidade. Qualquer iniciativa editorial nesse sentido devia, por isso, ser subsidiada. Porque é que há cinema de autor em Portugal e quase não há banda desenhada de autor? O que se gasta num filme dava para editar dezenas de álbuns. É claro que a direita vem logo falar em subsídio-dependência e noutros mimos do género (como a invocação de que estamos em época de vacas magras). O problema é outro: a banda desenhada não tem prestígio; suponho que nem sequer toca um neurónio da ministra da cultura; não há lobbies [sic] a defendê-la, não existe socialmente. Não me consta que toda a actividade cultural subsidiada pelo Estado pare completamente porque estamos em crise. Para a banda desenhada vacas gordas ou magras é indiferente: não faz, pura e simplesmente, parte das preocupações políticas de ninguém; seja essa entidade de direita, de esquerda, ou do Ministério das Finanças. Perante isto não se pode levar muito a mal que os editores evitem o aventureirismo. Afinal, é o dinheiro deles que está em jogo. Auto-editar umas fotocópias até pode ser a solução. Admito que seja ignorância minha, mas não conheço quem aproveite a liberdade total que dá a feitura de um fanzine para realizar uma obra com tempo e calma, arrojada e de qualidade. Normalmente são pecadilhos de juventude aliados a uma suposta cultura irreverente "própria da idade". Nada que não se cure com o andar do tempo e com o aparecimento das responsabilidades próprias da vida adulta. Aos vinte e muitos, trinta e tantos anos dos "fanzineiros", a banda desenhada é já uma memória quase longínqua."
Mais um contributo à discussão, sem fim...
Lanza en Astillero. AAVV (Castilla-La Mancha)
Lanza en Astillero (“Lança no estaleiro”) é uma antologia de 20 curtas histórias que adaptam um episódio (ou o transformam) da famosíssima obra de Miguel de Cervantes, El ingenioso hidalgo Don Quixote de la Mancha. Apesar de ser editado pela Câmara dessa região espanhola, o louvor da acção recairá seguramente em Jesús Cuadrado, conhecido autor e paladino dos tebeos no país vizinho e, claro está, dos 28 artistas – desenhistas, ilustradores, escritores – que embarcaram no projecto (se aumentarem a imagem, conseguirão ver a lista completa na portada).
Um pouco dos preliminares do projecto: Cuadrado fez uma selecção muito directa nos convites que fez, considerando artistas específicos que, segundo o mesmo autor, “representam a autoria num estado puro, caracterizando-se pela forma como rompem com a linguagem convencionalmente industrializada, ao mesmo tempo que estão inseridos nos movimentos estéticos mais radicais da banda desenhada que surgiu e foi publicada desde os anos 80”. Se bem que estejam presentes artistas que de facto e claramente se inserem nessa descrição estética (o exemplo gritante de Stefano Ricci, por exemplo), há outros tantos que não me parecem se demarcar substancialmente de uma aproximação mais “classicizante”. Isso não quer dizer “trabalho fraco” ou “displicente”, de forma alguma; simplesmente há que recolocar os termos dos trabalhos apresentados.
Os artistas foram convidados, com toda a liberdade possível, a escolherem um “fragmento” qualquer das duas partes do Quixote, passando à sua reescrita em banda desenhada, com as seguintes restrições: “cinco páginas verticais, em tintas bitonais (tons terra ou siena)”, mas sob as técnicas mais habituais da banda desenhada, como e se preferissem. Pedia-se ainda que a selecção do episódio fosse mantida em segredo em relação aos outros autores, para que, no caso de coincidência, se pudessem prestar a diferentes interpretações do mesmo, acedendo-se assim a “uma riqueza acrescentada à obra colectiva ao surgir uma confrontação estética em si mesma e pelas possíveis dualidades ou coincidências”. E afinal, é o que acontece, com cinco instâncias do mesmo episódio da “Las cortes de la Muerte”, pela mão de Filipe Abranches, Miguel Calatayud, Denis Deprez, e ainda Miguel Ángel Ortiz com Álvaro Ortiz. A eles voltaremos mais adiante.
