27 de outubro de 2009

Ilustrações para Gertrude Stein, O mundo é redondo. Jorge Nesbitt (João Esteves de Oliveira)

Jorge Nesbitt é um daqueles artistas que explora o fundo da forma, aplicando-se à reformulação, à reforma literal, dos instrumentos de plasticidade do seu desenho de acordo com o programa previsto do material com o qual dialoga. Vimos antes em How to look at pictures uma criação que passava pelos gestos de cobrimento e apagamento para a representação que reescreve, e na adaptação de O Sétimo Selo uma forma de obscurecer as relações através de novos traços sobrepostos. No caso presente, essa mesma filosofia de obscurecimento parece continuar, ainda que ganhe qualificações diferentes. Repete-se em Nesbitt uma frase de Henri Bergson que já havíamos verificado cumprir-se noutros autores, ou nos movimentos que importa seguir para a sua interpretação: “O que é preciso para obter essa conversão não é iluminar o objecto, mas ao contrário obscurecer certos lados dele”. O obscurecimento das ilustrações de Nesbitt para os textos de O mundo é redondo, de Gertrude Stein, numa tradução de Luísa Costa Gomes, é aquele permitido, avançado e aberto pelas silhuetas.
Esta opção figurativa pelas silhuetas implica, desde logo, uma erradicação da psicologia, da expressividade “humana” das personagens, e, a longo prazo, da moral(idade) do conto, espelhando assim o gesto literário previsto na obra de Stein, radicalmente diferente das narrativas ditas “para crianças” existentes até à data, as quais, independentemente dos seus mecanismos internos, previam a chegada a uma “lição”, na sequência da ideia de uma literatura pedagógica lançada por Comenius, Rousseau, etc. (excepções podem ser encontradas nas novelas da Condessa de Ségur, com as suas ilhas de anarquia no comportamento de Sofia, o abstruso terror das narrativas de Lucy Lane Clifford e a multifacetada produção de Carroll). O livro é composto por composições breves em torno de Rosa, o seu amigo Willie, o cão Love, o leão Billie, e tudo o que os pode rodear como forma de brincadeira e conhecimento sobre o mundo. Se este é redondo ou não, é o que cada “aventura” tenta descortinar. Encontramos neste livro uma variação (será mesmo a sua semente?) da famosa frase de Stein: “uma rosa é uma rosa é uma rosa”. O paradoxo da padronização do óbvio e a emergência da variação, ou a questão da diferença e repetição, é uma das matérias centrais neste livro, e as ilustrações de Nesbitt repetem-nas.
Mas isto não quer dizer que haja uma equivalência entre o uso da silhueta e esse emprego a que nos referíamos, de uma voz amoral, objectiva. Não há aqui qualquer tipo de causalidade entre uma forma e um conteúdo. Essa associação nota-se pelo uso específico que Nesbitt faz da silhueta. É bem diverso do de Lotte Reiniger, de Carl Barks, de Jan Pienkowski, de Blanquet, ou de Kara Walker, e de tantos outros, podendo mesmo recuar-se ao teatro de sombras. Reiniger emprega a silhueta para construções visuais maravilhosas (com a ajuda de Berthold Bartosch e Walter Ruttman); Carl Barks reserva-a para momentos particulares de emotividade; Pienkowski utiliza-a como uma espécie de estenografia para narrativas sobejamente conhecidas, fixando-as a um fundo europeu relativamente artificial; Blanquet faz emergir o seu lado expressivo mais mórbido e até macabro, em que o que é invisível se torna mais violento; Walker explora o que ela tem de estereotipado, para sublinhar, reforçar e desagregar os nossos próprios preconceitos. Jorge Nesbitt, por sua vez, parece procurar o seu lado mais mecanicista, objectual, em que as partes das figuras se tornam permutáveis. Há, então, um movimento de desapoderação da parte de Nesbitt, e não um gesto construtivo. Não o sendo em termos de condições de produção, é como se fosse um movimento de regressão a partir das formas, também elas não determinadas, do texto, para uma imagem mais despojada.
Mas é esse mesmo despojamento que permite a tal natureza de permutabilidade. Não é somente o facto do artista polvilhar as ilustrações com brinquedos (peças de Mecanno, palavras cruzadas, esquemas de ponto cruz, balões, as imagens de um Thaumatrópio, soldadinhos, instrumentos de música, bibicletas e cadeiras, as nuvens que assumem formas reconhecíveis, manchas de Rorschach, o canivete para escrever na casca da árvore, o esquema do jogo da macaca, etc.; e podíamos ainda considerar tudo como “brinquedos” se lermos as figuras mesmo das personagens e animais e locais como recortes: numa imagem, Willie tem nas mãos uma tesoura e um leão recortado), mas a própria presença de elementos que se repetem, com maiores ou menores variações, nas múltiplas ilustrações do texto (praticamente uma por texto, com 34 textos separados, de tamanhos e humores diversos, e 36 ilustrações, numa distribuição desigual). Parte da razão desse entreleçamento dever-se-á aos princípios leves de narrativa continuada de capítulo para capítulo. Podemos tanto decidir-nos que O mundo é redondo é uma novela estruturada em capítulos compondo uma viagem (iniciática, se quisermos, como todos os contos tradicionais e clássicos) como sendo uma série de historietas relativamente separadas, poéticas, que poderão completar uma história mais ampla de um modo vago. Essa mesma atitude pode ser devolvida às ilustrações. O facto de elas terem sido alvo de uma exposição, e ainda de uma edição dupla de serigrafias leva-nos a poder olhá-las com um certo grau de autonomia em relação ao texto e de comutabilidade entre elas mesmas. No seu interior, porém, também se verifica o mesmo paradoxo entre separabilidade e unidade: as imagens não se tocam, e parecem imagens recortadas flutuando num fundo branco, ou podem ser agregadas num plano de composição que obedece às regras da perspectiva e da gravidade.
