Não é que se deva começar uma história, uma ideia, uma oferta, um programa, seja o que for, enfim, pela negativa, mas a leitura de “contos infantis”, ao ser confrontada com a leitura de A Árvore que dava olhos, de João Paulo Cotrim com imagens de Maria Keil, leva à abertura de um espaço negativo nesse primeiro bloco, por onde se insere a grande positividade deste título particular.
Muitos dos “contos infantis” são escritos a partir do seguinte pressuposto: Sou um escritor adulto. Penso como um adulto. Quero escrever para crianças (uma noção abstracta de “criança”, ou que passa pelo modelo demasiado concreto de “o meu filho”, “o meu sobrinho”, etc.). Para escrever para crianças pensarei como uma criança. Mas, sempre, pensarei como um adulto pensa que uma criança pensa. Não como uma criança pensa.
O pressuposto seguinte, já existente em semente no anterior reza: a criança não pensa como um adulto. O que é quase dizer: a criança não pensa. Esta é (um)a grande falácia. O que se passa é que a criança não pensa como um adulto, mas o que isso quer dizer é que ainda não erigiu as dimensões mais socializadas da delimitação das associações, analogias, imagens, correspondências, possibilidades, dúvidas que fazem crescer a água na boca. Uma criança pergunta: “porque é que esta rua é a descer?” Um adulto sorri porque sabe que uma rua que desce também sobe, e que a lógica furada da criança acontece por inocência, falta de treino associativo, completude conceptual, lógica propriamente dita. Todavia, o adulto não está errado mas erra na explicação. A criança também apresenta uma cadeia de associações, mas à rua ligam-se as suas pernas, o modo como os joelhos dobram, a direcção e o esforço e, no fundo, aquela rua só desce.
O invento do conto infantil recorre-se usualmente das explicações do mundo que se bebem em contos tradicionais, ou de soluções programáticas e logísticas para a salvação do mundo (livros que ensinam a separar o lixo, a tomar cuidado com o ambiente, a atravessar a estrada, a ler as cartilhas de direitos), ou de contos maravilhosos onde é o fogo-fátuo da maravilha superficial que pinta todo o trabalho narrativo e não a presença dúbia de uma ideia que se completa sem palavras. É raro surgirem contos que de facto despoletem esse espaço positivo, o de “podia ser assim”, como disse, no meio do rastro negativo do “deve ser assim”. São raros, mas não inexistentes. Os livros de Umberto Eco e Eugénio Carmi abriram um, o de Werner Holzwarth e Wolf Erlbruch abriu outro, António Torrado uma e outra vez (A Cadeira que sabe Música continua a ser um livro que deveria lançar a sua sombra sobre os demais), António Pocinho entreabriu-o, e João Paulo Cotrim consegue tantos outros. E como? Ou porquê? Ou de que modo?
Esquecendo as crianças. Retirando-as do alvo.
Quer dizer, afastando de um modo decisivo a noção de criança enquanto pequeno cidadão em formação que precisa da orientação daqueles que já sabem (mas se são os que já sabem quem colocou o mundo na situação que está, que direito têm de ensinar o contrário?). Ou a noção de criança enquanto pequena criatura que apenas é feita de inocência e que precisa de ser protegida do mundo terrível à sua volta e acalentada para um espaço que a deverá apequenar tanto quanto possível durante o maior tempo possível (como as bonsai, eternamente pequena, eternamente um objecto de beleza, mas também de tortura sobre o crescimento e impedimento da reprodução) É preciso que o conto seja literário na maior das suas condições: a de abrir um espaço de diálogo. E as crianças podem ser um dialogante vivo, inteligente e perspicaz sobre o mundo que os espera um pouco à frente.
A Árvore que dava olhos não tem história, nem moral, nem sequer uma estrutura narrativa que possa ser subjugada a um “tema” ou sequer “ideia”. Porque a ideia do livro (tal como noutros livros “infantis” de Cotrim) está contida a cada passo, é uma construção permanente mas ao mesmo tempo evanescente. A árvore-protagonista oscila entre a explicação do que é (“é assim”, “sou apenas uma árvore...”) e questões do que poderia ser (“posso ser...”, “vou ser...”, “podia”, “queria”, “vou crescer para isso”). Tanto apresenta uma ideia das virtualidades de todas as árvores como o constrangimento real a que elas se subjugam.
Os desenhos de Maria Keil seguem o mesmo percurso, em que arreda para fora do seu espaço a pirotecnia, ou uma noção chã de ilustração, e instaura a presença de uma série de desenhos em que cada pequena variação em torno da árvore corresponde às noções flutuantes nas palavras do conto. O despojamento e a simplicidade não têm necessariamente de passar pelo desassombro pelo mundo, e Maria Keil mostra um dos caminhos pelos quais o assombro se mantém nas imagens simples. Veja-se como as nuvens, o fogo do sol de Verão, os olhos, as cadeiras voadoras, os riscos do “céu inteiro”, como tudo isto fica preso aos ramos da árvore como pedaços de papagaios de papel ou ideias sem fio ficariam acidentalmente presos, despojos exteriores à árvore tornados frutos da mesma árvore. Uma analogia perfeita para o que significa uma “ideia transmitida”!
