Livro 1. A máquina de fazer asneiras, João Paulo Cotrim e Pedro Burgos (Calendário).
Há, no mercado dos livros infantis em Portugal, uma vasta cultura da irresponsabilidade, através de livros cuja esmagadora maioria se preocupa em demasia com a “responsabilidade” (daquela policial, formatadora, instaladora do Édipo, da “educação para a sociedade”). Mas falham redondamente nos ingredientes mais básicos do gesto para a criança, aquilo a que com Guattari e Deleuze aprendemos a chamar (mas é preciso ter cuidado com os abusos desta linguagem, que nada tem de jogos fortuitos) “devir-criança”. Ficará suspensa nesta discussão a falta de espaço que há para o cultivo dos novos escritores e ilustradores de livros infantis que sustentam forças novas, ou de um melhor trabalho de divulgação dos antigos mas ainda actuais (António Torrado é um deles, por exemplo). Não se justificará a sensação de ver na esmagadora maioria dos livros uma falta de cuidado e talento para cuidar da impressão, da letragem, de composição dos livros. Não se falará da falta de uma verdadeira tradição da literatura infantil em Portugal (dir-me-ão, há muitos escritores. Sim, mas quantos são herdados?).
Há excepções. Naturalmente. É preciso ser-se caçador, atento, específico. Há várias naturezas nessas excepções. A de João Paulo Cotrim tem a ver com a desresponsabilidade. Não é irresponsabilidade – política do terror, da formatação psicológica da criança mal nasce (azul ou rosa?). É um trabalho de minar a responsabilidade. Já faláramos de outros livros de Cotrim para crianças, mas se nesses víamos uma manifesta estruturação pela capacidade libertária da poesia (narrativa, como a melhor poesia), aqui vemos uma vontade de partir para um “devir-criança”, o ser-se por uma vez (ou duas ou três) alheio ao espartilho da responsabilidade: não é apenas o pai, que constrói um segredo (infelizmente, o título do livro impede que seja um segredo efectivo; má estratégia do título), que coloca de lado a responsabilidade dos trabalhos “sérios”, são também as filhas, cuja busca pelo segredo atravessa vários patamares de suprir as faltas de uma responsabilidade milimétrica e sopesada, e ainda os próprios autores: uma história que flui serena, as imagens que ocupam as duas páginas como se os pequenos palcos onde as duas manas brincam fluíssem sem barreiras (num fundo branco, flutuando, re-fluindo), a linguagem que se estapafurdia (passa a verbo: “ora bolas fofas de pêlo!”), são os olhos vidrados das personagens – há quem não goste, há quem discorde da estratégia – que apontam a uma qualquer alucinação interior, uma liberdade da responsabilidade comportamental, a libertação do “ser-se normal” (v. abaixo). Poderemos dizer, cometendo ligeira inconfidência, de que na equação dos livros “infantis” de Cotrim as crianças não são sua expressão, nem variável. São apenas fantasma, escusa, espelho, para as quais o autor (escritor), plasmando-se na especificidade do estilo do ilustrador com que trabalha - uma das forças supernas de Cotrim, um estilo que é seu imiscui-se no dos ilustradores para sair dele ainda intacto, mas ambos tocados (no que esta palavra tem de sentido emocional e de embriaguez – devém criança. Para desfazer a responsabilidade, para brincar, para fazer asneiras.
Livro 2. A história de Erika, Ruth Vender Zee e Roberto Innocenti (Kalandraka).
O Holocausto é, mais que um tema, uma indústria crescente, e esta palavra não tem que assustar, e muito menos ofender, de modo algum, já que o progressivo afastamento e a consequente desaparição dos seus actores testemunhas permitirá cada vez mais uma sua revisitação, mesmo pela ficção, forte ou fraca, contundente ou negligente, ponderada ou abjecta. É o perigo por que passam as coisas que vivem e existem ainda, pulsando de moto próprio. O cinema pode optar pela “invisibilidade” de Shoah, o dramatismo de Schindler’s List, ou até a bonomia desconcertante e irritante de A Vida é Bela. A literatura pode de quando em vez expulsar para o mundo livros como As Benevolentes, de Jonathan Littell, o qual, independentemente de todas as proliferações que provoca à discussão, faz repesar a questão de pensar, e mesmo analisar, o mal de um modo profundo [presumo que A Rapariga que Roubava Livros, de Markus Zusak, possa tocar tangencialmente pontos idênticos, mas não o li...]. Mais profundo, porém, são os poucos gestos que ainda hoje assombram e estranham à nossa “vontade de justiça” retroactiva (ridícula porque deslocada, não participámos, não conseguiremos participar jamais, e criamos ilusões de participação que a nenhures levam) e que sobrevivem em obras esmagadoras, porque quase incompreensíveis (vejam-se os escritos de Etty Hillesum, recentemente editada em Portugal – e cuja leitura faço aqui através do prisma de Maria Filomena Molder, obrigatório para entender o aço e o imo da escritora holandesa -, mas também esse monumento desmonumental, se tal coisa é possível, que é o Leben? Oder Theater? de Charlotte Salomon). Mais perto de nós, mas não mais baixo, estão alguns livros que bebem e vogam nestas águas “temáticas”, e de que demos conta.
