2 de novembro de 2010

O amor infinito que te tenho. Paulo Monteiro (Polvo)

Este pequeno volume reúne quase na totalidade os trabalhos de Paulo Monteiro, cujo trilho na banda desenhada se tem tecido por estes curtos relatos, espalhados em vários projectos editoriais, inclusive aqueles que nascem do colectivo Toupeira, afecto ao Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja, de que é ele o director (no entanto, ficou de fora “Rádio Medo”, uma das nossas peças favoritas deste autor). Todavia, a sua pouca produção é contrabalançada, e sobremaneira, pela força da convicção e presença desses trabalhos.
Paulo Monteiro, em termos estilísticos, gráficos, inscreve-se numa família onde encontraremos nomes tão díspares quanto David B., Craig Thompson, um Mattoti a preto-e-branco, e tantos outros (parte dos convites e presenças destes autores no FIBDB terão a ver com um auscultar das afinidades do autor/director?), que dominam a figuração por um traço que tanto tem a ver com a linha como com a pincelada, uma gestualidade a meio dessas duas. No entanto, Monteiro não é tão dado às manchas negras, orgânicas, do autor francês, e a sua plasticidade é mais moldada que a do americano (aliás, nalguns trabalhos faz lembrar uma certa hieraticidade, à la Léger). As afinidades são mais próximas com o autor italiano, digamos O homem à janela lançando uma sombra sobre “Irei ver a amada”. O grau de diferença do autor português está, de facto, na sua capacidade de escrita (mas uma escrita pela ou com a imagem), na sua entrega ao cultivo de pequenos poemas sob a forma de banda desenhada, uma poesia narrativa, histórias curtas embrulhadas num invólucro de ternura, de palavras amorosas, de gestos simples de aproximação. Para quem experiencia essas emoções, sabe que elas são capazes de criar vínculos fortes com o seu leitor. Precisamente como quem lê um poema.
Parte dessa magia é garantida pelo quase constante uso de uma voz narradora “fora” da história, através de legendas acima das imagens, e até mesmo pela utilização directa de um vocativo ao narratário, seja ele específica (“adeus avô”, “eu fico por cá, mãe...”, “ó amada”, “amada minha”), como se o autor construísse pequenas missivas. Algumas delas têm um destinatário muito concreto – o pai, o avô – outras mais difuso – a amada (e a ela retornaremos) ou o leitor em geral, que nunca o é, somos sempre, particularmente, nós. Elas, as histórias, podem ser de uma fantasia que transfigura as relações (“Este infinito amor que te tenho”) como uma metáfora contra a guerra (“A canção do soldado”, em que tanto encontramos Tardi como o Fernando Pessoa de O menino de sua mãe), como ainda podem ser um espelho levantado contra o próprio rosto, ora metamorfoseado por um qualquer grau de absurdo e onírico (“Fico com as minhas baratas” e “Este sou eu”) ora sob a forma de aparentemente linear verter da realidade quotidiana para uma história (“A tua guerra acabou” e “Para lá dos montes”, uma das melhores peças desta antologia, de um equilíbrio riquíssimo e belíssimo, próxima das de um poema de Kavafis ou de Biedma). Mas são sempre retratos de um autor, deste autor, deste homem.
