Rui Tenreiro é um autor português que vive no norte da Europa (fomos informados que, presentemente, mudou-se para a Suécia) e é lá que tem trabalhado em banda desenhada, surgindo histórias curtas em antologias, publicações várias e, agora, este volume, intitulado, em norueguês, Høytiden. Existe uma tradução francesa e, no site do autor, poderão encontrar toda uma série de explicações e imagens que nos ajudam a perceber alguns pormenores da obra, e suas condições de produção, como, por exemplo, a melhor maneira de traduzir o título: “A celebração”, por exemplo, como algo de ritualístico e de solene que soe passar-se no seio de uma comunidade, digamos, tradicional. (Seja como for, este exemplar é a versão norueguesa e lemo-la, com a ajuda de tradutores automáticos. Serve apenas como aviso à navegação de que a sua fruição – do texto verbal, isto é, possa não ter sido feita sem escolhos.)
A construção de um contexto espacio-temporal parece não ser feita para entrar num diálogo naturalista – uma ficção imersa de facto no antigo Japão medieval e xintoísta – mas antes como ponto de partida, tão pertinente como outro qualquer, para o desencadear das relações entre as personagens. É natural que a circularidade da narrativa (termina onde começara, mas sem repetição de imagens, como, por exemplo, em Varlot Soldado, de Tardi e Didier Daeninckx) tenha, como explica o autor, ecos na filosofia religiosa do Xinto, mas há um grau suficiente de autonomia em relação a essas informações factuais para fruirmos da obra enquanto tal, objecto de ficção, de arte, objecto próprio. E essa circularidade ganha um corpo perfeitamente identificável no interior da obra, associando-se a uma maneira relativamente simples de entender os temas que mais se prestam a essa mesma circularidade: as reincarnações, o balanço da causalidade (ou o karma), o reequilíbrio dos humores e das justiças, Nemésis e Fortuna.
Os desenhos operam entre uma clareza conseguida pelas mínimas linhas na construção das personagens, quase tão iconográficas como as da escola da dita “linha clara”, mas mais simples ainda, e, em relação aos espaços, um equilibrado e oscilante jogo de tramas e manchas, mais adensadas quando se pretende mostrar os bosques apertados, ou a noite (perto mesmo dos efeitos da xilogravura), um interior escurecido...
Høytiden desenrola-se de uma maneira muito directa: dois viajantes (o “viajante com lenço” e o “viajante com lenço”) atravessam uma região e deparar-se-ão com uma criatura imensa e fantástica. Não a podendo mover nem salvar, nem sequer se apercebendo o que fazer, tentam alcançar a vila mais próxima. Depois de pernoitarem, uma (nova) estranha personagem indica-lhes o caminho à aldeia, apontando um caminho a tomar numa bifurcação. Em todas as culturas, independentemente dos meridianos, da época e do grau civilizacional, os caminhos existem, ainda que assumam diferentes significados – basta pensar no caminho da vida de um xamã inuíte, nos caminhos do sonho dos aborígenes australianos, na estrada para Tebas, ou os nos passeios de Walser e de Leopold Bloom -, mas a bifurcação dá sempre azo à ideia de opção e de destino e de paralelismo. Em Høytiden, há indícios de que não é excepção, se bem que a opção que não foi tomada só tenha uma presença fantasmática na circularidade a que nos referimos antes.
Existem pormenores importantes a decorrer no fundo das imagens, como se não obstante as acções centrais decorrerem em primeiro plano, existir um espaço secundário suficiente para a criação de outros acontecimentos, os quais nos caberá a nós o seu relacionamento com a trama principal. Notam-se linhas ou nuvens-fantasma atravessando por detrás das árvores, um tronco ardendo, um homem mascarado de lobo... Algumas dessas imagens misteriosas deixá-lo-ão de ser, ao serem explicadas pelas novas contextualizações – a chegada dos viajantes à aldeia, um ancião explicitando os rituais -, mas há sempre como que um resto de mistério deixado atrás, como uma fímbria de um pano que se rasgasse, aquilo que se desvendou, um resquício, preso mesmo naquilo que passa por “solução”. Isto é, a quota-parte de enigma que se mantém agarrada à solução. O uso de uma segunda cor (diferente entre as imagens no site e na versão do livro) não é inócuo nem feito ao acaso, assumindo essa cor, em momentos-chave, o protagonismo da acção, sublinhando o carácter fantasmático que se desenha neste livro (como nesta imagem, retirada do site).
Fazer correspondências e ligações entre fontes e imaginários é desnecessário, uma vez que os textos do próprio autor, indicados acima, ajudam a uma cartografia possível. O que se mantém, e ainda faz parte do resto do enigma discutido acima, é a ambiência das transmutações, da presença do maravilhoso no caminho dos viajantes (a criatura, um ovo, a possessão do corvo, o final)... e na insuspeitada violência da reacção dos aldeões face ao novo, tendo até então sido dada a ideia de que esta seria uma população bem entregue e em sintonia com os ritmos da natureza (a sua própria circularidade). Mas é aqui que surge uma questão, irrespondível: tratar-se-á a súbita eclosão do ovo que era guardado na aldeia algo de verdadeiramente inesperado? Será uma interrupção do ciclo de fertilidade a que todos se entregam? Então, aperceber-nos-íamos das razões da raiva. Ou tratar-se-á de algo que ocorre repetidamente, como a própria estrutura narrativa parece querer levar a crer? Ainda assim, há uma terceira possibilidade: todos estes acontecimentos são cíclicos, e a destruição a que a populaça se entrega faz parte integrante desse rito. (claro que há ainda uma quarta possibilidade, que é a de eu não ter entendido bem a história, recorrendo a uma tradução suspeita).
