Já anteriormente havia falado de Konture, indicando-o como um autor que me parecia não ter desenvolvido uma voz particularmente única no campo de criação de banda desenhada em que se inscreve, surgindo essoutro livro, Les Contures, como uma excepção, ou melhor, uma pequena diferenciação mais feliz na sua área: sendo Konture um autor cujos trabalhos versam a autobiografia (autobiocomix, sendo este o sexto volume da sua contínua Auto-Psy d’un mort-vivant), esse livro envolvia a vivência familiar (sobretudo a da e com a filha), relembrando assim outros trabalhos relativamente do mesmo sinal (Menu, Baudoin, Crumb...).
Todavia, para além da escrita diarística em torno das suas experiências musicais e existenciais (Konture vive afastado da sociedade mais “normalizada”, o que se expressa em todas as facetas da sua vida), foi surgindo um pequeno espigão que incitava à diferença, e que agora surge assumindo todo o seu lugar central e disruptivo da obra do autor: a doença. O diagnóstico foi conclusivo e sabe-se, confessa-se na própria obra, explora-se essa realidade, que Konture sofe de esclerose múltipla. A doença toma conta do título.
Existem muitos livros de banda desenhada que fazem convergir a existência de uma doença e a autobiografia, e onde a construção diegética procura não só explanar os acontecimentos, como sugerir uma via de cura (efectiva ou existencial, pelo menos): Our Cancer Year, de Pekar e os seus colaboradores talvez seja aquele que mais visibilidade teve, mas poderíamos acrescentar Spiral Cage de Al Davison, Cancer Vixen de Marisa Acocella Marchetto e, claro está, L’Ascension du Haut Mal de David B. (sobre a epilepsia do irmão) [um outro tipo de doença se explora em bandas desenhadas tais como as de Debbie Drechsler, Art Spiegelman, Neaud, Baudoin: tomam o nome de “trauma”, “solidão”, “amor”, “morte”]. Ora, de todos estes livros, parece-me que apenas este último, de David B., transforma a especificidade dos sintomas da doença em princípios geradores da linguagem da própria obra. Não serve esta afirmação como um juízo de valor diferenciante das restantes obras, como quem diz “é melhor que” – esse juízo poderá ser feito, mas não nestes termos simples. Simplesmente que David B. permite que essas duas especificidades se encontrem e se sigam numa rota paralela. Também Konture me parece conseguir o mesmo em Sclerose en plaques.
De todo o corpo humano, os neurónios são o único tipo de célula que não se regenera, por isso poder-se-á dizer que o momento em que temos mais neurónios é o exacto momento do nosso nascimento, começando eles a perderem-se por toda uma série de razões (a entropia neuronal é, por este lado, real). No entanto, sabemos que é à medida que crescemos que aprendemos e ganhamos um maior grau de inteligência. Esse processo deve-se em grande parte à educação, à sociabilização, aos estímulos externos do mundo que nos rodeia (a parte na nurture, portanto) mas em parte deve-se igualmente à nossa biologia e metabolismo (e alimentação, descanso, etc., ou seja, a parte da nature). Trata-se de um processo de criação e estabelecimento de redes neuronais, ou ligações de neurónios entre si, pela mielina, e que termina pelos 20 ou 21 anos de idade, e a que se dá o nome de mielinização. Depois disso, não há muito mais a fazer em termos de inteligência, ou capacidades intelectuais, apenas em termos de quantidade de informação (ainda é mentira que “burro velho não aprende línguas”). A esclerose é uma das doenças que provoca a desmielinização, levando a que os processos sinápticos diminuam de rigor, velocidade e eficácia, sendo o maior problema a perda de memória, os “trous de memoire” que Konture refere neste livro.
Se nos damos ao trabalho de indicar alguns aspectos (necessariamente simplificados) do funcionamento biológico desta construção e da desconstrução a que a doença obriga é por esse duplo movimento estar expresso pelo próprio modo como Konture constrói a sua narrativa. Aliás, por uma via metafórica, podemos entender a banda desenhada como sendo uma linguagem que funciona de uma maneira similar, em que os seus neurónios (elementos singulares, as vinhetas), independentemente do seu valor intrínseco e individual, apenas ganham sentido, função e se tornam parte de um texto aquando de uma rede neuronal (a sequência, as pranchas, a obra), unidas por esse líquido congregador e auxiliar à comunicação subtil e rápida, que é a mielina (os espaços intervinhetais, o ponto nulo, a tressage de Groensteen).