Todos os autores, sabemos, criam as suas obras numa mistura de emoção, por vezes à flor da pele, e de sapiência criativa, de controlo estratégico. Sabemos também que nem sempre autores maiores são emotivos, e bem pelo contrário são relojoeiros perfeitos (Alan Moore como exemplo acabado), e que deixar fluir as emoções de modo desabrido, permitindo uma total e absoluta expressão pode conduzir somente ao grito: catártico, sim, mas grito que não atinge o outro como a palavra articulada. Recordemos um verso já antes citado, de Adolfo Béquer: “si sientes, no escribas”.
Todavia, há como que uma impressão na leitura destas histórias de que a obra de Monteiro se pauta por uma genuína entrega, um encontro entre actos confessionais e um espalhar de uma abertura perante o seu leitor. Há menos uma preocupação em “contar histórias” - se bem que possa ocorrer esse efeito secundário – do que em tricotar essa expressão emotiva; há menos uma procura por moldar uma beleza e talento e virtuosismo visual do que uma busca pelo garante de dar a ver essa verdadeira transmissão de uma respiração que terá a ver com o amor.
Cada peça, portanto, é uma metonímia de todo um mesmo gesto. E que gesto será esse? Bom, é aqui que espreita um perigo de interpretação que não conseguimos evitar.
É muito provável que incorramos agora num tremendo erro de perspectiva crítica, por arrancar a vivência real, empírica, da experiência do autor para depois iluminar a sua obra [e o facto de haver excertos do diário do autor neste volume não nos exime do pecado crítico que se segue]. Sempre acreditámos – e não o deixaremos de fazer mesmo que saibamos estar a incorrer nesse perigo com estas palavras – que misturar a vida pessoal com a respiração da obra abre as portas à pior classe de comentário, e a um biografismo perigosamente inane e estéril. Repetimos (outra vez) uma citação de Hermann Broch que já havíamos utilizado: “Na familiaridade, está latente o germe da insinceridade e da mentira”. Portanto, com a indiscrição que se segue, caveat emptor: Paulo Monteiro é namorado de Susa Monteiro. Se lermos as obras dos dois autores de forma cruzada, e se os conhecermos fisicamente, descobriremos que as histórias de ambos, quando mergulham nas densas tramas do amor, seja ele fantasiado por que paisagem for (e no livro de Paulo Monteiro encontramos o mundo dos marinheiros, uma malha urbana, um passeio de domingo e até a sombra de um enforcado: apenas duas histórias são directamente uma referência à amada, e ambas têm instrumentos gráficos ligeiramente diferentes, representações distintas, mas é como o eco se mantivesse em todas as histórias), e mostram um amante, este acaba por ganhar alguns dos contornos dos rostos ou da presença um do outro. Assim, é como se a cada leitura de cada uma das histórias destes dois autores estivéssemos na presença de algo que tivesse sido escrito a quatro mãos, recordando-nos experiências como Nós, Outros de Casimiro de Brito e Teresa Salema, por exemplo. Uma declaração de amor mútuo através da banda desenhada. Uma correspondência amorosa de trabalhos. Existem outros casais de autores, ou casais de autores de banda desenhada, mas são raros senão inéditos aqueles que se casam (o verbo “acasalar” seria terrível) pela banda desenhada. Um espelho é uma superfície finita, dois espelhos são duas superfícies finitas, mas um espelho virado para um outtro cria um eterno e infinito corredor. Belo, não?
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro, e ao autor, pelos gestos. As imagens do interior forem disponibilizadas pelo autor.

