Se em termos materiais, esta edição do novo Gambuzine é mais feliz, há duas outras dimensões mais limitadas: por um lado, e por menos importante que isso seja para a editora e os autores, há as tropelias da linguagem (gralhas, traduções apressadas, desgramáticas, etc.), que se não impedem a fruição do caroço, tornam a sua mastigação mais complicada; por outro, o leque de diversidade de trabalhos é mais circunscrito, havendo uma natureza mais condensada entre eles.
O desencantamento contemporâneo – delimitado ao “nosso” espaço: uma Europa social-democrata, liberal, contemporânea, supostamente multicultural – é sabido, e ele não voga apenas por entre os “jovens” como por toda a população (para quando a revolução e as manifestações dos reformados e das empregadas de fábricas insolventes?), mesmo que muitas dessas pessoas não saibam sequer como procurar modos de expressão desse mesmo sentimento, e menos ainda em como o transformar numa via de acção transformativa.
Se os anos do pós-guerra, e sobretudo após o Maio de 68, significaram alterações profundas no tecido cultural e social da esmagadora maioria dos países da Europa ocidental (Portugal ainda teria de esperar algum tempo e foi fazendo essas aberturas “às mijinhas”), e depois os anos 80 foram a chave de ouro da ilusória felicidade capitalista, estamos neste momento a assistir e a sofrer uma outra viragem política, cujo escopo e profundidade ainda não podem ser aventados. Há a sensação de que há uma falência de facto de vários projectos – o projecto liberal, o projecto democrático moderno, o projecto multiculturalista (vide A. Merkel) e até mesmo as promessas tecnológicas e energéticas de décadas anteriores – mas não parecem despontar alternativas credíveis, sustentáveis, plenamente moldadas, e despojadas de maniqueísmos fáceis e demagogia, seja de que quadrante for (vide classe política portuguesa). Se viragem houver, não obstante os “pequenos vietnames” por aí espalhados (Nápoles e Atenas, Berlim e Paris), será marcada sobretudo pela resignação e o silêncio... Já ninguém pergunta “que fazer?”, mas “fazer o quê?”.
Os autores reunidos em Gambuzine pertencem a uma tribo mais ou menos reconhecível, mesmo que nenhum nome lhes faça justiça (punk, okupa, anarca, são epítetos, na nossa opinião, falhos de razão e de aplicabilidade restrita e enganadora, mesmo que possam ser tentados numa primeira abordagem). São ainda autores com um carácter obsessivo em relação às mudanças possíveis, são panfletários e contestatários, e talvez mesmo românticos.
Esta edição tem como que um dossier dedicado ao autor alemão Wittek (a associação da editora/autora, Teresa Câmara Pestana, aos círculos underground alemães, são conhecidos), apresentando-se quatro histórias do mesmo, algumas de tom autobiográfico, outra fantasiosa, mas todas elas apontando para um entendimento muito específico dos sacrifícios que cada um de nós pode/deve/tem de fazer para levar avante uma qualquer ideia de felicidade e/ou liberdade, bastas vezes jamais a atingindo. Seguem-se vinte histórias curtas de 19 a 20 autores, sendo apenas nove (ou assim os identificamos) portugueses. Esta não é uma informação que permita qualquer tipo de leitura à partida da revista, zine que é feito na liberdade dos trabalhos que acumula e apresenta aos leitores, e não se podem também fazer separações superficiais entre um “tom português” e outro “estrangeiro” ou algo que o valha. O denominador comum, como dissemos, é aquela atenção e grau de intervenção social que os instrumentos da banda desenhada, pautados pela comentário, ou melhor, a sátira social e política, conseguem.
Seja através da clássica estrutura da tira ou banda desenhada cómica (Raul und Rautie, Titus Ackermman), da fábula animal (Stefan e Clayton, Lukas Weidinger), do breve poema onírico (Catarina Henriques e Fruzzie), do humorado retrato das classes políticas portuguesas (António Vitorino e Plu!), ou o tom aparentemente “alternativo” (Schmico, cujo estilo é muito aparentado ao de Câmara Pestana, tal como o de Fruzzie), todas elas agregam-se para construir uma ideia centralizada dessa voz una que devolve a imagem da sociedade, concentrando-se nos seus inoportunos, injustos e injustificados desarranjos. Mesmo as peças mais “oníricas”, “poéticas” ou outro adjectivo que seja mais ajustado, como as de Sónia Oliveira, de Pedro Rocha Nogueira (cuja experimentação figural já é habitual aos seguidores da sua obra, vinda sobretudo das publicações de Beja), parecem querer apontar, ainda que alguma vagueza, flutuação geral, impressão leve, para as possibilidades da expressão total da liberdade dos homens. De certa forma, é como se fossem herdeiros das alegorias políticas dos autores de animação de leste (Norstein, Trnka, Svankmajer, Barta, etc.), expondo as suas vontades e posicionamentos através destes instrumentos mais modestos.