Repito aqui tema, tema, mas não é propriamente um “tema”, ou se o é, é-o apenas acidental e superficialmente: os seus fundos são radicalmente diferentes, isto é, os caules podem assemelhar-se mas as raízes encontram-se em húmus diferentes. A história de Erika não é, de modo algum, um livro fortíssimo. Aliás, se nos permitirmos a jogos de linguagem com os termos musicais, não se pode falar de tema simplesmente porque se trata da utilização de um mesmo número reduzido de notas (elementos de narrativa, espaços, estratégias de representação – como por exemplo a não representação das faces dos personagens, quer dos verdugos quer das vítimas, cada um desses grupos descaracterizados, desumanizados, por razões diametralmente opostas) – pois nada permite encontrar entre esta obra e as outras referidas atrás que nos leve a encontrar variações. E se bem que o ataque possa querer ser fortissimo – grandes imagens ocupando as páginas inteiras, de cores carregadamente cinzentas e castanhas onde ocorre a “sombra da morte” para poder fazer explodir em contraste a cor da “vida”, uma escrita que avança monocórdica apenas indicando que no centro do desconhecimento, pois Erika, que conta a história, não sabe qual a sua origem, qual o seu país, quem os seus pais, apenas sabendo que foi lançada de um dos comboios de Auschwitz e que agradece ter sido salva por camponeses e poder vir a ser uma estrela (de David) viva na constelação dos que se lembram – o efeito acaba por ser mezzo-piano.
Não obstante, a força deste livro não está nele mesmo, deslocando-se para o fantasma que ele traz consigo: pensar a morte. Em vez de a evitar, como faz a esmagadora maioria da nossa sociedade, e sobretudo em relação às crianças (se bem que haja excepções, e no interior do “mercado” nacional do livro para crianças), a morte é pensada enquanto existente, até mesmo parte integrante do ser humano. No entanto, em A história de Erika, a morte não surge como indissociável da vida humana, mas na sua faceta de violência imposta pelo mal: tal como Erika não sabe nem conhece as suas origens reais, a não ser a da pertença ao género humano, e a estrela amarela não pode diminuir mas também não pode aumentar essa sua pertença, também nós não entendemos as razões da emergência dessa cabeça da morte. Este livro, o que faz, é trazê-la para mais perto, é torná-la presente. O que é o mais importante passo para a dissipar enquanto fonte de medo.
Livro 3. O Livro do Pedro (Maria dos 7 aos 8), Manuela Bacelar (Afrontamento).
Perdoar-me-ão o jogo de palavras que quer revelar mais da boutade do que a afirmação peremptória e julgadora, mas creio que poucas vezes nos seus livros de literatura infanto-juvenil a Afrontamento tenha preenchido mais o seu próprio nome do que com O livro do Pedro.
Esgotemos a “história”. Maria conta à sua filha a história de um livro ilustrado que dá conta da sua própria infância – entre os 7 e os 8 anos de idade: há um estilo, a lápis de contornos suaves que é depois substituído pelo “interior do livro”, de contornos a tinta, cores mais garridas, tramas mais fortes. Uma nostalgia que mostra um passado fortíssimo em contraste com um presente mais calmo (mas não menos feliz nem inferior). Maria conta a história da sua infância, da visita aos avós, da escola, dos amigos. Maria conta a história da sua infância e dos seus dois pais. Um pai e outro pai. Dois homens.
Num país onde não há verdadeiramente discussão pública do assunto, onde é na melhor das hipóteses visto como “não ser uma prioridade”, o acto de O livro do Pedro é um acto de afrontamento: não só “fazer frente a” ou “estar cara a cara”, mas, etimologicamente, ir a affrontare, “golpear” e ir mesmo a frons, frontis, “testa”. É preciso fazer frente, estar à frente, olhar nos olhos do problema, atacá-lo, e ter testa, ter pensamento e superfície.
