“A mangá e o animé japoneses têm oferecido numerosas narrativas de humanos em transição, postulando novos e corajosos conceitos humanos com uma calma mas profunda criatividade e uma arte brilhante”, reza a introdução ao 3º número de Mechademia, assinada por Frenchy Lunning. Todavia, apesar dos estudos aí reunidos, e apesar de muitas mangás e animés se dedicarem de facto a temas ou implicarem narrativas onde o maquínico e o humano se cruzam, em vários graus de interdependência, convergência e entrelaçamento - dos robôs aos ciborgues aos mutantes aos andróides, das armaduras mecha às simbioses, etc. -, fazendo por sua vez emergir temas tais como o pós- ou transhumano, é raro que esses textos explorem em si mesmos, de modos directos, as implicações filosóficas ou políticas, quer de uma micro- quer de uma macroescala. Mesmo Ghost in the Shell, que se aproxima desse tipo de discussões, cai mais vezes em orgias de referências (relembremos as notas pesadas do autor na versão mangá) do que de uma tessitura coerente e contida.
Se escrevemos “de modos directos”, é porque a própria existência dessas matérias será suficiente, claro está, para o escavar crítico, para a abordagem teórica… Até mesmo uma série juvenil e formulaica como Power Rangers e toda a sorte de títulos análogos tem elementos suficientes para essa discussão. Todavia, parece-nos sempre possível encontrar nesse sentido algum grau de superioridade - de complexidade narrativa, de sofisticação de argumentos, de subtis moldações - num título como Pluto.
A informação crucial descritiva deste livro, repetida em todos os textos de apresentação desta série, é conhecida, mas repitamo-la: Pluto é baseado num dos episódios da série Astro Boy/Atom de Osamu Tezuka, ainda que transformado. A história original de Tezuka, que foi traduzida para português no 3º volume de Astro Boy, era sem dúvida uma das mais interessantes daquelas que ali são apresentadas (e, possivelmente, de toda a série, tendo em consideração algumas outras edições que conhecemos) - em termos de tamanho, para já, distinguia-se das demais, com 177 páginas na edição original. Isso não significa que a leitura de Pluto não nos ofereça novos instrumentos, ou pelo menos uma perspectiva nova que nos obriga a uma re-leitura de “O Melhor Robô da Terra”, o título desse episódio (e é essa re-leitura que mostra imediatamente uma das forças de Pluto).
Urasawa opera aquilo que se chama recorrentemente de “genre bending”, “transformação dos géneros”, mas é possível que esse termo seja um pouco inapropriado - não só porque o próprio termo levanta questões insustentáveis literariamente, uma vez que é da própria natureza dos géneros um alto grau de reinventabilidade constante, que passa por transformações e tensões internas, mas também porque essa noção parece querer dar conta de um exercício consciente e, por isso, distante do acto criativo em si. Afinal, podemos dizer que Pluto é superficialmente uma história de ficção científica - porque se passa no futuro, porque envolve robots e uma sociedade que os possui e emprega, porque surgem conceitos associados a um hipotético e/ou ficcional desenvolvimento tecnológico, etc. - e em termos de enredo um policial - crime inaugural já verificado, contexto in media res, inquérito e investigação, analepses em catadupa, descobrimentos sucessivos que adensam a trama, focalizações polifónicas, subjectivas e incompletas, etc. -, sem esquecer uma camada de comentário em relação à nossa realidade política presente - é por demais claro que a guerra entre os Estados Unidos da Trácia contra o Reino da Pérsia liga ponto por ponto a última Guerra do Iraque.
Melhor do que adaptação, uma palavra que surge em alguns textos é “reimaginação” para discutir aquilo que Urasawa (e o seu colaborador em argumento, Takashi Nagasaki) fez em relação à obra original de Osamu Tezuka. Com efeito, parece ser isso o que está em causa: não uma simples reelaboração ou actualização ou refornecimento da história “O melhor robô…”, mas sim um re-mergulhar no fundo informe das ideias e pulsões que presidiram à história de Tezuka, para criar um novo molde com o mesmo barro. Uma espécie de tradução. Curiosamente, intramediática, algo mais comum no cinema com os remakes. (na banda desenhada, talvez algo que lhe esteja próximo é a reformulação do universo Marvel pelas séries “Ultimate”Não é só, portanto, uma interpretação da história de Tezuka (sendo-o, até mesmo ponto por ponto, episódio por episódio, atento a vários pormenores visuais, narrativos, de ambiente e de comportamento das personagens), como uma reformulação de alguns dos seus princípios, ideias, pulsões e mesmo direcções de desenvolvimento num contexto social, estético e filosófico bem diferente. É como se Pluto fosse um desabrochar do que Astro Boy poderia (poderá?, é?) ter sido para a segunda década do século XXI.
O que Urasawa faz com esta obra é tornar claras não apenas as associações que a obra original de Tezuka proporcionavam - de uma forma menos nítida, porque mais preocupada em rapidamente criar o seu programa narrativo dirigido a um público infanto-juvenil num contexto cultural e político muito específico -, mas religa-as, de dois modos: re-liga-as, isto é, liga-as de novo às mesmas raízes conceptuais, reforçando-as e reiluminando-as, mas também as re-liga, num sentido em criar novas ligações, o que portanto apenas fortalece esta ideia de intensificação, ou re-intensificação, de todos os elementos envolvidos. Os fundados por Tezuka, os trazidos por Urasawa e todos os que gravitam em torno destes dois sóis. Urasawa, por exemplo - e talvez seja essa a sua dimensão mais visível e marcante - sublinha e destaca os aspectos mais sombrios que estavam já presentes na história original, não apenas tecendo um contexto mais humano, mais político, explorando implicações profundas da inscrição deste tipo de tecnologia no mundo humano, mas permitindo que a dimensão do seu trabalho - mais de 1500 páginas - reverta a favor de uma redimensionação mais profunda das personalidades de cada personagem.
