21 de março de 2011

Três trabalhos (criados, produzidos ou coordenados) de Eduardo Salavisa.

No seu livro mais conhecido, L’invention du quotidien (vol. 1, Arts de faire), Michel de Certau elabora uma oposição entre o olhar panorâmico - um olhar de cima que abarca uma certa expansão e o transforma numa unidade determinada, associada à ideia de propriedade industrial burguesa e a novos modos de controle e poder, relativo ao que se chama, por sua vez, de olhar panóptico (aliás, como se sabe, de Certau responde nessa parte do seu livro a Foucault) - e um outro olhar, mais atento às tensões móveis existentes ao rés-da-rua, ao quotidiano, e que emerge daquilo que ele chama de práticas do espaço. Essa oposição é, portanto, entre “o modo colectivo da gestão” e “o modo individual de uma reapropriação”, o qual leva a processos “multiformes, resistentes, astuciosos e obstinados”. Temos, portanto, de um lado os discursos que pretendem “ideologizar”, e do outro, “combinações de poder sem identidade visível, sem perspectivas perceptíveis, sem transparência racional - impossíveis de gerir”. Se bem que estas palavras e as suas explanações adicionais façam compreender que essas mesmas práticas do quotidiano não permitam a criação de marcas gráficas, isto é, de marcas legíveis ou sequer visíveis, e mesmo que isto represente uma certa violência para com o seu pensamento, procuremos formas de entender como fazer representar essas mesmas práticas. Ou por outras palavras, como transformar o passeio e a observação em desenhos. (Mais) 

Possivelmente, temos num outro pensador uma saída do enigma. Esta experiência das práticas do espaço consubstanciam-se sobretudo no acto do caminhar ou do passeio. Ora, este acto é um fruto de um certo grau de desenvolvimento: citadino, ocidental, pós-industrial, culto, ele é um típico produto da modernidade (bem diverso de outros tipos de peripatetismo ou de deambulações orientais). É nesse sentido que o que buscamos se associa igualmente àquela ideia de Walter Benjamin - cujos escritos vogaram bastas vezes em torno de temas como da cidade como texto, da elaboração de práticas contrárias à mitificação de discursos monodológicos da história e da política, do acto do flâneur como libertação da memória dos espaços, confundindo o passado com o presente, das ruas enquanto local de textos móveis que digladiam pela nossa atenção, e que, por isso, a torna próxima da “distracção” (uma forma especial de atenção fragmentada da moderninade) - que leva à oposição entre a fotografia e as plantas (ou mapas) das cidades. Escreve ele em “Paris, a cidade no espelho”: “Existe um conhecimento ultravioleta e outro infravermelho desta cidade, que não cabem já na forma do livro: a fotografia e a planta - o mais exacto conhecimento do pormenor e do todo” (in Imagens do Pensamento, Assírio & Alvim: pgs. 176-177). O livro seria portanto um espaço de representação da cidade para além de cujas extremidades apenas existiria algo captável por essas duas outras formas de representação.

É óbvio que as determinações da fotografia e das plantas/mapas, e aquelas existentes entre ambas, são demasiado complexas e estratificadas para as poder explorar neste espaço - a questão da mecanicidade quer da produção quer da reprodução (ou da reprodução que é a sua produção), os graus de iconicidade, referencialidade, e esquematismo, os modos de apreensão e uso, etc. -, mas se atentarmos àquela ideia que coloca por um lado o pormenor específico da fotografia de um canto de uma rua, de uma porta ou um corrimão esculpido (lembramo-nos do interesse de Benjamin por Atget) e por outro o todo discursivo e ideológico do mapa (militar ou turístico), será também óbvio que encontraríamos certas classes do desenho (recordemo-nos aqui que o mapa ou uma planta são um desenho) próximas da primeira tipologia. Não sendo uma devolução referenciada de um espaço exacto, o desenho pode constituir um acto pelo menos tentativo de recriar a impressão fátua da experiência-prática do espaço pelo flâneur. Estamos a falar, claro, dos desenhos afectos ao universo do caderno de viagens. (Como já havíamos falado a propósito dos Diários de Viagem, a questão da nomenclatura é complicada, e repetimos o facto de não estarmos naquele grupo que crê serem os nomes possíveis cercas suficientemente estanques e claras.)