A obra de Cervantes é uma daquelas obras para a qual os adjectivos existentes não presta homenagem suficiente... magnífico, sempiterno, esmagador, parecem aquém; clássico parece banalizá-lo; genial um crime intelectual. Talvez a mais extraordinária maneira que alguém alguma vez se expressou sobre este(s) livro(s) tenha sido a do cervantista e poeta catalão Marti de Riquer que, face a uma pessoa que jamais tinha lido o Quixote, disse: “Felicidades, porque ahora tiene la. oportunidad de pasárselo muy bien”. E, realmente, não há provavelmente melhor leitura feita do Quixote do que a primeira – e aconselho que seja feita com vontade, sem demoras e interrupções. Para os que puderem (e não é difícil, os dicionários existem para isso), leia-se no original. O Quixote é uma daquelas obras literárias que consegue, ao longo dos tempos e das atitudes, receber qualquer nome, qualquer apodo, qualquer interpretação (um pouco, mas bem diferentemente, do que o nosso “clássico”, Os Lusíadas): inclusive a de “pós-moderno”. Afinal, é Cervantes quem inventa o romance moderno, e é lá que existem todas as raízes daquilo que fundamentaria a literatura do século XX: a “corrente de consciência”, a “transliterariedade”, o “experimentalismo de géneros”, a “dissertação metalinguística” e “metaliterária”, e tantas outras assombrosas torções artísticas. Por exemplo, para quem não o souber já, Cervantes não planeava escrever uma segunda parte, mas face à quantidade de obras, que não do seu punho, que surgiram na esteira da sua, colocando a sua personagem ora por episódios demasiado ridículas para Dom Alonso ou demasiado elevadas, mas todas descaracterizadoras, Cervantes resolveu atacar essa praga, escrevendo essa derradeira segunda parte, onde Quixote chega a encontrar-se com “outro Quixote”, e na qual o seu autor, provavelmente de forma dolorida, lhe põe fim à sua vida.
Para além disso, estou em crer que talvez a grande força desta obra seja a permanente dúvida que atravessa os livros – ou melhor, a dúvida que se vai insinuando e crescendo ao longo da obra: serão estas aventuras alucinações de Dom Alonso (e esqueçam as adaptações a cinema, mesmo as incompletas, as resenhas, as anedotas e, pior ainda, os desenhos animados) ou serão elas interpretações da realidade a que os restantes são cegos? Aliás, é esse o âmago do episódio que, na minha opinião, é o mais impressionante em toda a obra (fora amigos que já sabem, quem adivinhar, receberá um prémio). Por outro lado, há uma série de dados fundamentais que é preciso ter em conta antes de colocar sobre a obra sentidos ou valores que se “encaixem mal”. Por exemplo, Cervantes escolheu a Mancha precisamente por não se passar lá nada. Agora é fácil construir discursos que elogiem Castilla La Mancha a partir da obra do escritor, claro, mas a escolha dele incidiu num espaço no qual jamais haveria uma escolha lógica para cenário de aventuras cavaleirescas. Depois, como no próprio livro é indicado, o patronímico de Dom Alonso, de várias grafias possíveis (Quijada, Quesada, Quejana, Quijano), não é castelhano, nem é associável a nada – independentemente das recriações posteriores -; ligar-se-á, dizem uns, à parte da armadura que protege o queixo (“queixada”), a outra parte um pouco mais a sul, asseguram outros. O importante é que não é um nome, à partida, de ressonância épica, nem heróica. Mais uma vez, não obstante o que se desejou fazer dele depois, sobretudo política e nacionalmente. Dom Quixote não é como Os Lusíadas, programado como um elogio e um canto épico, é uma obra mergulhada numa das mais subtis ironias e amores à literatura de que há memória. Daí que sejam possíveis todas as interpretações, reinterpretações, reinvenções e até sobreinterpretações (Eco), ainda assim criativamente aceitáveis (“Quixote no espaço”, mas também “Madame Bovary” ou “Pierre Ménard, autor del Quijote”).
