29 de setembro de 2008

Y, the last man. Brian K. Vaughan, Pia Guerra e José Marzán, Jr. (Vertigo)

A sensibilidade americana é muito curiosa. É óbvio que qualquer generalidade dita sobre todo um país ou povo se deve a uma igualmente facciosa atitude da nossa (minha) parte, de europeu, mas é estranho tentar compor uma forma coerente a partir, de um lado, de uma ultra-sensibilidade pelo respeito das minorias, o que atravessa várias escalas de ressentimento, de tentativas de lavagem da linguagem, de modos de controlar ou contornar determinadas representações, que podem ter aspectos tão inócuos como garantir uma imagem “à Benetton” (em que um grupo de pessoas conte com um representante de cada macro-etnia, por exemplo) como tão gravosos como a da reescrita da história (no que nos diz respeito, ao território da banda desenhada, e apenas como exemplos, querer proibir Tintin no Congo ou o Little Nemo) e, por outro, de uma continuidade de políticas internas e internacionais que, as mais das vezes, pouco se importa em relação a direitos efectivos ou a um controlado diálogo de diversidade. Será acertado dizerem que, por ser português, homem, branco e da classe média, é natural que não compreenda a necessidade desses discursos de correcção de um modelo vigente da sociedade. Porém, não compreendo mesmo a necessidade de ver as coisas de um modo tão maniqueísta, antes preferindo ver uma contínua negociação de princípios, em que vamos aprendendo onde e quando tomar do Outro, onde e quando lhe ofertar algo. O primeiro passo para a correcção de preconceitos ou ideias feitas não é dizer que não os exercemos ou não as partilhamos, mas auscultar e entender quais os preconceitos e quais as ideias feitas que de facto existem em nós. E, a partir daí, ir negociando.
Não tenho quaisquer inclinações para gostar do politicamente correcto. Digo “cegos” e não “invisuais”, e acabo por me rir de quaisquer piadas mesmo que às custas de alguém (um alentejano, por exemplo), desde que essa piada seja de facto humorística (e é a minha família alentejana quem conta as melhores piadas). Na banda desenhada, temos que escavar no lado em língua inglesa à procura daquela que mais abalroa o “pc” para atingir afinal um outro grau de verdade que, como todas (se for atingível, naturalmente), dói mais. Precisamente por não haver uma complacência tão grande para com essa atitude de “saneamento” na banda desenhada portuguesa ou franco-belga – se bem que um certo grau de crítica feminista, pós-colonialista e/ou provindo dos estudos culturais fizesse um grande bem a uma mão-cheia de autores que abusam de visões muito estreitas do mundo -, não há a necessidade de uma correcção, através da mais desbragada das contra-atitudes. Penso que o melhor representante dessa atitude de chuto em relação ao politicamente correcto é dado por Garth Ennis (com Fury, The Boys, 303, e, claro, The Preacher). Mas estamos aí num território de extremos, que se pode, ainda assim, revestir de humor.
Porém, há outros modos de desmontar esses discursos do ressentimento, os quais são modos mais ou menos subtis de entender a mais profunda contradição que é parte inerente, é sua essência, ou é mesmo o princípio da sua formação, da espécie humana. A meu ver, toda a saga de Y, the last man, é uma ilustração complexa dessa atitude, ainda que a possamos inscrever nas questões inerentes e particulares aos Estados Unidos, o que justifica o termos afunilado a questão ao princípio. Trata-se de uma série que atingiu os 10 volumes (trade paperbacks, que coleccionam os comic books) escrita por Brian K. Vaughan (autor de Pride of Baghdad e de Ex Machina, por exemplo), com os artistas Pia Guerra e José Marzán Jr., entre outros. A trama geral é relativamente simples: um evento catastrófico ocorre à escala global, matando todas as criaturas com um cromossoma Y, isto é, os machos. Os únicos homens que sobrevivem são dois astronautas fora do planeta quando o evento ocorre, um cientista (claro que “louco”) e, as personagens principais, Yorick (o nome permitirá um contínuo jogo de referências textuais, visuais e existenciais mesmo), o “último homem”, e o seu macaquinho de estimação, Ampersand. Várias teorias e possibilidades são dadas ao longo da história para explicar o evento, e até mesmo justificar os problemas que ocorrem a curto e a longo prazo. Mas nenhum deles acaba por se tornar nem definitivo nem determinante, ficando antes tudo numa espécie de limbo. Se procurássemos uma absoluta e rígida explicação, ela falharia, uma vez que o equilíbrio da bioesfera, sem o cromossoma Y, estaria condenada a longo prazo na sua totalidade, mas a aceitação quer dessa ignorância quer dessa insatisfação faz parte da “suspensão da incredulidade” que é exigida por Y, the last man. A segunda parte deste título coloca-nos numa imensa tradição literária (no seu sentido amplo e em todas as suas variações) que especula sobre a batalha pela sobrevivência da espécie humana nas piores das diversidades, ou também o esforço pela manutenção de um nível mínimo de dignidade e civilização no seio da derrocada total de todos e quaisquer princípios sociais: é algo que vai do livro do Génesis (o episódio de Lot e as suas filhas) a Kamandi de Jack Kirby, de Robison Crusoe a A Estrada, de Cormac McCarthy. O mais importante é o modo como se sublinha e evidencia precisamente o contrário de um pensamento rousseauniano. Em vez de encontrar na construção societal a hipotética raiz de uma ainda mais hipotética candura da natureza humana, é o mínimo estalar do verniz das regras que impomos a nós mesmos para que convivamos que revela de imediato a ininterrupta brutalidade de que somos capazes.