Uma outra característica do trabalho em silhuetas tem a ver com o contorno, o qual não existe na natureza, mas é um dos pilares fundacionais do desenho, desde o gesto apaixonado da jovem de Corinto aos escritos e discusões de Alberti, Vasari, Cellini, Leonardo e tantos outros, numa das mais perenes discussões da história da arte. Nestas ilustrações, é como se Jorge Nesbitt apenas utilizasse o contorno mas o transformasse no único elemento que compusesse os seus desenhos, como se a sombra e o reflexo do desenho fosse a única substância possível de representação.
Na exposição, é possível observar nos desenhos originais o trabalho de base do lápis. Nalguns lugares, como curvaturas, ramos e entrelaçados, pormenores, a tinta não cobriu esses primeiros riscos. Parecem espreitar por debaixo e ao lado dos contornos de tinta, procurando uma outra autonomia. Estes (d)efeitos – pouco importanto serem propositados ou não, sendo esse factor pertença do artista, não da obra – não são reproduzidos (nem reproduzíveis, eventualmente) no livro, no qual apenas os contornos têm direito de cidadania visual. Há uma camada de “limpeza” no livro que não permite a riqueza da “sujidade” dos desenhos originias. Se bem que tivéssemos um acesso limitado à edição em serigrafia, sabemos que nesse outro caso, essa questão se mantém, já que a unidade da tinta das reproduções não permite aceder ao jogo manual, de esboço, tentativa, deslize, que havia lançado o desenho.
Estas questões de reflexos, variações, geometrias, não parecem ser totalmente deslocadas na leitura e interpretação destas imagens de Nesbitt, pois o resultado visual de algumas daquelas teorias superficialmente apontadas assemelham-se aos dos desenhos do artista. Repare-se, por exemplo, naqueles troços curtos de paisagem reflectida num suposto espelho de água. São quase reproduções das representações visuais do conjunto de Mandelbrot. Esta associação traz-nos à mente a ideia de que a repetição de algumas formas ao longo das ilustrações d’O mundo é redondo, ou o seu cruzamento e mistura parcial, não são somente uma questão de variação e iteração das personagens, como apontámos atrás, mas uma espécie de contínua replicação interna do padrão geral, tal como previsto pelo famoso matemático. E do texto: “Rosa lá continuou aspirando e respirando e empurrando e empuxando e rolando, às vezes só rolava, e mexendo-se” (“A Noite”).
Mas há momentos de irrupção intempestiva das ilustrações. Interferências que não parecem previstas no texto, ou que se desencadeiam por interpretações paralelas, e que podem ser vistas como uma espécie de comentário maior da parte do ilustrador sobre a matéria textual sobre a qual trabalha, comentário que não deixa de proceder daquele modo “por apagamento” que indicámos atrás. A camada mais visível de todas é o facto da cor preferida de Rosa ser o azul, mas estas ilustrações seren a preto. Não terá a ver (somente, forçosamente) com uma questão de factura e financeira: é uma tradução, a qual, aliada ao emprego da silhueta, lança tudo num mesmo indistinto plano. Falámos do Thaumascópio, e a primeira palavra grega que compõem esse nome é θαúμα, que é traduzível como “observar com espanto”, ou “milagre”. A persistência de figuras que nos lembram os testes de Rorschach, as variações e recombinações de algumas figuras (a mais surpreendente é a de Rosa em pé, com as pernas substituídas por uma espécie de ponto de interrogação, pino de Zé Sempre em Pé, e com um galhito na mão, recordando o jogo do Sabichão), a colocação de algumas das figuras em pontos recuados ou laterais das imagens, levando a que não possam ser “lidas” na totalidade, e, acima de tudo, a estranha estrutura que se ergue no meio da planície ou lago ao lado do capítulo “As árvores e as pedras por baixo delas” (na verdade, uma estrutura muito similar aos escombros das Torres Gémeas) levam-nos a pensar que a liberdade de tradução imagética de Nesbitt o leva a fazer emergir sentidos ocultos, ou de retornos, ou de segredos fantasmáticos por detrás do aparentemente lúdico texto de Stein.
Esses “escombros” estão ao lado de um texto em que se lê “Ora quando se está sozinho completamente sozinho no bosque mesmo que o bosque seja lindo e quente e haja uma cadeira azul que não pode fazer nunca mal nenhum, mesmo assim se ouvirmos a nossa própria voz a cantar ou mesmo só a falar então ouvir uma coisa qualquer mesmo que seja muito nossa como é a nossa própria voz e estamos sozinhos e depois ouvimos a nossa própria voz então é assustador”.
Neste livro, é preciso “perdermo-nos no bosque” de Stein até chegar ao centro do seu silêncio e então, só então, “observar com espanto” o assombro da voz das ilustrações de Jorge Nesbitt.
Mais informações: ver site da galeria.

Sem comentários: