28 de maio de 2024

Les Derniers Jours d'un immortel. Fabien Vehlmann e Gwen De Bonneval (Futuropolis)


Nota inicial: este texto foi escrito para o terceiro programa 3 Graus de carequice, em que discutimos o “não-humano”. Aproveitei, por sua vez, alguns apontamentos que havia tomado para uma conferência e, mais tarde, paper. E mais, sobre um argumentista que tenho tentado seguir de perto e que aprecio, Fabien Vehlmann, de cujo Le Dieu-Fauve falei há um par de dias, neste espaço. É nesse sentido que recupero estas notas, com algumas alterações para legibilidade e maior consistência. (Mais)


Começaria por dizer que este desafio foi uma espécie de batota, uma vez que era algo que eu já tinha preparado, antes mesmo do programa estar estruturado. Eu fui convidado a participar numa conferência intitulada Figuras do Pós-Humano, organizada pelo Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, em Braga, em Junho de 2019, na qual apresentei um artigo intitulado “Espectros do vivente na banda desenhada”. Em princípio, as actas desse encontro sairão em breve, mas partilhei esse texto com os meus colegas deste programa. Explorava aí uma série de livros, numa espécie de gradiente cada vez mais afastado, de tentativas da banda desenhada conseguir representar outras formas de vida, existência e experiência não humana, tendo começado com textos em que podemos ter criaturas fantásticas mas que continuam a espelhar perspectivas humanas, passando para desvios mais interessantes, como o Swamp Thing da fase Alan Moore, até chegarmos a um livro algo experimental, L'anné de la comète (aqui), de Clément Vuillier, em que não há quaisquer personagens animais, na verdade, e vemos apenas os eventos e interrelação entre um cometa que passa ao largo do planeta e causa toda uma série de consequências dramáticas e transformadoras da sua superfície.


A partir daí, elegi o tema deste programa, que é o “não-humano” e fiz a escolha do livro que ilustraria essa possibilidade, que de resto é um dos textos abordados no tal artigo académico. Trata-se de Les Derniers Jours d'un immortel, em português, “Os últimos dias de um imortal”, dos autores franceses Fabien Vehlmann e Gwen De Bonneval. Este é um livro publicado em 2010, pela Futuropolis, mas para os leitores que não leiam francês, há igualmente uma tradução disponível em inglês, pela Archaia.


É escrito por Fabien Vehlmann, um autor particularmente produtivo e com muitos títulos de grande qualidade... Arriscar-me-ia, mesmo que isso não queira dizer muito sem uma maior contextualização e nuance, a dizer que é um dos melhores argumentistas de banda desenhada do momento na cena global.


Destacaria alguns títulos, como Joliès Tenébres, Le Diable Amoreux, Sept Psychopathes, Isle of 100 000 Graves, já para não falar do seu trabalho com o Spirou, e o muito recente Le Dernier Atlas, também com DeBonneval, uma saga cujo primeiro volume arrecadou uma série de prémios em Angoulême, e estarei em crer que merecidamente. Quem não conhece estes livros tem de acreditar na variedade incrível em termos de género, e mistura de géneros, humor, modos de escrita, e, claro, estilos de storytelling visual, etc., deste autor. Tudo sempre num registo de plena legibilidade, clássico, límpido, mas cheio de ideias estimulantes, bem exploradas a bem dos objectivos de cada história, etc.



O desenho é da responsabilidade de Gwen De Bonneval, ele próprio também escritor, e com uma série de livros de que gosto muito, como uma versão do Gilgamesh, Racontars Artiques, e o tal Atlas.


Uma vez que este livro é a preto-e-branco, há aqui uma série de referências interessantes, muito próximas de alguns trabalhos de Tezuka e outros da década de 1960 quando trabalhavam em ficção científica, portanto tem uma dimensão de design streamlined que tem algo de retro, também, à la Alex Toth no character design, talvez, mas com uma catrafada de jogos de referências difícil de cartografar aqui...


A história passa-se num futuro longínquo, em que os seres humanos são apenas uma espécie no meio de muitas outras, cada qual mais fantástica que a anterior. Apesar de não ser explorado em pormenor, a escrita de Vehlmann é de uma qualidade que ele sabe como nos dar uma informação pequena o suficiente para criarmos uma ideia de puzzle maior e mais significativo. E, claro, essas espécies estão todas unidas e regradas por uma espécie de ONU intergaláctica. Uma da consequências desse contacto e trânsito, digamos assim, espelha-se não somente na tecnologia, que acaba por ser bastante secundária a pura e simplesmente um facto da vida quotidiana, mas na própria vida. Os seres humanos, por exemplo, escaparam da inevitabilidade da morte, uma vez que podem criar clones de si mesmos, chamados “ecos”, que são ocupados no momento de qualquer acidente “mortal” (uma espécie de back up). Na verdade, vários ecos podem estar vivos ao mesmo tempo, mas há sempre um momento em que se podem fundir, para agregar as experiências e memórias diferentes. Há um preço a pagar, pois cada vez que se passa a outro eco, perde-se uma memória mais antiga. Todavia, se alguém o escolher, pode optar por, numa morte de um corpo, não fazer qualquer update, desaparecendo para sempre.