Uma dimensão mais vincada politicamente é a do episódio histórico (e caricato, irónico) da fuga de um guarda de fronteira da Alemanha Oriental para a Ocidental em “Uma história verdadeira”, de Alex Blotevogel, companheiro de T. C. Pestana na aventura do Gambuzine. Apesar dos seus instrumentos de composição de página poderem ter encontrado formas mais acabadas, o objectivo é composto de modo directo e, surpreendentemente, sem grande drama. Outras menções directas a essas realidades são a rábula curta de Anna Bas Backer, sobre as “desaparecidas” e a tortura do regime argentino nos anos 70, e as curtas irónicas de Andreas Alt sobre os sem-abrigo (que nos parecem ser baseadas em duas coisas: uma forma invertida da famosa personagem da Harvey, Richie Rich, e notícias reais sobre os sem-abrigo). A própria Teresa Câmara Pestana apresenta quatro histórias, sendo uma delas escrita por Vasco Câmara Pestana, que atravessam vários humores e naturezas, mas que tocam todos os temas centrais à publicação, enquanto programa; cada história, respectivamente, é sobre: o respeito e integração na natureza, a distribuição dos papéis sociais no mundo contemporâneo (a autora chama a “História de um pai e filho nascidos no mesmo ano de 1965” [ver imagem acima] uma “noveleta da treta”, mas é uma das suas peças mais narrativamente acabadas e fortes), o comentário directo político, e uma abordagem poética-alegórica como aquela citada atrás.
Uma palavra especial guarda-se para a história de Álvaro sobre a educação sexual. O conhecido humor deste autor apura-se substancialmente quando ele o emprega sobre aspectos reais da nossa sociedade, isto é, quando tem alvos mais concretos e verdadeiros. Para mais, a forma como constrói, quase instantaneamente, personagens e seus cenários próprios, o ritmo tão exacto das suas trocas e interacção, faz desta uma pequena pérola do retrato de um país como o nosso.
Tudo isto reúne-se portanto num objecto que respeita o fantasma da origem do seu nome: um animal elusivo, que todos sabem como caçar e avistar, mas sem nunca concretizar com exactidão essa captura, por esfumar-se numa ilusão mais rápida que a realidade.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta e envio da publicação.
2 de novembro de 2010
Gambuzine # 2. AAVV (ed. Gambuzine)
Publicada por Pedro Moura à(s) 7:13 da tarde
Etiquetas: Alemanha, Antologias, Portugal, Zines
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4 comentários:
é isso, os governos vivem uma mumificacäo autoerótica e nós fazemos da bd a plataforma mirone da actualidade...
gralhas muitas, traducöes apressadas nunca...
curioso é que tu agora tb falas das gralhas, deve ser por influencia do geraldes lino, o obliterador da bd que mereci uma máquina de fura livros, acontece que tudo o que eu edito tem gralhas assim como tudo o que leio (até tu fazes gralhas) pode bem ser que a partir de agora adopte as gralhas como estilo orto-pédico-gráfico, e voces os picuínhas linguísticos que se amanhem
o mais importante da divulgacäo é näo esquecer ;
hptt://www.gambuzine.com
näo resisto a deixar aqui mais esta; os autores do gambuzine säo pessoas como todas as outras; eu, o wittek, steffan & clayton e plu! somos um pouco freaks , mas näo diria isso da sónia oliveira nem do pedro rocha nem da birgit weyhe,nem do rautie nem do tittus ackerman , nem do álvaro,se bem que na alemanha toda a gente aos 18 anos está normalmente fora da casa dos pais e mora necessáriamente em ocupas (um percurso que faz parte do ser adulto e ainda bem que é assim ) o andreas alt fui repesca-lo no circuito evangélico que näo frequento, mas admiro a solidariedade social e o investimento humano...nunca liguei muito a tribos, sempre liguei mais às pessoas e à sua marca individual...sem acessórios e num campo de refúgiados somos provávelmente todos iguais näo é?
muito agradecida pela tua divulgacäo de cada vez que tu escreves, novos leitores se aprochegam ...
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