Estas três publicações são diferentes entre si nas suas especificidades, mas são contributos para um mesmo território criativo e de pensamento-na-acção, unidos pelo esforço de Eduardo Salavisa. Temos o Diário de Viagem em Cabo Verde, do próprio Salavisa, Diário de Viagem em Lisboa, um projecto coordenado pelo próprio com mais 6 desenhadores, em que sete percursos pelas hipotéticas e míticas sete colinas da cidade se transformam em pretexto de criação de desenhos [ambos Quimera: 2011], e Diários Gráficos em Almada, catálogo de uma exposição no Museu da Cidade de Almada, organizada por Salavisa com mais 29 artistas (e continuação de projectos anteriores) [Câmara Municipal de Almada: 2011]. A escolha de Eduardo Salavisa dos “seus” autores (nos títulos colectivos) é muito ampla, e adivinha-se que quer ser ainda mais ampla. O facto dos dois volumes editados pela Quimera terem características físicas idênticas e mesmo uma numeração apontam para o desejo de dar continuidade efectiva a um projecto - que auscultará este território da forma mais diversa que lhe for possível, estamos seguros. Mais, outra das importâncias dos gestos de Salavisa reside no facto de não estar a perseguir uma qualquer estreita ideia do desenho, seja ele visto enquanto campo de experimentação de autores famosos por outras áreas (a arquitectura, a moda, a ilustração, a animação, a arqueologia, a observação de pássaros ou de peixes, a “captura” de amigos, etc. - tudo áreas onde trabalham alguns dos nomes reunidos) ou como incontestável filtro de beleza (o “belo desenho” - veja-se a citação na capa do catálogo: “Não somos desenhadores perfeitos”, da introdução de Salavisa, ironizando essa…quimera). Mesmo que possa haver coincidências, nada disso opera de forma motora nestes projectos. Se algo se procura, é o prazer inerente do momento, possivelmente fátuo, da produção, do acto. Está nas nossas mãos (olhos) tentar descortinar se esse prazer original está presente ou é devolvido nos desenhos ofertados.

É preciso ter sempre em mente o facto, incontornável mas muitas vezes esquecido ou pelo menos secundarizado na leitura, de que a prática de desenhar e o produto do desenho não são meros reflexos que traduzem automática ou mecanicamente as impressões de uma pessoa (do “autor”). Ela e ele são actos culturais, sociais, frutos de uma educação sígnica. No entanto, o desenho é ainda uma prática na qual o elemento da espontaneidade ocupa um largo espectro dos seus fundamentos. É aí que ele difere do acto da fotografia, é aí que difere das técnicas controladas do desenho aplicado a várias áreas - a ciência, a arqueologia, o desenho de modelo, o desenho dos mapas. Em todos os casos destas publicações - salvo alguns apontamentos “de trabalho” nos diários gráficos de Mário Bismarck, de Guida Casella, de Filipe Franco, de Pedro Salgado, outros - os desenhos são frutos das circunstâncias processuais das práticas de espaço de de Certau: estar numa esquina, sentado numa esplanada, num barco entre ilhas, de saída de um deserto, no meio de um mercado de ofertas exóticas, num jantar entre amigos. É bem possível que os gestos que o pensador francês previa não sejam possíveis de captar e transformar em marcas gráficas de qualquer espécie, mas estas serão aquelas que mais próximas estariam dessa possibilidade. E no que diz respeito à imagem de Benjamin, estas imagens não serão o “mais exacto conhecimento do pormenor”, mas vão mais além dele, pois acrescentam um estímulo, um tremor, uma vibração que vem do interior das pessoas que o criaram no momento em que o criaram.

Há uma expressão em inglês que fala de “spur of the moment”. A inclusão de uma “espora” é feliz, um aguilhão que faz correr mais rápido o sangue nas veias e o material riscador sobre o papel.
Pouco importa se falamos de desenhos “corrigidos”, coloridos ou anotados mais tarde, se superfícies que ganham colagens ou adições tardias, pois o que importa será sempre a ideia do primeiro substrato que foi feita nessas folhas e que jamais as abandonará. É esse o tremor espontâneo que rasga a educação sígnica do desenho e o torna uma arte na qual a expressão tem ainda uma presença fortíssima.

O ensaio de Ruth Rosengarten que acompanha Diário de Viagem em Cabo Verde é desde logo uma peça fundamental nesta discussão. Tratando-se de um texto de uma perspicaz teórica e crítica, e para mais, de uma praticante desta mesma (in)disciplina do desenho “diário” (cuja pertinência não se prende ao carácter de calendário regular mas de ímpeto e libertação), todo ele apresenta aquelas linhas de força que constituem a constelação deste território. Um dos pontos importantes, e que vem no seguimento da última parte da nossa discussão é a forma como a autora fala do modo como os desenhadores incorporam no seu desenho o próprio momento do acto de desenhar, não somente por pormenores de observação do momento - a inclusão de um pé, da mão que desenha, do caderno, de anotações de tempo, circunstâncias, explicações - mas pelas próprias marcas e qualidades do desenho. Os desenhos não mostram somente o que querem representar, mas as coisas representadas no seu acto de observação, ou, como cita Teresa Carneiro no seu ensaio do catálogo de Almada, a partir dos textos de John Berger para a sua seminal série de televisão Ways of Seeing, “Um desenho de uma árvore mostra, não uma árvore, mas uma árvore-a-ser-olhada”, o que é explicitado pela ensaísta e programadora como um “registo desenhado como qualquer coisa detentora de uma experiência temporal de uma multiplicidade de momentos constituídos ao longo de uma experiência que examina não só um olhar mas que também expõe e constrói um determinado modo de olhar através de maneiras específicas de desenhar”. Se a frase se apresenta de uma maneira ela mesmo complexa é porque este específico acto de desenhar em cadernos de viagem, diários gráficos ou outro nome, é um acto complexo que pretende deixar visível na sua marca as várias camadas intervenientes: multiplicidades temporais e de experiência, variações de práticas, movimentos moleculares sobrepostos, aproximações multi-disciplinares, etc. Discutivelmente, noutras áreas, mesmo de desenho, procura-se, se não mesmo a ilusão de uma marca desprovida de gestos humanos, pelo menos a ideia de uma textura coesa e plana. Não é o caso destes desenhos.