Tal como se aplicará certamente a outras obras sob “adaptação”, face a esse poderosíssimo manancial, perante a força esmagadora dessa obra, o seu tratamento deve ser feito de uma forma confiante, directa mas reinventiva. Não se podem dar ao luxo de meramente ilustrarem um episódio, sem lhe dar nada de novo, correndo o risco da futilidade. Nesse aspecto, metade das colaborações deste livro pecam pela mera recriação das palavras de Cervantes, dando-lhes corpo gráfico, e até mesmo esse tão débil quando o corpo físico de Alonso – meras “bds”, quase feitas sob aquele signo da “adaptação passível de uso nas salas de aula”, cuja bitola obriga desde logo a simplificar e facilitar.
Vejamos, pois, a outra extremidade, aquelas que de facto atingem um ponto alto na e da banda desenhada, ainda assim com ou pelo material do Quixote. Em primeiríssimo lugar, há que apontar o trabalho de Anke Feuchtenberger (imagem 1), que mais uma vez prova que onde outros dão pontapés para o pinhal, ela descose a bola e retradu-la num tecido novo. Feuchtenberger recria todo o Quixote, plasmando-o nos seus temas particulares, numa alegoria concisa, chegando mesmo a mesclar o corpo de Don Alonso com o da sua Dulcineia (“...surge em mim o mesmo odor que parecia existir na minha doce senhora Dulcineia”), e demonstrando que as fronteiras do homem e da mulher, do humano e do animal e do objecto, da vida e da morte, não são abruptas, mas se imiscuem uns nos outros como duas substâncias viscosas. Stefano Ricci está logo a seguir, tendo eleito Rocinante como sua personagem principal, e o modo como se relaciona com a morte “de su amo”, numa espécie de curtíssima peça do teatro absurdo de um acto: é como se Rocinante, o Quixote, a sua morte na sua casa, fosse uma desculpa para falar do modo como nós, hoje, nos afastamos da experiência da morte (dos outros) – relegando-a para os hospitais, por exemplo, e não a aceitarmos como parte da nossa vida, dentro de um círculo íntimo (Micharmut tenta fazer também uma reapropriação do episódio escolhido para o transfigurar numa experiência contemporânea, mas não me parece que tenha atingido um nível feliz de criação; a analogia feita é um pouco primária).
Depois, seguem-se as adaptações competentes e que trazem prazer ao olhar, mesmo que não nos recoloquem a questão do Quixote. Nesse grupo, também restrito, apontaria a Filipe Abranches (imagem 2) e a Denis Deprez (imagem 3), tendo ambos trabalhado o mesmo episódio (v. acima) e ambos preferindo reduzir ao mínimo as informações – personagens, cenário “despido”, concentrar as imagens sobre as máscaras dos actores como se nelas residisse todo o significado da ilusão (novamente: de quem?). O despojamento de Deprez passa pelo uso da aguarela, de cinzentos disseminados, e o de Abranches é o branco intocado, o qual rima ainda com o “silêncio” de algumas das vinhetas, concentrando antes o início num complexo jogo de olhares entre as personagens, interrompendo o diálogo com o roubo do asno, e terminando como que num arco completo da acção e humor de Quixote. Outro artista igualmente interessante é Pablo Auladell, que me recorda alguns aspectos de um Markus Huber, com uma geometrização absurda dos corpos, e condensando redondamente o episódio do Clavileño, o cavalo de pau, o qual termina (aqui) precisamente numa das frases que sublinha para quem tem olhos de ver a grande questão do livro de Cervantes – quem se ilude com o quê?
Algumas das restantes participações conseguem ser prazenteiras até certo ponto, mas algo desiludidas em relação a trabalhos anteriores dos autores mais conhecidos (Max, Miguelanxo Prado) ou curiosas superficialmente mas pouco mais dos menos famosos (Carlos Nine, Jorge González). Outras não são mais do que exercícios de redução gráfica, infelizmente. Ainda assim, a convivência de todos estes trabalhos pode ser fruto de uma concessão (livro apoiado por uma instituição política, discursos sob uma vontade de elogio de La Mancha, em contrário do profundo significado de Cervantes), e não deixa de ser um exercício salutar de edição, também pela qualidade geral atingida, e que podia ser entre nós imitado, já que as experiências locais/camarárias, afora um ou dois exemplos felizes de livros ilustrados por um artista, não se têm verificado da melhor forma. E não se deve à falta de “Quixotes”...
Nota: agradecimentos a Filipe Abranches, que me "pôs em contacto" com este livro. A prancha aqui presente, não sendo das mais "cheias" de Abranches, é a título pessoal uma das que me dá mais vontade de perder o olhar...
La Nouvelle Pornographie. Lewis Trondheim (L'Association)
Gostaria que todos aqueles fãs de banda desenhada erótica (na verdade, semi-pornográfica e de uma atroz qualidade artística, independentemente do seu sucesso por entre as “massas”) pudessem receber este pequeno livro em suas casas (ou os espaços onde lêem essas obras, já que se protegem, ou à sua leitura, dos olhos dos outros).
Todos sabemos que a excitação – uma reacção física, sem dúvida, mas onde participa todo o ser - está sempre mais na imaginação de quem vê do que nas intenções ou acções do objecto de desejo – o que traz grandes problemas e mal-entendidos quando não há desejo correspondente, ou nem sequer desejo num dos pólos, e que se reveste em situações mais ou menos graves. A esmagadora maioria das bandas desenhadas que se dedicam a este território acabam por ser pouco inteligentes, preferindo jogar num campo de expectativas baixas (falo das revistinhas de banca, mas também dos Serpieris e Manaras ao molho). Na minha perspectiva, apenas Guido Crepax conseguiu sublimar, jamais saindo do campo do erótico (mas um erótico cultíssimo e educadíssimo), a sua arte numa franca experimentação de estratégias gráficas, territórios artísticos, complexidades narrativas, etc. Havendo divertimento no campo, prefiro apontar coisas tão tresloucadas e “diferentes” como a série de livros Dirty Stories, True Porn, Birdland de Gilbert Hernandez, ou então absolutos exageros como Bondage Fairies de Kondom (Teruo Kakuta).
Aliás, nessa diferença e elevação de expectativas, penso especificamente na participação de Renée French, a única que apresentou um grande desvio em relação à representação directa do sexo e preferiu sublinhar esses interstícios onde é a mente mais perversa que consegue encontrar carga erótica no mais simples e cândido dos gestos quotidianos. E mentes perversas podem muito.
Lewis Trondheim estabelece aqui um fantástico exercício ao apresentar pranchas seguidas de pranchas (pequenas, já que este é um volume da Patte de Mouche) onde apenas vemos, superficialmente, figuras geométricas mutando de forma – recordando outro dos seus exercícios formais anteriores, Bleu. Já sabemos também que pornografia e erotismo têm por vezes fronteiras muito diluídas, e podem andar de mãos dadas de formas conturbadas e inovadoras. O recentemente publicado A Vida Sexual Secreta de... Catherine Millet (Asa), directora da Artpress, aponta para o facto de que a existência de sexualidades selvagens e indomadas pode existir a par da mais profunda, ampla e subtil das culturas ditas “altas” (não é assim tão surpreendente como isso, só que é pouco público).
Trondheim resolve chamar a cada “estória” Figures (“figuras”). Se bem que não terá mais associações senão o facto de que se apresentam sob a forma de, precisamente, figuras geométricas, é bem possível que Trondheim as esteja a apresentar como uma sublimação de uma pesquisa sobre as variações possíveis da sexualidade, e como elas podem ser agrupadas em “classes” organizadas – assim ecoando os vários volumes de Figures, de Genette, pesquisa a que me referia, ainda que noutro território (o literário). E não deixa isso de fazer sentido, se repararmos como os vários “episódios” ou “estórias” terminam na última figura, totalmente diferente, e que serve não só de pedra de fecho de toda a estrutura, como as recoloca num outro relacionamento entre si – até moral, já que o “fim” do sexo foi a “reprodução”...
O livro, ainda que heterossexual (afora um episódio), mostra ser equilibrado na felicidade sexual, já que a alegria feminina está constantemente presente num “sorriso” e a masculina na costumeira, ainda que redutora, “explosão”. Não se surpreendam com reacções físicas mesmo presente estas figuras, já que neste caso a imaginação estará a providenciar os espaços vazios com muito mais informação nossa do que os exemplos mais clássicos do “frenesi do visível” (Linda Williams).
13 de agosto de 2006
Jimbo's Inferno. Gary Panter (Fantagraphics)
Jimbo já esteve no Inferno e voltou. Bom, na verdade esteve, de acordo com o título dessa antologia de 1988, no Paraíso (Jimbo. Adventures in Paradise, publicado pela Raw/Pantheon), mas tendo em conta os vários espaços que atravessou – então, La Bufadora, The Crash, a pré-história, as planícies dos povos aborígenes da América, e o desolador palco da destruição nuclear - é bem mais próximo do Inferno que qualquer outra coisa. Este novo Jimbo’s Inferno é, todavia, mais infernal ainda, e de facto muito mais próximo com o sistema espacial erguido por Dante. Mas como o próprio autor adverte na nota de introdução a este volume, estar em busca dos pontos de ligação é, a um só tempo, fácil e impossível, mas acima de tudo, despropositado, escusado, infrutífero. Fácil porque se espalham as referências dos Cantos pelas vinhetas mais apropriadas, que nos tornam cristalina a ocupação mundana de ligar a personagem de Panter à da obra de Dante, assim como se indicam as datas de produção (estratégia que Panter sempre usou – e que assim nos revela que o Inferno foi feito antes do Purgatory). Impossível e escusado porque essa “caça à referência” apenas nos levaria ao próprio material do jogo de Panter, mas não à obra que se nos apresenta. Sigamo-lo, pois, nessa ideia, e mergulhemos noutras considerações.
Assim, poder-se-á considerar que a trilogia chega ao fim. Porém, nada nos impede de desconfiar que, sendo Panter, esta sua trilogia tenha mais que três partes e que Jimbo ainda possa se desdobrar em mais aventuras. Ainda podemos estar a leste de outro Paraíso.
Como já havia sido discutido noutros momentos, o objectivo de Panter não é que os livros (ou pranchas, seja lá como surgirem os objectos textuais onde Jimbo entra) sejam legíveis, como se se tratasse de um romance, de uma narrativa linear, organizada e unitária, uma espécie de grande work-in-progress onde testemunhássemos um Bildungsroman sobre Jimbo. Não, porque Jimbo não aprende nada e não tem memória dos episódios anteriores. São apenas sequências não-narrativas de acontecimentos, de blocos de acções (e de sensações, já agora). Que demonstram a inexorabilidade do tempo, mas um tempo vazio, que não se constrói sobre si mesmo, complexificando-se, mas assume de um modo total a sua natureza de flecha. Ou seja, sem história, apenas direcção. Nesse aspecto, poder-nos-á recordar duas figuras extremas que trabalharam precisamente a relação dos homens com as suas sociedades, quando estas pouco ou nada se importam com os seus habitantes, e continuarão a funcionar independentemente das vidas desses homens: por um lado, Kafka, claro, talvez o escritor que melhor trabalhou o constrangimento e o horror que ele provoca nas vidas (de cada dia) dos homens-tornados-funcionários-da-máquina, quer se rebelem quer não se rebelem (na verdade, em Kafka, jamais se rebelam, a não ser superficialmente; o “K.” de Welles é mais Welles do que Kafka); por outro, é o Jacques Tati de Mon Oncle ou de Playtime, uma espécie de Kafka bem-disposto, que trabalha o constrangimento ao contrário, demonstrando como o ser humano consegue manter-se, acima de tudo, humano, independentemente da maquinização da sociedade.
Gary Panter segue profundamente o seu manifesto famoso, o Rozz Tox, onde termina assim: “O capitalismo é, para bem ou para mal, o rio no qual ou nadamos ou nos afundamos, e que enche os supermercados”. Trabalhando no interior do capitalismo, do sistema que se ergue à sua volta e de que nos é impossível escapar, mas claramente consciente disso, Panter constrói a figura de Jimbo e dos espaços transfigurados por onde ele atravessa. Jimbo, enquanto personagem-actante, aparece como um módulo vazio que se vai adaptando a tudo, mas rebelando-se com tudo ao mesmo tempo. Uma espécie de é/não é, de nim, que se recusa a algo mas educadamente pedindo desculpas. Mais, uma das personagens femininas com quem Jimbo se cruza logo nas primeiras páginas deste livro chama-o de “presunção de Adão”, sublinhando precisamente essa qualidade de aquém-de que Jimbo configura.
