Já
escrevemos bastas vezes, no passado, sobre a tendência internacional
– sobretudo nos mercados francês, belga e norte-americano – que
tem surgido de publicar edições de colecção, integrais, de luxo,
de arquivo, etc., de todo um rol de séries cuja primeira existência
havia sido em formatos de consumo mais imediato (semanal, mensal).
Tendência a que chamámos “recuperação da memória” e cujo
substrato é, a um só tempo, económico, geracional e informado pela
transformação do paradigma da banda desenhada para uma linguagem
“de livro”. Este novo projecto da Ala dos Livros vem alimentar
essa tendência, de uma maneira mais modesta (voltaremos a este
ponto), dedicada a uma série western
bastamente conhecida de um público vasto
e, hoje, decisor.
Para
toda uma geração de leitores na casa dos 40 a 60 anos, esta é uma
série “primitiva” de ambos os autores envolvidos,
ídolos-gigantes do que hoje chamamos banda desenhada franco-belga.
Por um lado, o da escrita, temos Michel “Greg” Regnier, um dos
mais prolíficos e centrais argumentistas de banda desenhada do
centro nevrálgico das escolas belgas – em primeiro lugar, na
segunda metade dos anos 1950, enquanto desenhador, gagman
e argumentista, da dita “école de Marcinelle”, afecta à revista
Spirou,
onde trabalhou com Franquin para as séries Modeste
et Pompon e Spirou
et Fantasio, depois
nas décadas de 1960 e 1970, enquanto argumentista e editor, da
“école de Bruxelles”, afecta à revista Tintin.
Elencar o seu trabalho seria citar muitas das séries, em todos
os géneros clássicos, que ocuparam as páginas da Tintin
portuguesa, por exemplo.
Por
outro, do desenho, temos Hermann Huppen, precisamente “descoberto”
por Greg, com quem inicia a sua carreira profissional com a série
Bernard
Prince,
e, passados alguns anos, em 1969, começa Comanche.
Autor celebrado sobretudo pelos seus projectos a solo, como Jeremiah,
As Torres de
Bois-Maury,
Caatinga,
etc., material sempre traduzido e publicado em Portugal, pela
afinidade especial que todo um sector devotou a esse centro e
produção.
Também
falámos noutras ocasiões como o western é, sempre, um género que
usualmente se faz acompanhar pelo apodo de “atípico”, uma vez
que cada série celebrada (de Lucky
Luke
a Bluberry,
Texas Rangers
e Gus,
Pretty Deadly
e
Scalped),
terá sempre uma qualquer dimensão que o leitor do momento fará
salientar como afastada do suposto cerne do género “clássico”.
Mas isso leva a uma pergunta complexa, não apenas “o que faz a vez
de uma típico western?” como se haverá tal coisa como “típico”.
Isso levar-nos-ia para o território das teorias de género, mas
atalhemos caminho. Comance
é, na verdade, uma obra muito próxima de todo um rol de histórias,
sobretudo cinematográficas, que se poderia chamar de “tipificada”.
O próprio título é enganador, já que a personagem principal, de
forma descarada nas histórias reunidas neste volume, não é a jovem
mulehr solitária que enfrenta a sua pequena comunidade sob o jugo de
um misterioso corruptor da lei, e líder de um rancho local, o que
seria promissor em termos da autonomia feminina. Não, é o jovem
cavaleiro-sem-cavalo, o pistoleiro e errante para todo o trabalho,
Red Dust. Em muitos aspectos faz-nos recordar a personagem que Kirk
Douglas protagoniza em Man
Witout a Star,
do imenso King Vidor. Um herói arrebatador, de capacidades físicas
e guerreiras excelentes, de uma ética superior de ferro ainda que de
moralidade social pouco convencional, e que soluciona todos os
problemas que farão o “coração” de cada aventura.
Mesmo
quando Red Dust se afasta do rancho Triple Six, a série mantém o
nome da proprietária, talvez funcionando como uma força magnética
que une todos os elementos narrativos e, claro está, a promessa de
que, no final das aventuras, haverá sempre um lar e, quem sabe, algo
mais para o descanso do herói...
Este
primeiro volume reúne as quatro primeiras histórias – Red
Dust,
Os Guerreiros
do Desespero,
Os Lobos do
Wyoming
e O céu está
vermelho sobre Laramie
–, tal como publicadas na revista francesa Tintin,
reservando a sua qualidade formal e narrativa: é óbvia a forma
clara como está estruturada por episódios de 8 páginas cada,
utilizando legendas de um narrador descarnado à aventura, retomando
ou explicando os eventos, e apresentando sempre vinhetas enormes de
establishing
shots,
quase sempre com cavalos e paisagens widescreen, onde a acção se
destilará de forma perene.
Nem
a escrita de Greg nem o desenho de Herman estão ainda no seu auge.
Há um inegável charme na maneira como as imagens são lavradas e
algumas perspectivas são tentadas, com perspectivas e escorços
distorcidos, por vezes até ao ponto da deselegância mas sempre com
resultados surpreendentes e dinâmicos. Por vezes, os rostos são
mesmo “feios”, mas tudo é compensado pela vegetação, as
paisagens áridas, o dinamismo dos corpos, a capacidade de expressão
do artista, e todo aquele bailado de linhas excessivas marcando
sombras, suores, pele, cansaço, emoções que o tornariam um mestre
do desenho. As narrativas em si são algo expectáveis, seguindo
muitas das preocupações morais vigentes trasladadas para aquela
época numa sua representação “mítica” (e não propriamente
com uma precisão histórica que, de resto, tampouco o cinema
pareceia perseguir). Mas são aventuras concentradas e entende-se o
deleite que criaram nesses tempos idos, e que esta edição permite
reviver.
A
razão de termos falado de modéstia
deve-se ao facto de que a edição não é acompanhada de qualquer
material extra, seja de contextualização histórica, balanço
crítico, ou um qualquer enquadramento que recolocasse Comanche
no seu contexto específico. Parece-nos um pequeno desserviço para
uma edição materialmente tão feliz – com uma exímia reprodução
a preto e branco do traço pincelado de Herman – apresentar as
histórias de chofre, sem a possibilidade nem de, ao angariar novos
leitores, os convidarem a compreender o passado da banda desenhada
que lhe deu origem, nem de, àqueles cujo acto de reler vai bem além
da revisitação meramente textual, desdobrar as razões do seu papel
no edifício que os faz regressar.
Nota
final: agradecimento à editora, pela oferta do volume.
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