A personagem principal chama-se Elijah, ou Elias em português, e é um dos agentes da Polícia Filosófica. O seu papel é a de arbitragem entre conflitos, sobretudo entre espécie alienígenas, implicando portanto toda uma série de inferências sobre comunicação, cultura, mas também fisiologia, o sensório, etc. dessas mesmas espécies Daí que não seja apenas uma perícia de investigação, mas a capacidade de pensamento, reflexão e compreensão cognitiva e intelectual que define esta polícia.


O caso central do livro é aquele que opõem duas espécies alienígenas, que habitam o mesmo planeta, os Ganedans, e uma outra espécie de que não se conhece o nome próprio, mas apenas aquilo que os outros lhes chamam. Algo como muitos dos termos que nós usamos na linguagem corrente que são usualmente nomes que nascem de distorções vistas de fora, e não auto-designações, como “gregos”, “coreanos”, “esquimós”, “caucasianos”, etc. Há milénios, um dos Ganedans foi morto por uma das criaturas das “cavernas cantantes”, e o papel de Elias é de resolver esse conflito e evitar a guerra. Aliás, deve dizer-se que o livro abre com um outro caso de polícia, parecido, entre um terráqueo e um extraterrestre, rápida e inteligentemente resolvido, e que serve de mise en abîme do caso que vem depois (e, claro, de garantir que entendemos as capacidades do herói).


Esta é a premissa da intriga, que dará élan e é o conflito externo principal ao livro, mas depois há toda uma outra dimensão dramática, mais pessoal, íntima, lá está, o clássico “conflito interior”, uma vez que um grupo de amigos bem próximos de Elias desistiram da sua imortalidade, e dão uma espécie de festa de despedida. Há uma série de encontros, diálogos e introspecções, momentos meditativos e até melancólicos, espelhadas nestas relações com os não-humanos, que tornam este livro numa pesquisa sobre o que significa ser humano, a um nível teleológico, existencial. Uma das aprendizagens que Elias faz é a de que há uma diferença fundamental entre cognição e emoção, isto, saber uma coisa não a torna mais querida, recordarmo-nos de um momento das nossas vidas pode não recuperar o sentimento experienciado então, etc. A questão do que significa a filosofia, por exemplo, é discutida de modo directo. Até os modos como quem não a compreende a goza, por exemplo, é ilustrada com uma personagem que no aeroporto (não é um aeroporto, mas fica assim dito) se põe a gozar, fazendo o que Elias considera confundir a filosofia com a retórica. Não é apenas uma maneira de dizer coisas de maneiras complicadas, portanto, mas de enfrentar com efeito as coisas mais complicadas da existência humana. Tocam-se questões abstractas – mas que têm um impacto imediato na vida quotidiana.


Por exemplo, quando se explora a cultura dos Ganedans, que usam uma espécie de teatro total e papéis pré-definidos, altamente ritualizado e com máscaras, mas que tem espaço para algum improviso, a pergunta inevitável é, qual é a grande diferença com a nossa cultura (se me é permitido, os leitores do antropólogo Erving Goffman, A apresentação do eu na vida de todos os dias, publicado pela Relógio d'Água, reconhecerão o conceito da “dramaturgia social”, as múltiplas máscaras que usamos ao longo do dia conforme as circunstâncias).


É um livro com inteligência, e no que diz respeito à ficção científica – uma área da qual não sou, de forma alguma um especialista – penso que não estarei muito errado se disser que raras vezes encontramos este tipo de explorações. Compararia, ainda assim, com a escrita de Neal Stephenson, Lauren Beukes, Ted Chiang (o autor do conto que daria origem ao Arrival, do Villeneuve), e, o meu favorito por muitas outras razões, China Mièville. Aliás, enquanto lia o Derniers Jours, tinha sempre na minha memória o romance Embassytown, que na verdade saiu depois deste livro de banda desenhada (por isso não se poderia falar de influência deste sobre o outro, e não quero entrar em especulações sobre Miéville ter lido isto antes, apesar de ser um fã de bd e ter escrito mesmo uma série para a DC). Esse livro envolve toda uma série de conceitos muito similares: a protagonista servirá de uma espécie de tradutora diplomática entre humanos e seres cuja fisiologia e estrutura cognitiva e sensória é de tal modo distinta da humana que a comunicação é totalmente alienígena. No fundo, apesar da sua apresentação enquanto romance de ficção científica high concept, no fundo é um livro sobre filosofia da linguagem, tal qual o filme Arrival, e como linguagem, memória, percepção e experiência do tempo não são dimensões autónomas umas das outras, mas estruturas imbricadas entre si.


O que importa, e de certa forma já debatemos e será sempre um princípio das nossas conversas, e é tema central também de Derniers Jours, é que não se pode julgar uma cultura com os princípios de uma outra, tal como não podemos ler um livro a partir dos critérios que serviram para o juízo de um outro, etc.


Les Dernier Jours d'un immortel, ao colocar-nos perante criaturas totalmente não-humanas, coloca-nos num ponto suficientemente afastado para que ganhemos, então, um ponto de vista privilegiado, distante e crítico do que faz de nós humanos.

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