7 comentários:

Ivan Jerônimo disse...

Os desenhos são muito bonitos. Obrigado por divulgar a obra. Moro no Brasil e gostaria de comprá-la. Há algum sítio de venda de quadrinhos em Portugal que possa me indicar?

Pedro Moura disse...

Caro Ivan,
Infelizmente, não estou seguro se as várias livrarias online portuguesas fazem envios internacionais e a Polvo não tem site. Porém, se quiser muito, poderei dar uma ajuda em obter uma cópia... escreva-me para pedrovmoura @ gmail.com e tentarei ajudar.
Pedro

Dina Rodrigues disse...

Comprei o livro do Paulo Monteiro na Amadora e achei lindíssimo. Emocionei-me, o que nunca me tinha acontecido com um livro de banda desenhada. E poucas vezes, com a literatura. Adorei o facto do autor mudar de estilo de acordo com cada uma das histórias, como se procurasse a "melhor roupa" para cada corpo. Acho que é uma voz única dentro da banda desenhada portuguesa e estou ansiosa para ler o próximo livro.

João Pedro disse...

Boa tarde Pedro Moura. Há já muito tempo que acompanho o seu blog e actualmente acho-o um dos melhores blogs existentes em língua portuguesa, se não o melhor. Ouvi falar muito do livro do Paulo Monteiro e li os comentários que têm saído na net, nomeadamente no Reading Comics, até que acabei por sucumbir à curiosidade (À Dina Rodrigues, que conheço pessoalmente, também devo a insistência). Só posso dizer que é realmente um livro muito belo e poético. Fala daquilo que nos é mais íntimo com uma simplicidade tão grande que chega a ser comovente (o amor, o medo da perda, a solidão, o sentimento de impotência perante o que nos rodeia). Pessoalmente, nunca tinha lido um livro de bd que abordasse estas temáticas. Ainda por cima de uma forma tão sincera e sentida. Admiro-lhe a coragem por falar de coisas que todos sentimos mas que todos calamos. Ainda por cima com desenhos tão belos. A história sobre o pai é um trabalho deslumbrante, a que a impressão no livro não faz justiça, pois vi os originais na Amadora, que são magníficos. É um livro que vou guardar com prazer na estante, daqueles livros que sabemos que nos vão acompanhar pela vida fora e que visitamos de vez em quando. Uma pequena obra-prima que vou aconselhar a todos os meus amigos que não gostam de bd. Para quando, um novo livro deste autor? Fico com a sensação que a bd portuguesa está bem entregue.

Pedro Moura disse...

Cara Dina e caro João Pedro,
Em primeiro lugar, gostaria de vos agradecer os vossos comentários, mesmo aqueles gritantemente exagerados do João Pedro.
Sempre estive em crer que a tarefa de um crítico deve ser, num certo grau, desapaixonada. Não no sentido de cortar as relações emotivas, e até amorosas (não levamos livros para a cama?), com os livros lidos, mas sim a do estabelecimento de uma devida distância que nos permita ver com outros olhos e instrumentos que não os do mero comentário sujo pelo impressionismo, a opinião apressada, a ligação pessoal. No entanto, existem obras que por vezes nos obrigam a transformar o discurso. Seria possível afirmarmos que o que a leitura do livro de Paulo Monteiro provoca, ou provocou, e que levou à ultrapassagem de uma regra implícita no nosso trabalho e ao abuso do elo pessoal, teria sido desencadeado por uma qualquer circunstância pessoal, um estado de apaixonamento que nos torna sensíveis a ecos idênticos, uma usurpação da correspondência em curso em nosso próprio proveito, e provavelmente não estaríamos longe d(e um)a verdade. Todavia, quero também acreditar que o trabalho de um crítico é ler o livro específico com os utensílios que esse mesmo livro possui, e não utilizar uma qualquer grelha fechada que se construiu e se aplica a toda e qualquer nova obra. Por isso, é-se adolescente ao ler "Scott Pilgrim", interventivo ao ler os trabalhos do "Gambuzine" e apaixonado ao ler-se Monteiro. Reparem que são apenas duas as histórias de paixão amorosa (sexual, de namoro, chamem o que quiserem), se bem que quase todas elas elejam um destinatário, um familiar, etc. Logo, essa leitura estará contaminada (quer-se aqui esta palavra com um valor positivo) pelas emoções do livro em si, que são muitas ou marcadas.
O facto do autor ter várias "roupas" prende-se com a circunstancialidade da sua produção (no fim do livro apresenta-se a lista das suas publicações, datas), mas é verdade que não é apenas isso que terá ditado os ritmos e as linhas diferenciadas, mas precisamente a exactidão de cada uma das respirações. Não acredito que não vejamos um segundo volume do autor, mas tendo em conta a vida dos autores e o panorama editorial português, tal talvez possa ainda demorar.
Obrigado a ambos.
Pedro

Anónimo disse...

Cabrão chiboso, macaco hirsuto, baleia mental, finalmente um post com 5 comentários, mesmo que a maioria teus, para dar volume! Ficaste de um segundo para o outro célebre, nem que seja à conta de um livro de outro, porque livros nem tu te atreves a fazer, seu verborraico cagoso!

Yemanjá

Pedro Moura disse...

Já estava com saudades deste tipo de leitores.
Saravá!
Pedro