Muitos dos “contos infantis” são escritos a partir do seguinte pressuposto: Sou um escritor adulto. Penso como um adulto. Quero escrever para crianças (uma noção abstracta de “criança”, ou que passa pelo modelo demasiado concreto de “o meu filho”, “o meu sobrinho”, etc.). Para escrever para crianças pensarei como uma criança. Mas, sempre, pensarei como um adulto pensa que uma criança pensa. Não como uma criança pensa.
O pressuposto seguinte, já existente em semente no anterior reza: a criança não pensa como um adulto. O que é quase dizer: a criança não pensa. Esta é (um)a grande falácia. O que se passa é que a criança não pensa como um adulto, mas o que isso quer dizer é que ainda não erigiu as dimensões mais socializadas da delimitação das associações, analogias, imagens, correspondências, possibilidades, dúvidas que fazem crescer a água na boca. Uma criança pergunta: “porque é que esta rua é a descer?” Um adulto sorri porque sabe que uma rua que desce também sobe, e que a lógica furada da criança acontece por inocência, falta de treino associativo, completude conceptual, lógica propriamente dita. Todavia, o adulto não está errado mas erra na explicação. A criança também apresenta uma cadeia de associações, mas à rua ligam-se as suas pernas, o modo como os joelhos dobram, a direcção e o esforço e, no fundo, aquela rua só desce.
O invento do conto infantil recorre-se usualmente das explicações do mundo que se bebem em contos tradicionais, ou de soluções programáticas e logísticas para a salvação do mundo (livros que ensinam a separar o lixo, a tomar cuidado com o ambiente, a atravessar a estrada, a ler as cartilhas de direitos), ou de contos maravilhosos onde é o fogo-fátuo da maravilha superficial que pinta todo o trabalho narrativo e não a presença dúbia de uma ideia que se completa sem palavras. É raro surgirem contos que de facto despoletem esse espaço positivo, o de “podia ser assim”, como disse, no meio do rastro negativo do “deve ser assim”. São raros, mas não inexistentes. Os livros de Umberto Eco e Eugénio Carmi abriram um, o de Werner Holzwarth e Wolf Erlbruch abriu outro, António Torrado uma e outra vez (A Cadeira que sabe Música continua a ser um livro que deveria lançar a sua sombra sobre os demais), António Pocinho entreabriu-o, e João Paulo Cotrim consegue tantos outros. E como? Ou porquê? Ou de que modo?
Esquecendo as crianças. Retirando-as do alvo.
Quer dizer, afastando de um modo decisivo a noção de criança enquanto pequeno cidadão em formação que precisa da orientação daqueles que já sabem (mas se são os que já sabem quem colocou o mundo na situação que está, que direito têm de ensinar o contrário?). Ou a noção de criança enquanto pequena criatura que apenas é feita de inocência e que precisa de ser protegida do mundo terrível à sua volta e acalentada para um espaço que a deverá apequenar tanto quanto possível durante o maior tempo possível (como as bonsai, eternamente pequena, eternamente um objecto de beleza, mas também de tortura sobre o crescimento e impedimento da reprodução) É preciso que o conto seja literário na maior das suas condições: a de abrir um espaço de diálogo. E as crianças podem ser um dialogante vivo, inteligente e perspicaz sobre o mundo que os espera um pouco à frente.
A Árvore que dava olhos não tem história, nem moral, nem sequer uma estrutura narrativa que possa ser subjugada a um “tema” ou sequer “ideia”. Porque a ideia do livro (tal como noutros livros “infantis” de Cotrim) está contida a cada passo, é uma construção permanente mas ao mesmo tempo evanescente. A árvore-protagonista oscila entre a explicação do que é (“é assim”, “sou apenas uma árvore...”) e questões do que poderia ser (“posso ser...”, “vou ser...”, “podia”, “queria”, “vou crescer para isso”). Tanto apresenta uma ideia das virtualidades de todas as árvores como o constrangimento real a que elas se subjugam.
Os desenhos de Maria Keil seguem o mesmo percurso, em que arreda para fora do seu espaço a pirotecnia, ou uma noção chã de ilustração, e instaura a presença de uma série de desenhos em que cada pequena variação em torno da árvore corresponde às noções flutuantes nas palavras do conto. O despojamento e a simplicidade não têm necessariamente de passar pelo desassombro pelo mundo, e Maria Keil mostra um dos caminhos pelos quais o assombro se mantém nas imagens simples. Veja-se como as nuvens, o fogo do sol de Verão, os olhos, as cadeiras voadoras, os riscos do “céu inteiro”, como tudo isto fica preso aos ramos da árvore como pedaços de papagaios de papel ou ideias sem fio ficariam acidentalmente presos, despojos exteriores à árvore tornados frutos da mesma árvore. Uma analogia perfeita para o que significa uma “ideia transmitida”!
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