Em 20010, a bienal de arte contemporânea Arts: Le Havre elaborou uma exposição cujo denominador comum era a sua associação à banda desenhada. Bande dessinée et art contemporain. La nouvelle scène de l’égalité é o título esperançoso dado ao catálogo, cujos textos e responsabilidades se repartem por Jean-Marc Thévenet (comissário principal), Linda Morren (director artística) e Alain Berland (conselheiro artístico). Esta mostra agregava desde autores de banda desenhada tout court - que poderá ser exposta na sua forma de pranchas originais mas assim “arrancado” do seu objecto de fruição final e total, a própria banda desenhada - como Vaughn-Bode, Brecht Evens, Pauline Fondevilla e François Olislaeger, Joost Swarte, Winshluss, o colectivo Atrabile (independentemente de também criarem outros objectos artísticos, noutros meios) a artistas de várias disciplinas - desenho, pintura, escultura/instalação, fotografia - que bebem da banda desenhada alguns dos seus elementos figurativos ou de estruturação de significado (fragmentação do plano visual, narratividade) - como Hippolyte Hentgen, Wim Delvoye ou Raymond Pettibon. E depois há artistas que de facto trabalham num território em que a separação não é totalmente clara, quer pelos aspectos materiais, quer pelas estratégias de comunicação/divulgação/distribuição, quer ainda por linhas de fuga de investigação que são tão internas às especificidades da banda desenhada como de outras disciplinas, ou melhor, do saber indisciplinado, das artes contemporâneas. Encontraremos aí as pranchas imensas de parede de Franck Scurti, os estranhos objectos multidimensionais de Ruppert e Mulot, as anti-narrativas de Ilan Manouach, os estudos de Olivier Bramanti para Au bout du monde, os muitos objectos saídos do colectivo do Frédéric Magazine. E, também, as “abstracções” de Jochen Gerner.
Este pequeno livro reúne ou converte num texto coeso os pequenos trabalhos que apresentara em Le Havre e dá continuidade a alguns dos projectos do artista, tal como explicado por Christian Rosset num epílogo no livro. Gerner já havia operado esta tarefa de “encobrimento” no seu livro T.N.T. en Amérique (L’Ampoule), em que ao cobrir com tinta negra as páginas de Tintin na América acaba por fazer emergir não apenas reduções-pictogramas das imagens e palavras isoladas, mas acima de tudo sentidos até ali ocultos pela ultra-visibilidade da sua matéria original e “clara”. Gerner passaria a outros projectos relativamente idênticos, mas talvez mais formais, ao operar o mesmo processo sobre capas das revistinhas da editora Impéria, cuja colecção de “pequenos formatos” seguiam linhas similares de design e se dedicavam a banda desenhada de género: Battler Britton, Navy, Buck John ou X-13: tudo é transformado num espesso fundo negro, de onde se destaca o título original nas letras estilizadas e grossas a/com vermelho, e alguns elementos flutuantes que, sob a forma de pictogramas minimais, querem preservar a qualidade da violência que esses títulos encerram. Uma frase, criada por Gerner, poderá funcionar tanto como comentário como forma especular do original. Um outro livro publicado pela L’Association, em edição limitada, colecciona 50 dessas capas, Panorama du feu. É explícita a forma como o autor pretende explorar e criticar a violência inerente a esses trabalhos através da sua reconversão formal.
As páginas de Abstraction (1941-1968) são originalmente de um só título, Navy, mas o número exacto da revista não é identificado [utilizamos aqui uma capa aleatória]. O autor é citado como explicando que utilizou uma história de 1968 que retrata uma batalha de 1941. É essa banda desenhada que ele cobriu totalmente a tinta negra, para “revelar” aquelas formas que aqui emergem (e já delas falaremos). Tudo o resto é mantido, inclusive a paginação (que salta uma página, a da publicidade). Este formato da L’Association reproduz o mesmo tamanho, mas não o aspecto geral: a capa é de um cinzento mortiço (a nosso foto “esverdeou” as cores), as letras brancas, sem nenhum do dramatismo do que se imagina ser o original. A aproximação processual a T.N.T. é quase total.
Este processo, já o foi dito noutras ocasiões, é irmanável ao de outros artistas, como a pintora brasileira Rivane Neuenschwander, o espanhol José Ballesteros, o suíço Niklaus Rüegg e, mais próximo de nós, a artista Cátia Serrão. Ainda poderíamos recordar o trabalho de Tom Phillips, A Humument, e um dos projectos de Jorge Nesbitt. Este exercício poderia continuar, à medida que procurássemos novas e consequentes inflexões na noção processual de “encobrimento”, até ao ponto de termos Baldessari ou os irmãos Chapman no grupo, por exemplo. As afinidades com Neuenschwander, Rüegg e Serrão são maiores pelo objecto “fonte” empregue por todos os artistas, a saber, banda desenhada de pequenas revistas baratas sobre a qual depois se opera uma intervenção plástica transformativa (no caso desses três artistas há uma coincidência maior, por serem revistas da Disney). A afinidade com Serrão, por sua vez, é material, já que ambos os artistas operam essas intervenções directamente sobre o papel dessas revistas, páginas arrancadas e transformadas. Porém, apesar de alguns aspectos processuais, materiais e até figurativos/anti-figurativos poderem ser comuns ou pelo menos comparáveis, mesmo que superficialmente, os efeitos não são idênticos.