Podemos ainda intentar um outro caminho... Na casa do ancião Baltazar, na aldeia a que os viajantes chegam, o quarto onde todos se reúnem está decorado com montanhas (idêntico ao vulcão Fuji), com o topo coberto de neve, cerejeiras despidas, flocos tombando, os traços do vento. É o que surge na capa. A porta de correr separa um quarto do outro. A permutabilidade entre as portas-passagem e as funções do quarto é algo de sobejamente conhecido, e Roland Barthes descreveu-a de um modo poético em L’Empire des Signes. Tenreiro trata destes espaços como se se tratassem todos de duas dimensões nas quais se pudessem desenrolar acções vivas. Repare-se na capa. A informação que dei levará à simples ideia de que se trata de uma criatura (o corvo-fantasma) abrindo a porta desde o outro lado para passar para este. Nada de mais natural num espaço a três (ou quatro) dimensões. As tábuas no chão do quarto ajudam-nos a ancorar essa ideia, essa perspectiva de naturalismo. No entanto, é ainda possível olhar para essa mesma imagem, informando desse modo a obra, ou sendo ela informada pela obra, de que se trata de uma passagem de um “outro lado” da realidade para “este lado”, um trânsito possível entre o mundo natural e aquele outro de onde vêm as criaturas maravilhosas, fantásticas e fabulosas (nas estritas acepções de cada palavra; poderíamos voltar aqui às teorias de Alan Moore a propósito da existência da Imaginação enquanto território palpável) que vivem neste livro. E isso far-nos-á recordar a promessa daquele koan das dez imagens do vaqueiro (ainda que seja do Zen, terá afinidades com o círculo do Tao, origem do Xinto), o qual termina com um círculo transcendente, das quais as figuras do vaqueiro jovem e do touro desapareceram. A um só tempo, conjuga-se aí a circularidade, o cíclico, o trabalho até ao transcendente, as opções coroadas, e uma imagem que apenas existe a duas dimensões, mas da qual parte e para a qual convergem todas as outras dimensões.
O livro é ainda acompanhado com um fanzine [ver nota final e comentários], com quatro pranchas, desenhadas a lápis (ou carvão), ainda com o aspecto de esquiço. Intitula-se The way to, e mostra-nos os mesmos viajantes ainda no caminho denso dos bosques. O título poder-nos-ia indicar que se trataria de um episódio antes dos eventos de A Celebração. Outros pormenores – um deles viaja com uma bota improvisada, encontram cascas de ovos de pássaro partidas e aranhas em torno – apontam para que seja uma “alternativa”, quem sabe, um outro caminho que tenham tomado... É um modo curioso de complementar, desarrumando, a leitura do livro. A capa, como aqui se vê, parece fazer-nos retornar às ideias apresentadas acima, de um modo que nos impede de fechar quer o caminho dos viajantes quer a interpretação de Høytiden.
Não se prevê para breve uma edição portuguesa.
[O fanzine não faz parte integrante da obra, mas foram emprestadas ambas as publicações ao mesmo tempo, o que levou a esse erro. No entanto, uma vez que as personagens são as mesmas e há outros elementos narrativos que associam ambos os objectos, mantenho o comentário anterior, feita esta ressalva.]
Nota: agradecimentos a Marcos Farrajota, pelo empréstimo do livro e informações gerais.
24 de setembro de 2008
Høytiden. Rui Tenreiro (Jippi Forlag)
Publicada por Pedro Moura à(s) 8:06 da tarde
Etiquetas: Portugal
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5 comentários:
o fanzine fui eu que acrescentei não faz parte do livro... sorry!
Meu erro também. Mas é pena, serviria mesmo de um complemento á narrativa misterioso e dá a adivinhar mais material ou opções de desenvolvimento do autor...
PM
Obrigado pelo artigo, é muito interessante. A fanzine é na verdade parte do livro, mas só foram feitas 15 cópias. Meti algumas fanzines ao acaso em diversas cópias e não faço ideia quem as tenha apahnado. Na fanzine é apresentada o que poderia ser uma ponte de ligação entre este livro e uma possível sequela.
Rui Tenreiro
Olá, Rui.
Obrigado pelas tuas palavras. O teu trabalho é que é interessante. Espero ver mais num futuro próximo. Não há dúvidas de que o fanzine é uma espécie de passagem, para as personagens e para nós. Cá estaremos à espera de ver onde leva...
Obrigado!
Pedro
Um update sobre este assunto:
http://tenreiro.tumblr.com/post/1087278434
Abraço!
— Rui
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