Vaughan e Guerra estão menos interessados em ver como Yorick se relaciona com os acontecimentos em seu torno do que o modo como o mundo o vê a ele, enquanto último homem. Passados os primeiros momentos de absoluto terror e destruição e morte, observamos o retorno de todas aquelas características da sociedade humana que pensaríamos erradicadas se fosse uma sociedade matriarcal aquela construída: ódios, ganância, racismo, preconceitos religiosos, falta de inteligência e de opinião própria, manipulação dos mais fracos, fantasias sexuais em vez de uma franca expressão da sexualidade, etc. Todos aqueles problemas que existem no mundo dos homens – o que é nem sequer é uma “boa observação”, mas uma constatação dos pobres factos – afinal sobrevivem num mundo apenas de mulheres.
A obra, à medida que foi sendo publicada – e agora que terminou é possível que desencadeie toda uma série de artigos mais abrangentes -, foi vista tanto como uma “obra-prima feminista” como “misógina”. Essa é a que parece ser a capacidade de Y, the last man: a de poder ser entendida como algo e o seu contrário, revelando desde logo, mesmo antes da sua leitura cabal, de que poderá transportar questões complexas, multímodas, contraditórias, e, mais importantemente, por responder. Aliás, repare-se como o título, em inglês, poderia ser ainda visto e grafado como “why the last man”, consubstanciando uma pergunta que se mantém ao longo dos dez volumes e cujo fecho, o da narrativa em si, não é afinal fecho nenhum.
Vaughan, é sabido, gosta de propor nos seus trabalhos, que revisitam géneros relativamente congelados com as suas regras – fantasia, super-heróis, ficção científica -, outra camada mais profunda de questionamentos do que impera sobre as personagens, transformando as suas obras em “algo mais”. Isso não é senão, como se sabe, a característica própria das grandes obras de ficção científica (Lem, Bradbury, Clarke), para ficarmos nessa área criativa. Mas se a banda desenhada permite ficções estonteantes e de grande amplitude em termos de personagens e espaços (Kirby à frente), é menos comum tornar-se veículo de questões contemporâneas ou tão vastas como a famigerada “guerra dos sexos”.
Existem momentos mais fortes em Y, mas isso não significa que os outros, os das transições, das travessias, das descobertas e das crises mais internas sejam menos intensa para as personagens. As relações de Yorick com as mulheres que o rodeiam fazem-se e desfazem-se num estranho ritmo que dá a ver não só as alterações do próprio Yorick em relação à vida que lhe foi reservada pelo destino, como todo o espectro dos comportamentos humanos. O facto de que a esmagadora maioria desses comportamentos são de mulheres não torna Y numa obra misógina, simplesmente numa obra que mostra como as mulheres, enquanto seres humanos, também participam em todo esse espectro. Em vez de se tornar numa aventura de fantasia sexual para Yorick (e para os leitores), o facto dele ser o último homem na terra torna-o um objecto de atenção especial, que tanto se reveste de ódio como de mera utilidade. Jamais é, portanto, um vencedor. Vaughan provoca curtos-circuitos durante a narrativa bastante clássicos, como a “peça de teatro dentro da peça de teatro”, ou melhor, “no interior da ficção de banda desenhada” (no vol. 3, One small step), ou mais subtis, quando algures Yorick tenta fazer uma piada de mau-gosto, mas a agente 355, que o protege, não se ri, o que o leva a dizer que “o riso morreu com os gajos”... Y é, de facto, mais sério que qualquer outra coisa.
A acusação de misoginia é não apenas fácil como simplista. Há, repito, uma série de camadas possíveis de ler nestes livros, se bem que não estejamos perante uma obra filosófica tremenda. Por vezes, a simples ficção revela não ser absolutamente simples, e é essa negociação que a torna interessante. No último volume ocorrem duas mortes: a da agente 355 e a de Ampersand. Se a da primeira é feita precisamente no momento em que o amor mútuo entre as personagens é confessado, e essa interrupção dramática e irreversível, mas instantânea, é tratada de um modo anti-dramático, com uma raiva silenciosa da parte de Yorick e uma vingança bem mais cruel do que sanguinária, a cena da morte do seu companheiro símio é bem mais emotiva, quer da parte de Yorick, quer através dos elementos que nos são dados – diálogo contínuo, planos próximos, jogos de olhares, um humor que quer disfarçar a dor, etc. – tornando-se assim também uma emoção à qual temos acesso directo. A última imagem dessa sequência, todavia, une as mortes e o amor de um modo simples, mas belo.
Não sei a quem pertencerá exactamente a frase, mas em Good Omens (de que existe uma tradução portuguesa, Bons Augúrios, na Via Láctea), de Neil Gaiman e Terry Pratchett, há algo que ilumina o princípio que subjaz, afinal, a todo o Y: (cito de cor) “o problema com os seres humanos não é serem intrinsecamente bons ou intrinsecamente maus, mas serem intrinsecamente humanos”. C’est tout.