Veja-se este quadro (que circula pela internet em várias versões, logo não sabemos a quem atribuir a autoria) que compara directamente as personagens principais das duas histórias. Estão todas envolvidas. E se algumas atravessam as histórias de Atom (Ochanomizu e Tenma) e outras apenas existem nesta história em particular (e outras ainda pertencem àquilo que se chama do “star system” de Tezuka, personagens/actores que aparecem em várias das suas criações, mesmo que ocupando papéis diferentes), todas elas ganham contornos bem mais complexos e ricos do que a sua existência infantil em Tezuka permitiam.
Leitores mais afectos a navegações profundas na história da ficção científica serão capazes de sublinhar, ao longo de todos os volumes, as referências mais ou menos obscuras a essa tradição. A própria origem da palavra/função do robot, as leis da robótica de Asimov, os consequentes paradoxos inerentes ao convívio robot-humano explorados por outros autores, e os vários graus de livre-alvedrio que vai sendo conquistado pelos robots cada vez mais sofisticados são elementos já presentes em muita ficção anterior.
As cenas em que alguns robots se entregam ao que nos parecem ser emoções são de uma extrema complexidade. A narrativa vai-nos mostrando como a tecnologia permite que alguns modelos imitem expressões e comportamentos (até mesmo lágrimas) humanos, e há outros momentos - a consequência de mais desenvolvimentos, alguns dos quais elementos-chave para a trama central - em que essas emoções são reais. Mas há ainda momentos de maior subtileza e que são mais problemáticos de descrever. No primeiro volume, o detective Gesicht dá a notícia a um modelo doméstico que o “marido” havia morrido. Na prancha correspondente, a segunda metade mostra-nos uma vinheta maior, de contextualização espacial, mostrando Gesicht de cabeça baixa em frente do outro robot. A posição dos corpos de ambos é similar, mas o facto de que o detective é um modelo com semelhanças físicas humanas, contra o outro modelo, pode fazer-nos pensar que essa simetria é incompleta. O narrador visual dispõe de seguida uma coluna de três vinhetas mostrando apenas o rosto da “mulher” de Robby, mostrando apenas um pequeno ajuste de enquadramento, um afastamento progressivo, entre a primeira e a terceira vinheta (recordando o mecanismo regular, ainda que horizontal, de Harvey Kurtzman nas suas bandas desenhadas de guerra). Não existe texto, nem, naturalmente, alterações no rosto robótico. Todavia, esse enquadramento é eloquente e expressivo de uma forma completa. Diz mais sobre as potencialidades emocionais em questão em Pluto do que outros episódios mais melodramáticos.
Quanto ao aspecto gráfico, porém, estamos perante um caso clássico de um tipo de linguagem cuja estilização convencional quase que aproxima de um idioma treinado e repetível do que uma assinatura individualizada. O que não quer dizer que não seja possível encontrar traços de individualização no trabalho de Urasawa, menos interessante a nível da figuração - apesar do seu tratamento anatómico, de contornos suaves e proporcionais, e a procura por uma pouco melodramática escolha de expressões - do que na gestão dos tempos, na utilização dos silêncios e do que Scott McCloud chama de “transição aspecto a aspecto”, a composição que irregularmente mostra vinhetas a morder a página, etc.
Pessoalmente, o volume que nos parece o mais enriquecedor em todas estas questões é o sétimo (capítulos 48 a 55), uma vez que é nele que - já depois da morte do detective Gesicht e da primeira morte de Astro Boy - que se jogam todos estes elementos que temos vindo a citar: vemos pela primeira vez o robot Pluto/Sahad a lutar mais veementemente contra a sua programação assassina, o pacífico mas poderoso Epsilon a ter de enfrentar Pluto, sendo destruído às suas mãos e abrindo-se aos seus sentimentos e memórias post-mortem dos seus filhos humanos adoptados, o leit motiv da fractura na parede que aumenta, e que serve não apenas de sinal de tressage da obra mas fundo temático das fissuras que atravessam a sociedade de Pluto, e uma pequena referência ao Pinóquio de Collodi, de maneira a criar uma mise en abîme de todos os temas (Pinóquio é, a par do Super-homem e do Rato Mickey, outra das figuras tutelares para o Atom de Tezuka).
Comparativamente a outros títulos de Urasawa (pelo menos Monster, já que não conhecemos ainda 20th Century Boys), esta série é também uma inteligente pesquisa sobre a psique humana, ainda que transposta para as máquinas (justificando assim interpretações transhumanas), procurando chegar a uma impossível equação do verdadeiro equilíbrio entre a inteligência, a razão e as emoções, assim como uma complexa e hábil trama sobre vingança, limites e arrependimentos. Mais, tendo em conta as últimas frases entre Astro Boy e o professor Ochanomizu no episódio original - “porque é que os robôs, que não sentem qualquer ódio, começam a lutar entre si?”/“Não sei… suponho que são os humanos que os levam a isso” (pg. 183 da edição Asa), a introdução de aspectos mais contemporâneos e complicados relativos ao desenvolvimento e relacionadas questões éticas da inteligência artificial, torna Pluto a sua fórmula extensível e magistral.
24 de julho de 2011
Pluto. Naoki Urasawa (Viz Media)
Publicada por Pedro Moura à(s) 12:12 da tarde
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