23 de agosto de 2023

Terror na Montanha. Jumpei Azumi et al. (Sendai)

Há uma excelente colecção da British Library dedicada a contos e novelas de temáticas aparentadas como o horror, o terror, o fantástico, o estranho, o insólito, etc., intitulada “Tales of the Weird”. Para além do aspecto visual e material, e o exímio trabalho editorial dos autores antologiados, a maioria dos quais britânicos, o que me fascina mais é a possibilidade de, dada a fonte imensa de material literário, poderem compor cada volume sob a égide de um tema, que tanto pode revelar de um ambiente comum nas histórias – o castelo, a floresta, jardins, as vilas piscatórias, o alto mar, –, como de uma época específica do ano – o Natal ou o Halloween - , como ainda géneros determinados por personagens, estruturas, ou objectos – a novela detectivesca, a ciência amaldiçoada, os vampiros, histórias passadas no metro, meios de comunicação assombrados, envolvendo tatuagens. Isto cria quase uma espécie de guia extremamente estimulante para pensar na criação literária, aberta aos mais díspares cruzamentos. Todavia, logo à partida, reconheceremos que a história em si revelar-se-á tanto mais eficiente quanto não apenas a sua intriga central, a sua premissa de fantasia e surpresa, como a compreensão e verossimilhança que emanar do contexto proposto.

Este novo, breve mas intenso volume oferecido pela Sendai, seguindo um modelo já existente e dado a lume em outras línguas europeias mais ou menos recentemente, segue precisamente esse ponto de partida concentrado. São todas histórias de fantasia negra – algumas claramente dedicadas ao terror, outras mais fantasiosas, e até tocantes, mas sempre envolvendo algum grau de morte – passadas nos píncaros das mais altas montanhas no Japão. São cinco histórias (estranhamente chamadas de “capítulos”, mas apenas com muito esforço veríamos alguma continuidade capitular para além da participação da mesma personagem/avatar do escritor), cada uma delas apresentando um ou mais “casos” de episódios aterradores ou inexplicáveis passados numa temporada nessas mesmas montanhas, passadas por uma personagem pernoitando nelas e testemunhando algo estranho, relatando-se algo do passado, ou experienciando algo estranho mas apresentado nessa mesma perspectiva – e, portanto, ganhando corpo e representação visual “de verdade” na diegese em si.

Todas estas histórias parecem ser baseadas em contos literários escritos por Junpei Azumi, apresentado como autor de “contos de fantasmas” e, pelos vistos, montanhista entusiasta. As informações nem sempre são claras, uma vez que na capa portuguesa se fala de “obra”, depois em relação aos artistas fala-se de “mangá”, e só com os textos adjuntos compreendemos serem adaptações. Seja como for, em relação ao trabalho de Azumi, não será de surpreender, então, essa junção dos dois temas nestes pequenos relatos surpreeendentes, ora de twist endings ora de ambientes tensos e vibrantes. Cada um dos contos é portanto adaptado por um artista diferente – poderei estar enganado, mas arriscaria a dizer que uma grande maioria dos leitores portugueses reconhecerá apenas o nome de Junji Ito, mas seguramente que fãs atentos a scanlations terão seguido alguns dos títulos dos outros autores – tendo sido publicados, como indicado no próprio livro, numa revista cujo título significa “histórias assustadores que aconteceram mesmo”, apontando para a natureza dos tais relatos, quase sempre introduzidos pelo próprio Azumi, como personagem dessas histórias, mesmo que não sendo protagonista de todas.

Como explicado pelo próprio autor num posfácio, e depreendido numa conversa/entrevista com Mimika Ito no centro do volume, o prazer pelas montanhas deriva de um interesse já quase natural e enraizado culturalmente pelos japoneses, quase inevitável, visto o terreno daquele país ser muito montanhoso (o mesmo ocorre na Coreia, mas poder-se-ia discutir se os valores atribuídos aos passeios, esaladas, piqueniques e contos derivados são os mesmos). Essa cultura vai-se desprendendo de muitos lados nestes contos, através das pequenas notas da observação das estações, vegetação, paisagem, tempo, comportamento das forças da natureza, modos de a atravessar, habitar e viver, etc. Um “saber de experiência feito”, como se costuma dizer, que torna os relatos em si não apenas vívidos como vividos mesmo, aumentando a tal sensação de terem “ocorrido mesmo”.

Como é de esperar, a prestação gráfica é distinta entre os cinco autores, e haverá alguma discrepância entre os desenhos pormenorizados e texturados de Junji Ito com a abordagem mais minimalista de Daisuke Imai, por exemplo. A autora Mimika Itô é aquela que mais se aproxima do mangáka mais famoso e com quem partilha o nome (mas não qualquer elo familiar), o que não surpreende, visto que o seu trabalho parece seguir-lhe as pisadas em termos de abordagem e até estilo, ainda que não tenha a mesma proficiência (lá chegará, talvez). Todavia, num projecto desta natureza, a leitura acaba por se concentrar na continuidade dos temas e tratamentos narrativos, mais do que na pormenorização da arte.

Um último reparo que faremos, mas que se tem notado em um ou outro momento nestas edições, tem a ver com as traduções, as quais, não desconfiando jamais do conhecimento do japonês, tem mais a ver com a naturalidade do português europeu, que falha a nível dos registos sociais mais expectáveis (ainda por cima de uma língua, como a japonesa, cheia de níveis de deferência linguística) ou em expressões mais corriqueiras. Nada que uma revisão atenta não possa melhorar.

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