Às páginas tantas de um livro que descobri recentemente, de 1877, intitulado Caricature and Other Comic Art, de James Parton, e que faz a história precisamente daquilo que se pode entender amplamente por “caricatura” desde a antiguidade greco-romana até à sua contemporaneidade, o autor diz o seguinte: “A book with original life in it becomes usually the progenitor of a line of books” [“Um livro que contenha vida original torna-se normalmente no progenitor de uma sucessão de livros”]. Se bem que original possa ser traduzido como “original”, e assim sendo assume-se com toda a razão que surgem pontual mas excepcionalmente obras que marcam um ponto de início daquilo que mais tarde, retrospectivamente, se pode chamar de uma tradição, de um estilo, até mesmo de uma escola – o caso máximo (mas discutível) é o da “linha clara” de Hergé, baptizado após a sua existência consolidada por Joost Swarte – à mesma palavra poderíamos atribuir o significado mais específico e problemático de “originário”, confluindo em si uma força permanentemente de renovação própria. Isto é, livros verdadeiramente “originais”, no sentido mais banal da palavra (mas não por isso menos pertinente), de que não fazem escola. Já falámos aqui de alguns desses livros, sendo o exemplo de The Cage de Martin Vaugh-James o eterno paradigma. Mas a obra de Panter, cada vez mais, também pertence a essa categoria, de obras que não abrem caminho a novas e derivadas obras, precisamente porque a sua força originária é tão potente que se torna centrípeta, como um buraco negro, absorvendo para si mesmas as possibilidades das linhas de fuga que seriam eventualmente exploradas e vividas por outras obras, se tivesse um campo de forças mais fraco que permitisse a essas linhas, justamente, fugir de si para se reinstalarem noutras obras. Disse “cada vez mais” pois se podemos ver as anteriores aventuras de Jimbo (in Paradise ou o comicbook na Bongo, de Matt Groening) como ainda balizadas por alguns elementos narratológicos de organização – uma certa unidade nos acontecimentos – estes dois últimos exercícios tornam-se fechados sobre si mesmo mas numa infinitude de associações a que somos tentados de dar o nome de rizomáticos, para nos associarmos a um discurso à la mode da filosofia contemporânea, mas que também pode ser baptizado como “desalinhado”, “não-linear”, “cristalizado”, etc.
Tenho algum receio de empregar a palavra “evolução” nos trabalhos dos artistas. Já acentuei o facto de que Panter data todas as suas vinhetas, por isso é claríssima a organização cronológica do seu trabalho. Pergunto-me é se essa organização ajudará a ler melhor o sentido das suas obras.
No entanto, duas ou três notas de aproximação e distância entre estes dois livros publicados pela Fantagraphics: se em Purgatory há uma bem mais sentida invasão de referências externas (da cultura popular, de massas, da música, da literatura clássica e moderna, do cinema, etc.), em Inferno há uma maior incidência à memória pessoal da obra de comics de Panter (com pequenos papéis de variadíssimas personagens de trabalhos anteriores, como Hup, Fluke, Grud(t)en e Zipper, Pee-Dog, e ainda a sua reutilização de kaiju ou monstros de séries japonesas de televisão) - o que não é de estranhar, na reutilização do que havia sido publicado na série Jimbo da Bongo, de que se dá aqui a capa do no. 7, coincidente com a capa do presente livro. O facto de que Inferno segue aparentemente uma grelha simples e regular (usualmente uma típica grelha de 2x3) – ao passo que essa estruturação em Purgatory é ainda regular mas mais “tabular” (Fresnault-Deruelle*) - parece ser uma paródia da desorganização interna a que Panter vota os seus trabalhos. Por esses dois factores, É-se tentado a fazer uma interpretação da viagem, pela ordem da Divina Comédia de Inferno → Purgatório, de um gradual abandono de um estreito círculo de Jimbo para o do mundo... seguindo-se o Paraíso, uma diluição total no que é outro. Valise, o Virgílio de Jimbo, desaparecera na prancha 27 de Purgatory, dando lugar a figuras femininas (as Matelda e Beatriz desta personagem); e Inferno termina no mesmo espaço onde Purgatory começa. Repito-o, imagino que a viagem de Jimbo não tenha terminado sob o céu estrelado do exterior do Inferno nem nas fontes das águas da memória do Purgatório, mas que sigam ainda mais passeios no futuro, desta feita pelas rosas de luz do Paraíso.