8 comentários:

Daisy Caladwen disse...

excelente blog!! gostaria de ver alguma coisa sobre o autor brasileiro LEO, que escreveu as séries de BD sci-fi Aldébaran, Betelgeuse e Antarès. ;)

Pedro Moura disse...

Olá, NFO,
Eu estou em Portugal, e não é fácil encontrar todos os livros que saem no Brasil, mesmo tendo a Panini cá representada.
Mas farei um esforço em procurar esse livro e depois veremos.
Até ver!
Pedro

Anónimo disse...

Não é preciso procurares as edições brasileiras (que, se Calhar nem existem) pois o Leo trabalha para o mercado franco-belga e essas séries são publicadas pela Dargaud.
Abraços,

João Miguel Lameiras

Pedro Moura disse...

Obrigado, João Miguel.
De facto existem edições brasileiras, mas não faz sentido procurá-las (ainda que seja fácil junto aos meus "dealers" de HQs do outro lado do Atlântico), uma vez que as "originais" são francesas... Mas depois de ter dado uma vista de olhos, pergunto-me se vale o esforço...
Que me dizem?
Obrigado a todos,
abraços
Pedro

Anónimo disse...

parabens pelo Blog, intresso-me muito por HQ. Gostaria que juntasse à cabeca do seu cometário critico, uma espécie de pontuação, género tipo 4* (quatro estrelas: maimo 5). Sei que é redutor, injusto, etc., mas é pratico e dá jeito qd se tem pouco tempo

Pedro Moura disse...

Caríssimo,
agradecendo as suas palavras, e esperando que continue a frequentar este espaço, e ainda dentro de todo o respeito que o(s)leitor(es) merecem, mais a sua opinião, peço desculpa por afirmar, rotundamente, que jamais farei uma coisa dessas.
É precisamente esse tipo de atalhos que, aparentando dizer alguma coisa, nada dizem, que tento não apenas evitar como combater através de um outro tipo de discurso.
Bem-haja,
Pedro

Anónimo disse...

filho dum choco! bem bem que te podias conter, estragaste-me o fim ó idiota. é duma incompetência..

Pedro Moura disse...

Que giro, ainda existem destas pessoas?
Curioso!
Em todo o caso, "filho de um choco" é um insulto maravilhoso, digno do Haddock! Obrigado!
Pedro Moura