Não é uma questão de “o que é curioso...”. Nem de heroísmos, bandeiras, superioridades de algum tipo. Bacelar mostra-se aqui – mas não é o primeiro caso na sua longa carreira – como cidadã de um mundo em expansão. O mundo, diz-se, está cada vez mais pequeno, graças às comunicações, aos meios de transporte, ou a outras contingências da tecnologia (que promete falsamente um progresso linear). Mas na verdade “ele está é cada vez maior!” (tom coloquial, aqui, como quem discute na mercearia, corrigindo os outros fregueses): pois o acesso a modos de vida que não os nossos leva a cruzamentos, que é como quem diz, multiplicações, o que provoca, sempre, mais. Esses modos de vida, porém, muitas vezes partilha um mesmo espaço de proximidade, num mesmo país, numa mesma cidade, na nossa rua. Bacelar simplesmente – mas não é nada simples num país como o nosso, ainda não é simples, sê-lo-á quando? – cria uma história que dá espaço e acesso a outro modo de vida que, pasmamo-nos a descobri-lo de repente, nada tem de outro. Um dos argumentos que se apresentam na primeira fila de um impedimento à adopção de crianças por casais homossexuais é a de uma suposta influência sobre essas crianças: tal qual, presumo, os homossexuais foram influenciados pelos seus pais (necessariamente os tiveram!) de sexos opostos. Bacelar mostra Maria, adulta, casada, grávida – uma “normalidade” que brotou de uma “anormalidade” (dois pais), informando-a portanto como “normalidade”, ou como “anormalidade de onde pode surgir nova normalidade.” Quando aos perigos, escabrosos, violentos, estúpidos (estupidificantes), da utilização desta palavra “normalidade”, veja-se (e pense-se) Arno Gruen. Outros dos argumentos é a de que os casais homossexuais, mormente de homens, não têm a estabilidade de longo prazo que é desejada para a educação e desenvolvimento das crianças. Sociologia barata, sem qualquer fundamento, e que não toma nem a aniquilação dos laços dos casais heterossexuais, nem as circunstâncias sociais que impelem os casais homossexuais a ter de viver sob uma capa de “diferenciação” (“eu aceito, desde que não me chateiem”, “não tenho nada contra, mas não se ponham aos beijos em público”), nem a “loucura da normalidade” (Gruen, novamente): o pai que chega a casa e se senta a ver a bola na televisão e a ler o jornal, sem falar com a mulher, sem falar com os filhos, um grunhido, e é tudo. Atenção, o contrário desta discussão não é dizer que uns “têm tanto direito quanto” os outros. Essa não será a boa forma de argumentação, querendo espelhar-se os direitos de uns pelos dos outros, passando por cima dos direitos dos primeiros cidadão em questão, as crianças. Esta é uma armadilha. Toda esta questão é pejada de armadilhas: é quase uma aporia ética, social e, por isso, humana. É preciso equilíbrio, calma, e verdadeira discussão (não disputas, mas raciocínios pautados, dialogantes). Mas um argumento há que superaria estes todos, um argumento há que Bacelar tem revelado em entrevistas – inclusive na tristemente conduzida num programa de televisão de larga (?) audiência; mas é televisão da má... – ser o móbil do seu trabalho, um argumento há que Bacelar erige como o baixo contínuo das linhas d’O livro do Pedro, e dos desenhos (são os pormenores que o ditam: olhos apaixonados, olhares cruzados de carinho, olhos fechados de emoções tintadas, sorrisos serenos, serenos, momentos de lazeres quotidianos, visitas surpresa, barbas por fazer, um braço por cima dos ombros). Um argumento que muitos pedopsiquiatras querem fazer desaparecer sob novo jargão e listas de “a fazer”, impondo um outro regrário de capitalismo psiquiátrico, um argumento que os polícias do puritanismo e os juristas (não os que entendem de “justiça”, mas os que entendem de “aplicação de leis”) denigrem por não ser mensurável, um argumento que muitos votam ao riso por soar a vazia fórmula de tão repetida nas mais lamechas e moles das situações. Um argumento que foi eleito como o único com direito à representação figurativa na capa deste livro, de modo simbólico, a cores e traços tranquilos para melhor fazer passar a certeza da sua força, imensurável, sim: “dar amor a uma criança”. E não perceber que esta frase não precisa de mais argumentos nem justificações nem exposições não percebe nada da sua justeza e completude.
Nota: agradecimentos à Calendário, pela oferta do seu livro. À Carla Pott e à Sara Figueiredo Costa, pelas discussões.
21 de maio de 2008
Três livros infantis nada infantis.
Publicada por Pedro Moura à(s) 10:03 da tarde
Etiquetas: Ilustração, Infantil, Portugal
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2 comentários:
Fico-lhe muito grata por ter compreendido o livro tão bem, tão sensívelmente.
Devo dizer-lhe, com um sorriso, que o mais díficil foi convencer a editora a aprovar a capa.
Mas tinha que ser aquela e só aquela.
Um abraço,
Manuela Bacelar
Obrigado pelas suas palavras.
Não posso dizer mais nada senão deixar uma vénia em admiração.
Pedro Moura
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