(Nota: mais uma vez, os dourados da capa não surgem bem no meu scanner)
(Nota *: tinha escrito "Peeters", que a emprega nos seus escritos; mas havia sido um termo cunhado por estoutro autor sobre estética; agradecimentos a D. Isabelinho pela falta)
Uptight. Jordan Crane (Fantagraphics/Reddingk)
Este é o primeiro comicbook de Crane, isto é, segundo o formato tradicional destas publicações nos Estados Unidos, como se o autor tivesse finalmente atingido o patamar de entrada “oficial” no mercado mainstream da banda desenhada norte-americana (e Canadá)... Porém, esta não é, de todo, a primeira aventura de edição de Crane, que já editou vários trabalhos em antologias (Non, SPX, Kramer’s Ergot, p. ex.), minicomics e outras publicações, pela sua antiga Red Ink, agora Reddingk.
Com duas histórias, a primeira ocupa 9 pranchas e é um curto e simples conto de um adolescente a lidar com as dores do crescimento e a quase imperatividade em se rebelar contra o mundo. O primeiro obstáculo mostrar-lhe-á, todavia, que nem sempre a rebeldia é fácil e que pode mesmo iluminar algo que se percepcionava erroneamente antes. Não é claro se se trata de um episódio de uma personagem a continuar, ou se faz parte das pequenas histórias que Crane vai produzindo como se servissem de contraponto a projectos maiores (The Last Lonely Saturday, The Clouds Above).
A segunda metade do livro (13 pranchas) é ocupada por mais um episódio de uma série intitulada Keeping Two, da qual publicara já dois livros, tendo-a iniciado na highwaterbooks.com. Trata-se, superficialmente, da relação entre um casal, uma pequena obsessão pelo número três, relacionando-o com a morte, quer as reais, verificadas, que pontuam os episódios internos da trama, quer com as que o protagonista, “William” (indicado no site, não nos livros), parece esperar que se venham a dar. Este é o mais criativo e interessante exercício narrativo de que tenho conhecimento de Jordan Crane. Existem vários níveis de estórias dentro da estória (a que se dá o nome de hipodiegético na narratologia, e que os relatos encaixados de Xerazade são o grande modelo), uma confluência de vários recuos no tempo e recontares de episódios já verificados a partir de perspectivas diferentes e, o mais importante, é a presença, ou melhor, a espécie de presença da morte nestas páginas. Já em The Last Lonely Saturday Crane havia visitado o tema dos fantasmas, mas ao passo que nessoutro livrinho os fantasmas eram praticamente tangíveis, e ocupavam um papel de agente numa rábula infeliz/feliz, Keeping Two, como o próprio título indica – manter algo à distância, como uma defesa – é bem mais melancólico. Aliás, se há alguma antinomia entre esses dois títulos do autor californiano, é precisamente aquela que Freud estabeleceu entre Luto e Melancolia: numa súmula terrivelmente redutora, do primeiro faz-se a “digestão”, ultrapassa-se e avança-se, ao passo que se fica preso, afixado à segunda, que provoca uma “indigestão” (fica a remoer).
E de facto os fantasmas da morte ficam-se por Keeping Two, imiscuem-se mesmo entre os vivos e raptam-nos. É extremamente importante entender essa indecisão do espaço que a morte ocupa neste universo diegético criado por Crane, indecisão que, ao mesmo tempo e como já referido, lhe permite desarrumar o tempo...