É aquele mesmo John Berger quem, no mesmo programa (e depois no livro do mesmo nome), afirmara que “the way we see things is structured by what we know or what we believe”, mostrando como o acto social de observar já é ele mesmo moldado pelos actos sociais, ou posto de outro modo, como muitas vezes as categorias (verbais) presidem e se adiantam às imagens criadas pelo homem. Rosengarten vai mais longe quando engloba o acto da memória nesta prática (eco de Benjamin, se bem que este falasse das memórias dos próprios espaços e não tanto, ou somente, as dos observadores), chamando-a de “mola mnemónica”, o que implica que o que com estes desenhos nos “recordamos é daquele local e daquelas pessoas, como eram quando os desenhámos” (subl. no orig.). Claro que a autora se refere aqui à íntima relação do desenhador com os seus próprios desenhos, criando-se um abismo intransponível - irrepresentável, como quer de Certau - entre a experiência da leitura dos autores e aquela dos restantes leitores (nós). Ainda assim, encontramos aí, mais uma vez, uma tentativa de transpor todos esses abismos.

Em todas as circunstâncias, o editor e programador destas acções dá espaço aos próprios desenhadores para que exponham duas ou três linhas reflexivas sobre esta produção. Tal como nas experiências anteriores, testemunhamos vários graus de complexidade, explicações e posicionamentos, mas mais uma vez o que importa não é tanto um esclarecimento ou uma contribuição decisiva para uma definição aplicável em todos os momentos, mas antes a elaboração de uma fluida configuração de aproximações e tensões que nos permitem desde logo imaginar ou postular futuras integrações, pesquisas, liberdades. Nesse sentido, seja qual for o futuro de todos estes projectos, ele é já potencial.


Reconhecemos, por fim, não estar a ler individualmente as ofertas presentes nestas páginas: o modo como João Catarino cria dimensões moldadas com a junção de poucas cores; como o Panteão emerge em volumes no seu jogo parco de sombras azuis, a atenção de Filipe Leal de Faria para com a arquitectura, retirando-a do seu próprio espaço; como Richard Câmara parece usar ecolines ao acaso mas preparando assim as suas representações como capazes de emoções múltiplas; como Ricardo Cabral não precisa das suas posteriores manipulações digitais para moldar uma perspectiva profunda e viva; como Luís Ançã mescla vários graus de atenção e representação; como Eduardo Salavisa transforma a rapidez caligráfica numa suficientemente impressiva rememoração; como Manuel João Ramos ou Pedro Salgado fazem transformar os seus cadernos gráficos em primeiros instrumentos de impulso para os seus trabalhos respectivos; como Sara Simões procura dividir a sua atenção nos vários objectos do mundo e os isola para melhor chegar à sua prática… Mas ficam essas mesmas imagens em nome de todas, esperando que sejam estímulo o suficiente para procurar maior pesquisa da parte dos leitores. Convidamos desde já a partirem do blog de Salavisa para outras viagens.
Nota: agradecimentos a Eduardo Salavisa pela oferta do catálogo. Parte das discussões que levaram a este texto encontra-se nas próprias publicações citadas, assim como nos ensaios de Ole Frahm e Anthony Enns em Comics and the City.

7 comentários:

José Louro disse...

Li e reli. Belo texto, a exigir reflexão.
Parabéns pla exposição do CCB. O espaço é que não era adequado para tanta tinta, pareceu-me...

Pedro Moura disse...

Caro José Louro,
Muito agradecido pelas suas palavras, e as minhas desculpas por não ter utilizado as suas imagens nestas publicações, que a tornam densa.
E obrigado pelo comentário sobre a exposição - no Museu Berardo (tenho de insistir na clareza institucional) - que se fez dentro de um espartilho, mas com a máxima liberdade.
Abraços,
Pedro

Anónimo disse...

check the spelling for de Certeau!

Pedro Moura disse...

Hello.
Thank you, I did check but I've failed to understand where possible errors may be. Could you point them out, please?
Thank you.
Pedro

MMMNNNRRRG disse...

amanhã, granda diário da tour da CCC!!!
aparece!
abraços
M

Antonio Coelho disse...

Já visualizei os desenhos destes livros por ínumeras vezes...tentei visualizar os movimentos cinestésicos dos autores e perceber os seus sentimentos... mas depois deste texto, Pedro, tenho que os rever novamente e deixar muito espaço para a reflexão...não vou desenhar nos próximos dias ;)
Muito Bom!

Pedro Moura disse...

O verdadeiro artista (inclusive da cassette pirata) não se desmoraliza com palavras a mais... quem manda é o punho armado de lápis!
;)
Abraços
Pedro