Numa famosíssima entrevista de Fritz Lang, o realizador alemão afirmou que a “dor física vem da violência e acho que é a única coisa que as pessoas de facto temem nos nossos dias, e é algo que se tornou uma parte integrante da vida”. Lang referia-se a uma violência externa, colocada no centro da atenção da existência depois da 2ª Grande Guerra e às ligações com o cinema. Mas a doença é também uma violência, que desponta de dentro para fora do corpo e não menos assustadora. A morte é cada vez mais afastada dos nossos dias, ou reinstala-se em formas disfarçadas (a violência da cultura de entretenimento, por exemplo), e a dor da doença faz parte das realidades que desejamos afastadas, disfarçadas, invisíveis. E se possível mudas também. Konture, bem pelo contrário, efectua o gesto contrário, ofertando-lhe, à dor, uma voz com que nos interpela directamente. Parte de Sclerose en plaques mostra através de metáforas visuais a dor que sente (os pregos, as chamas), mas o central da dor ou do medo do autor, aquilo que mais o obceca e ocupa um maior espaço são os “buracos” ou “falhas” de memória. São vários os modos como eles surgem. O primeiro, mais simples, é simplesmente “dizê-lo” (no momento em que está a tocar na banda e se esquece das letras). Mas outros há mais ou menos complexos.
O autor revela que o seu método de trabalho é estabelecer a prancha dividida em vinhetas, preencher os cartuchos superiores de texto e depois elaborar os desenhos que devem corresponder. Um desses modos é desenhar na vinheta personagens, intervenientes ou imagens diferentes daquelas que se esperariam do texto: não a rapariga que o atende nas urgências, mas simplesmente “uma imagem de banda desenhada”, não as pessoas que efectivamente estavam no comboio mas personagens que fazem as vezes dessas pessoas, flores, omeletes-células que servem de metáfora e/ou metonímia (é quase impossível destrinçá-las aqui) à doença, ao interior do corpo, à dor que desponta.
Um outro modo junta-se ao cansaço físico e mental e à falta de vontade: preenche-se uma prancha com paisagens que nada têm a ver com a descrição verbal porque “me chateia” (e repare-se na letra, como treme). Mas rapidamente essas paisagens ganham direito de cidadania e tornam-se um outro sintoma, secundário, do que é descrito: é comos e fossem as florestas por onde a mente hipocondríaca de Konture se tivesse perdido e por onde procura um caminho, e finalmente encontra uma possibilidade de entender as causas (saber o nome à doença é como nos antigos ritos dos demónios, onde saber-se o nome da entidade diabólica permitia exercer algum poder sobre a mesma). E de se reencontrar enquanto indivíduo.
Uma das estratégias de reverter esse processo, e que ao mesmo tempo coloca em questão o funcionamento da memória humana, é o recorrer a trabalhos anteriores, sob a forma de vinhetas retiradas de outros livros e fanzines, incluí-los aqui, e mostrá-los como sintomas anteriores, ainda sem o seu sentido último, mas que finalmente se revelam como sinais primeiros da doença que agora ganha nome (e título).
É assustador apercebemo-nos de que este livro não é construído num momento em que se sabe que o combate foi ganho e existe alguma esperança para um futuro, como sucede, mais uma vez, em Our Cancer Year ou Cancer Vixen (batalha ganha) ou Spiral Cage (batalha superada). Nem tampouco se trata de um gesto externo a quem possui a doença, e o que se pretende é a eliminação de fantasmas e a procura por um novo (e livre) caminho, como em L’Ascension du Haut Mal ou a reconstrução de um trabalho de luto eficaz, como em Mom’s Cancer, de Brian Fies. É assustador apercebermo-nos de que esta banda desenhada de Konture expresse o medo de que o silêncio (a incapacidade para continuar o seu trabalho em banda desenhada) esteja iminente. É assustador apercebermo-nos que esta poderá ser a última prestação de Konture.
Ao mesmo tempo, é assustador porque, como o susto, que nunca se sabe de onde vem (até etimologicamente) ganha uma presença forte que nos interpela directamente. E não temos tempo de desviar o olhar. É sempre, tememos, tarde demais.
Nota: agradecimentos a Miguel Carneiro e Marco Mendes, pelo empréstimo do livro e pela insistência em ultrapassar barreiras.
29 de julho de 2007
Sclerose en plaques. Mattt Konture (L'Association)
Publicada por Pedro Moura à(s) 5:20 da tarde
Etiquetas: Autobiografia, França-Bélgica
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