A primeira leitura deste livro levará a um confronto imediato com Le Photographe, de Emmanuel Guibert, Levèfre e Lemercier. O mero facto de se tratar de um livro de banda desenhada que emprega a fotografia como parte integrante da sua linguagem sequencial, na fluidez do seu relato, implica essa mesma comparação. Não se trata de integrá-la enquanto ferramenta de trabalho visual, que poderia tomar muitas determinações e formas, desde base (de Jean Teulé a Ricardo Cabral) a campo de recolha e colagem, de embelezamento, interrupção documental, ou outros empregos. Trata-se de facto de procurar uma eficácia narrativa e gráfica colocando desenhos e fotografia num mesmo espaço, não oposicional, de expressão.
É preciso salientar a diferença crucial entre o programa de Le Photographe e deste livro. Nesse outro projecto, tratava-se de um encontro no interior de uma obra nova de um desenhador e autor de banda desenhada (Guibert) e de um fotógrafo profissional (Lefèvre), em que o primeiro reconta as memórias do segundo, devolvendo-lhe a voz através dos desenhos e integrando as fotografias (as provas de contacto, melhor dizendo), toda a matéria dessa visualização anterior, nessa mesma memorização. No caso deste jovem autor, há apenas um corpo, ainda que duas vozes. Hyppolite assume-se, desde logo, como desenhador e fotógrafo de um modo separado ou separável. Essa informação é explícita no prólogo, onde afirma que leva “o meu bloco de desenho e a minha máquina fotográfica sempre comigo. A segunda numa abordagem mais artística que o primeiro, mais longe da tomada de notas. Mas sempre ao meu lado. Perto. No caso de.” [sic]. A própria construção do livro demonstra-o: as guardas estão ocupadas por uma montagem de fotografias em ponto pequeno, depois da história apresenta-se um mini-portfólio com 10 fotografias que ocupam a página inteira, oblongas, algumas das páginas iniciais com reproduções dos seus blocos (Moleskine, passe a publicidade), pejados de uma minúscula escrita, apontamentos, e esquissos brutos, desenhos breves, aguarelas simples, apontamentos também, algumas das folhas desses blocos ocupadas apenas pela imagem, outras só pela escrita, a maior parte delas por ambas em convivência. Ou seja, o autor revela-nos com tudo isso um método de trabalho, autónomo para cada área, e revela assim também que o encontro possível nasce apenas no interior da necessidade específica a este livro.
É preciso, igualmente, explorar antes a diegese, já que tudo aqui se subsume a ela, não se procurando tergiversações, abandonos ou metalepses que a coloquem em crise. Bem pelo contrário, há alguma preocupação em manter uma coerência e clareza narrativa, ainda que se empreguem duas linguagens aparentemente diferentes (o desenho e a fotografia). Tratando-se de uma autobiografia, mas em que menos importa o “eu” do que as impressões de uma viagem, ou melhor, um filtro e vínculo que aborda um espaço que se deseja ver de um modo diferente de uma outra perspectiva já instalada, L'Afrique de papa é antes um exercício de confronto. Hippolyte visita o Senegal, a cidade de Saly, onde já lá vive o seu pai reformado, vivendo o sonho dourado da “neo-colonização” que os ricos brancos podem fazer a uma África hospitaleira (porque reduzida aos seus serviços turísticos seguros). O pai está sistematicamente a mostrar-lhe o “tesouro” daquele local: comida barata e à fartazana, serviços de luxo ao preço da uva mijona, cerveja fresca sem fim, festas em cada esquina e, mais importante, raparigas jovens dispostas a passar a noite com quem bem puder pagar, o que não é difícil para o capital branco. Hyppolite, no entanto, quer enquanto personagem do seu próprio livro quer enquanto autor, contraria essa atitude de formas várias. Ele entende que ali há pessoas, dignas, com desejos humanos e para além da miséria em que nascem. Nada disto, é preciso compreender, é muito directo, quer dizer, não existe aqui qualquer tipo de diatribe ou discussão directa (por exemplo entre pai e filho), mas são as próprias estratégias do livro que fazem essa perspectiva diferente.
É raro que o pai surja representado de frente, revelando o rosto. Nunca há grandes planos. Se há planos totais de um rosto, são utilizados de forma esparsa e que se deseja significativa num momento particular (o homem branco que se empanturra enquanto observa “catorzinhas”). Quase que poderíamos dizer que há uma procura por um certo grau de despersonalização das personagens brancas, inclusive o pai, como se estas fossem reduzidas a meras presenças simbólicas, de um poder instalado e que nem sequer se apercebe da violência que representa ou exerce. O único homem que vê o seu rosto surgir várias vezes é Omar, um habitante local que sonha em ser lutador (a luta livre – parece-nos ser essa a modalidade – é um desporto amado em Saly, e é um leit motiv do livro), mas se entrega à prostituição com mulheres brancas e velhas (espelho do papel do pai de Hyppolite). Este Omar tece uma história paralela à de Hyppolite que acompanha o seu pai por um dia. Hyppolite-a-personagem é testemunha do mundo do pai, cicerone de Saly (daí que seja “a África do papá”), mas também, já sozinho, e de pequenos desvios pela cultural local (a matança de uma vaca, as lutas, detalhes da cidade). Todo o livro parece estar encerrado num só dia, dois talvez. Esta oposição segue as linhas densas e clássicas de branco/negro, rico/pobre, primeiro mundo de férias/terceiro mundo sobrevivendo como pode, distracção e divertimento/crise ética e sacrifício. Mas também se expressa a nível da matéria visual (que compõe o texto).
