Algures, talvez numa das suas longas entrevistas, George Steiner disse que os clássicos se devem ler de lápis na mão. Para sublinhar, pescar, pressionar a nossa atenção nova e prementemente sobre um aspecto, transformar a nossa impressão mental em impressão propriamente dita. Há pessoas que levam essa lição ainda mais longe, empregando o lápis (ou quaisquer outros instrumentos riscadores) para sublinhar todas as impressões que os assaltam antes que em vaga memória se moldem, todas as breves ideias que se os assolam antes que para sempre se esfumem, todas as breves vontades que os assaltam antes que na indiferença se dissipem. Munidos de lápis, sublinha-se a vida.
Esses traços podem sobreviver, de algum modo, em papéis soltos, notas, margens de livros, nachlass, corpos volantes que não deixam de ter o seu brilho particular (Leonardo, Pessoa, Walser), e que poderão mesmo vir a constituir uma “obra maior” (o Passagenwerk de Benjamin, por exemplo). Mas há um fascínio particular, uma magia especial conseguida pelo facto de alguém deixar um caderno inteiro, folha marcada atrás folha marcada dessas acções de sublinhamento momentâneo transformado em património. Cadernos, diários, blocos. Há uma ideia qualquer de completude que nasce do uso de um livrinho encadernado, esteja este todo rabiscado ou só por metade, seja ele portador de garatujas ou de pequenas obras-mestras. É óbvio que a ideia de “património” talvez se reforce se o autor desse caderninho tiver deixado um outro património (mais “acabado”) algures, que informe estoutro, mas não é impensável que alguém deixe em herança apenas esses breves instantes congelados em papel onde nenhuma outra “obra” exista.
O presente livro, tal qual o de Salavisa (de que falamos aqui), reúne exemplos de diários/livros/cadernos/blocos destes de várias pessoas, possam estas ser vistas como artistas ou não. Ao contrário do volume editado por Eduardo Salavisa, Drawing from life. The Journal as Art, de Jennifer New, tem a pretensão de apresentar uma imagem organizada deste tipo de produções. Após um brevíssimo texto de introdução, em que explora as razões que a levaram a ela mesmo, New, criar “diários” seus, procura identificar o que preside este seu trabalho de colação e apresentação, estabelecendo desde logo quatro categorias que entende como pertinentes na taxonomia dos mesmos, cada um sob um signo, não de um género (como exemplo “livros de artista, diários de viagem, e livros de campo de cientistas”), mas de um foco de interesse e de acção. Essas categorias estão dispostas num círculo que lhes permitem misturar-se... São elas a “observação”, a “reflexão”, a “exploração” e a “criação”. Estas categorias podem ser entendidas ora como passos sucessivos de uma mesma pulsão, ora como estratégias diferentes do tal sublinhar a que aludi ao início. Cada uma destas categorias é ilustrada com vários exemplos, e nem todas passam pelo desenho (a fotografia é a matéria de expressão dos diários – bem diferentes daquilo que poderíamos esperar – de Renato Umal e de Tucker Shaw), algumas sendo pequenas procuras da memória do pulso enquanto este desenha (como as ilustrações médicas em esboço de Andrew Swift, ou as colecções de rostos a cada dia pelo psiquiatra Martin Wilner), ou passos necessários para que desemboquem numa obra (os apontamentos de David Byrne, aqui ao lado, talvez escrevendo as letras de futuras canções, a evolução a par e passo das telas de Mike Roberts, de quem mostramos acima uma página)... Apesar da autora dizer que se trata de um círculo, ela trata cada uma das categorias, ou secções, de forma separada, procurando estabelecer uma razão de fundo que têm a ver com cada uma destas acções separadas. A observação tem a ver com um apreender e um prender aquilo que nos atravessa o olhar – animais num aquário, plantas num passeio, o nosso rosto de cada dia, os rostos dos outros todos os dias, os mapas das vilas à nossa volta, o tempo meteorológico ao longo de meses, a observação cuidada de uma estação geológica – ou um olhar interno – diários de sonhos. A reflexão é um passo adiante, em que as observações sucessivas – de rostos, de pratos, de temas gráficos, de impressões obsessivas – se aglomeram num corpo de ideias e inclinações mais expressivos. A exploração tem a ver com uma pequena distância em relação ao olhar – é retratar os espaços e pessoas das nossas viagens mas procurando entendê-los através do apontamento, da exactidão da impressão, da colação de dados antropológicos procurando ver que desenho final emergirá dela, da captura de ideias que flutuam rapidamente, sejam elas letras de canções, fórmulas matemáticas, desenhos, lições, pedaços de papel arrancados um pouco por todo o lado. E finalmente a criação, em que o diário gráfico se abre enquanto plataforma de partida para objectos ditos “acabados”, mas o livro possa servir de retrato do processo onde a obra é o objecto final – arquitectura ou jardinagem, pintura ou fotografia, cinema ou tapeçaria...
16 de março de 2009
Drawing from Life. The Journal as Art. Jennifer New (Princeton Architectural Press)
Publicada por Pedro Moura à(s) 5:44 da tarde
Etiquetas: Academia, Territórios contíguos
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