Como já havia exposto num outro artigo, a palavra entrevistar significa, num seu sentido mais profundo e ancorado na etimologia, “encontrar-se directamente com alguém”. O seu sentido jornalístico e mais básico de “uma série de perguntas e respostas” é muito recente e as mais das vezes reduz-se a uma pobre oportunidade para que se diga um pouco mais do mesmo... Este livro faz parte de uma colecção intitulada The Conversation Series, cada volume dando conta precisamente do encontro e conversa entre o influente Hans Ulrich Obrist (no mundo das artes visuais) e um grupo muito específico de artistas e autores, que compreende desde nomes de uma longa carreira como Gilbert & George até novos sucessos como Olafur Eliasson, arquitectos da inefável Zaha Hadid ao anfractuoso Rem Koolhaas... Esperar-se-ia, portanto, algo que servisse de um complemento profundo a outras entrevistas feitas a Crumb e facilmente adquiríveis, desde o volume antológico Conversations (UP Mississippi) ao volume da The Comics Journal Library e até mesmo o The R. Crumb Handbook, que serve de uma breve e primeira biografia, cheias de imagens (da qual é retirada a segunda, em baixo, apesar de copiada da net) que corroboram as palavras apresentadas. Não é, porém, o que acontece.
Da parte de Obrist, esperava uma maior preparação para a entrevista ou, em oposição a isso, mesmo que revelasse um ódio à banda desenhada, um organizado programa de pensamento com o qual confrontaria Crumb, em questões profundas. Não acontece.
Da parte de Crumb, esperava que lhe fosse tornado possível o abrir-se ao mundo de um modo mais descontraído, em que dialogasse seriamente com experiências diferentes das dele, ou que nos fosse permitido auscultar domínio menos conhecidos. Não acontece.
Crumb é muito limitado nalgumas visões que tem, sobre o papel do museu na sociedade contemporânea, sobre a evolução da música e a sua relação para com os públicos, meios de produção e distribuição, sobre determinadas considerações demasiado generalistas que faz para com os discursos em torno da reflexão secundária (isto é, a crítica e a teoria), sobre determinados artistas, como a consideração, sem que o determine e explique, de Bosch e Bruegel como “pintores populares” (não é que não o sejam, mas o uso da expressão na contemporaneidade pode levar a malentendidos e a comparações demasiado fáceis, se bem que ela tenha sido feita de modo bombástico e persistente pelo crítico Robert Hughes, que chamou precisamente Crumb do “Bruegel dos tempos modernos”), e é até mesmo demasiado distante para com a produção da banda desenhada contemporânea (com a excepção do trabalho da sua filha Sophie, provando que o amor de pai é necessária e fortemente faccioso). Sem dúvida que se poderá dizer que conquistou essa posição e que tem direito a viver nesse desprezo para com o trânsito do mundo quotidiano. Sem dúvida. Todavia, isso não faz dele mais interessante como potencial pensador. Um artista que é capaz, de uma breve cena que testemunhou nas ruas de Nova Iorque, transformá-la na solução de uma encomenda – uma capa para a New Yorker – e de uma maneira assombrosa que mistura a justiça social, a mordaz eloquência, e uma capacidade de composição e traço, como testemunhamos nesta imagem, só pode ser um artista de génio (e aqui, sim, um génio aproximável ao do Brugel dos Provérbios neerlandeses), no seu mais profundo sentido: isso não significa, porém, que essa dimensão se espelhe na sua capacidade de reflexão expressa verbalmente. Bem pelo contrário, em muitos aspectos Crumb lembra Kracauer e outros detractores das “novas” maneiras de arte e maneiras de fazer arte como sendo valorativamente inferiores às “passadas”.
A sua presença, pautada mas constante nos últimos anos, nos museus, poderia ter deslocado a questão para um território muito interessante, premente e crítico. Isso também acaba por não se desenvolver nessa direcção. Como diz o próprio artista, o que mais o move “não é a arte original, mas o livro impresso”. É claro que isto faz parte igualmente da estratégia de auto-derisão famosa em Crumb e que provavelmente aumenta quanto mais espaço vai conquistando no circuito (para não dizer mercado, veja-se o livro recente editado na Taschen) das ditas “artes visuais” ou “nobres”. O próprio facto de estar inserido nesta ronda promovida por Obrist acentua esse sentido. Crumb não está à vontade, e parece querer contrapor-se a ele de um modo menos feliz.
Hans Ulrich Obrist é um homem desse circuito, e pelas perguntas relativas ao mundo da banda desenhada percebe-se que não há a segurança e conhecimento deste território em particular que tornariam o exame a Crumb mais premente. Mas aqui também as atitudes de Crumb não ajudam. Por exemplo, a dado momento compara-se a Carl Barks no sentido em que ambos são artistas da banda desenhada que encontraram um bom equilíbrio entre o domínio visual e o da escrita, o de contar uma boa história e promover um belo desenho. Não se engana, Crumb. Para dar exemplos de excelentes escritores mas de uma arte menos entusiástica por direito próprio ou artistas magníficos com menores poderes narrativos dá os exemplos, respectivos, de Charles Schulz e de Harold Foster. Continuemos a aceitar. Mas quando diz que a Art Spiegelman o mais importante é a história, não podemos perguntar-nos a razão do autor reduzir a atenção, tendo trabalhado com ele, apenas a Maus, que cairá nessa categoria, e colocar de lado todas as outras experiências de Spiegelman, nitidamente entregues muito mais ao domínio visual da banda desenhada e até mesmo às suas experimentações formais específicas.
São muitas as questões que ficaram por desenvolver ou explorar pelos dois, e muitas outras as que as afirmações de ambos suscitam. É como se ocorresse aqui, de certa forma, o exacto inverso da ideia de entrevista. Um desencontro.
30 de agosto de 2008
Robert Crumb e Hans Ulrich Obrist (Verlag der Buchhandlung Walther König)
Publicada por Pedro Moura à(s) 10:13 da manhã
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3 comentários:
Gostaria de ver entrevistas tuas, de futuro. Acho que poderia ser um projecto muito interessante.
E parabéns pela qualidade constante dos teus textos.
Um abraço,
M
e assim acrescenta-se mais um voto no mesmo sentido!
Como não tenho o teu e-mail, fica aqui o Bruno Aleixo, o non-sense de que falava outro dia
http://www.vimeo.com/album/16202
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