A fotografia, é discutido, é um meio indicial, no sentido em que tem uma relação directa com o fenómeno que captara mecanicamente. Quer o desenho quer a fotografia transformam impressões captadas no mundo real, a três/quatro dimensões (ou mais) e as projectam num suporte a duas dimensões, se bem que a passagem da luz da fotografia seja mediada por um meio tecnologicamente determinado (o que leva a uma limitação substancial de expressão e discursividade, como indicara Flusser, se bem que seja sempre importante ressalvar que a fotografia é um discurso, isto é, mesmo mecanicamente, há uma série de opções e estratégias que atravessa), ou mais determinado, se preferirem, do que o desenho, cujo grau de traduzibilidade e influência emocional, física, acidental, pode ser mais visível (claro está, há toda uma substância complexa nestas questões que não se esgota nesta dicotomia débil). O desenho de Hyppolite, mesmo nas pranchas de banda desenhada, mantém o seu carácter nervoso, de esboço, dos cadernos; linhas rápidas, riscos a comporem sombras ou texturas, aguarelas de cores submissas ou comporem ambientes. As fotografias, por suas vez, revelam uma vontade de mostrarem pouca profundidade de campo, nitidez das formas centralizadas, contrastes agudos, e cujo preto-e-branco requer desde logo uma distanciação da fotografia mais corrente (“de férias”) a que a modernidade nos habituou.
Ou seja, procura-se, à superfície das formas de cada meio, uma diferenciação vincada.
Hyppolite não procura, então, qualquer tipo de disrupção, de deslocação, de desterritorialização da própria fotografia, ou dos seus conteúdos, na sua integração em L'Afrique de papa. Não o faz a esse nível. Essa deslocação existe, mas a nível ético, como veremos. As páginas em si tanto se apresentam de um modo fragmentado/coeso típico da banda desenhada (em que as fotografias fazem as vezes de algumas das suas vinhetas – mas não como continuidade da sequência, mesmo nos locais onde isso parece acontecer; são sempre comentário), como em ilustrações ou construções mais livres que integram uma parte de fotografia, como ainda, muitos casos, surgem apenas com os desenhos e vinhetas, classicamente de banda desenhada. A fotografia, portanto, não faz as vezes tão-somente de continuidade da acção (falar-se-ia de uma “banda fotografada”) ou explicitação dos conteúdos e/ou muito menos de ancoramento na realidade empírica do que havia sido tecido pelo desenho, mas quer fazer-se valer de um valor ético e ontológico diverso. Se as fotografias de Hyppolite-o-autor são “mais artísticas”, nas suas palavras, essa arte é aqui utilizada, no interior da narrativa, com um valor social, de correcção das impressões tintadas pela condução (pobremente ética, distraída pelo discurso do conforto branco) do pai e pelo pessimismo da realidade da vida de Omar. A fotografia surge quer como indício dos indivíduos, da vida real, verdadeira, genuína, como da força efectiva dos combates, escape mais digno das gentes do Senegal.
A página que mostramos na íntegra é aquela onde poderá parecer que há uma simples continuidade entre as acções capturadas pelas fotografias – homens a correr, duas velhas brancas a passearem na praia – e as imagens desenhadas. Tudo aponta para uma transição suave, sem complicação de maior. Os jovens lutadores correm pela praia, vemo-los de perto, os rostos, duas mulheres brancas passam por eles, e parecem olhar para eles, mas estes continuam a correr, são observados por outra branca, em topless, perto de um homem refastelado, ao lado do qual se encontra um empregado, negro, provavelmente da estância, que continua a sua ronda, perto mas afastado dos lugares de lazer. Será esse o final da interpretação? Estes dois grupos, negros, por um lado (mesmo que no seu interior tenhamos os corredores, supostamente de uma classe social mais baixa, mais entregue à sorte dos fados, e o empregado fardado), e brancos de férias, por outro, ocupam a mesma estreita faixa de areia e água, mas encontram-se, cada qual, de um dos lados opostos de uma barreira invisível, social, económica, quiçá intransponível (ou apenas numa direcção, através da prostituição ou da luta, as duas soluções “pelo corpo” dada a Omar e os outros habitantes de Saly; nunca haveria a possibilidade dos brancos atravessarem esse muro “para baixo”, já que se caíssem na miséria, não seria em Saly, mas já/ainda em França). Há toda uma série de contrastes e de simetrias a operar nesta página que reforçam sempre essa questão de proximidade física e distanciamento social. Distanciamento do fotógrafo e dos seus objectos de observação, proximidade do desenhador das personagens que quer representar/criar/moldar. Maior atenção visual ao grupo de corredores, versus personalização pelo desenho (e ainda com a inclusão do som, tornando-os mais vivos), e menor em relação às mulheres, quase reduzidas a uma caricatura. Onde os corredores são vistos em número, mas posições iguais, uma espécie de amálgama do número e diversidade, também as mulheres parecem ser reflexo uma da outra, num só plano (a quase todos os movimentos do corpo). A parte de cima (8 imagens, 1 delas desenhada, encerra um “corpo” das personagens que correm), a tira seguinte é apenas a da vivência venereante dos brancos, praticamente inertes (pois têm tempo para descansar – o que contrasta com o epíteto de sempre do pai em relação aos senegaleses, “faz-nenhum”), e o último duo mostrando a relação contrastante entre o empregado e o venereante: no desenho parecem estar lado a lado, na fotografia distanciados. Qual deles transmite a “verdade”? Qual das linhas procura restituir-nos a “realidade” do Senegal, ou mesmo a realidade do Senegal do papá de Hyppolite? Não sabemos se a resposta é apresentada cabal e finalmente, mas ela vai-se compondo...
18 de outubro de 2010
L'Afrique de papa. Hyppolite (Des bulles dans l'océan)
Publicada por Pedro Moura à(s) 4:02 da tarde
Etiquetas: França-Bélgica, Territórios contíguos
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2 comentários:
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