Mas há ainda um outro factor. Se T.N.T. en Amérique queria fazer emergir sentidos ocultos, de cariz político e social, na obra de Hergé, e as telas citadas acima ainda querem manter uma aparência expositiva, Abstraction (1941-1968) confessa pelo título, a palavra que contém, um fim mais específico: o da criação da abstracção. De acordo com Gerhard Richter, a pintura, e por extensão, outras artes visuais, utilizam a abstracção como modo de compreensão, de conhecimento, de acesso a todas aquelas realidades que são inacessíveis ao ser humano, e que durante séculos, ou ainda hoje, encontrarão imagens figurativas em conceitos como os céus e o inferno, Deus e o Diabo, etc. Richter afirma (num texto de 1982 para a documenta 7) que “com a pintura abstracta temos a possibilidade de abordar o imperceptível, o incompreensível, porque este representa ‘nada’, e com maior nitidez, com todos os meios da arte”; as pinturas abstractas (e parafraseamos) “ilustram nítida e incompreensivelmente essa realidade inconcebível”. Elas tornam-se, portanto, conclui o artista alemão, “a mais elevada forma de esperança”. Apesar de podermos seguir outra via de interpretação, quiçá mais formal, no plano mais plano do visual/material, ou procurar correspondências e analogias que transformassem a aparente livre linguagem pictórica e cromática como conducente a uma resposta emotiva e cognitiva predeterminada, parece-nos que o que Richter diz propõe duas vantagens: nem se reduz a dizer que o abstracto “não representa nada”, nem fecha os seus sentidos a ideias apriorísticas. Fá-lo mesmo associar-se àquele movimento da mente que Kant discutira, o “jogo livre” da imaginação e do entendimento. Uma tenta conduzir a outra, num incessante movimento de sentido protelado e, por isso, exponenciado. Talvez a esperança seja mesmo a capacidade de tornar infinito esse movimento.
Então, mais um ponto de encontro entre o trabalho de Serrão e de Gerner está nos resultados abstractos ao nível da forma superficial, mas não no veículo que transporta essas mesmas formas (o que não se verifica totalmente nos de Rüegg ou de Neuenschwander), o que altera a sua leitura. Os casos de Cátia Serrão e este projecto em particular de Gerner são muito comparáveis em todos os passos, de facto, excepto o do resultado final, isto é, o “texto” que é ofertado aos leitores/espectadores para fruírem. Estamos aqui a compreender o “resultado” final em duas metades, que não é mais do que uma ficção da nossa parte, um exercício de pensamento que abstractiza ele mesmo os objectos concretos ofertados por cada um dos artistas. No caso da artista portuguesa, o seu trabalho foi até agora apenas exposto, no de Gerner existe agora este pequeno livro que volta a criar uma forma de unidade e um meio passível de leitura, isto é, passa a estar compreendido nas artes do livro, livro de artista se quiserem.
Essa diferença é fulcral. O eixo físico-motor com que abordamos obras numa parede de uma exposição não é o mesmo que se entrega à leitura de um pequeno livro. Numa breve consideração superficial, poderíamos dizer que os frutos abstractos de Serrão e de Gerner são idênticos, mas não são. A menos que venha a surgir uma versão impressa, livresca, dos trabalhos de Serrão, com outros elementos que os cartografem numa certa direcção, eles existem num espaço que flutua à frente dos nossos olhos e convidam-nos a considerá-los como formas livres, jamais subsumidas a qualquer programa de sentido, numa valência muito própria de cores, formas, eixos, brilhos, materialidade.
Ora, Abstraction (1941-1968) pretende agora essa subsunção, esse programa. Afinal de contas, a própria existência de um livro paginado e numerado implica a ideia de uma sequência ordenada que comanda a leitura. Os nossos olhos (e mãos, e corpo) encontra nesse formato um mapa para os nossos mecanismos de apreciação. A existência de um campo (a página) dividido em vinhetas - com poucas excepções de uma imagem ocupando o campo inteiro, temos sempre duas vinhetas idênticas -, a colação entre texto e imagens, e a direcção (sendo um livro, não se coloca a questão da simultaneidade, da plurilegibilidade ou da aleatoriadade da exposição), torna essa experiência mais decidida. Há então uma ideia de progresso que nos obriga a ler as palavras “sobreviventes” (ou inscritas sobre o substrato original?) e as formas resistentes de uma certa maneira, tal como a tarefa de leitura-interpretação de A Humument nos fazia compreender uma narrativa, que no caso da obra de Philips ainda conservava alguma clareza.
Essa subsunção é marcada ainda pela sobrevivência de resquícios de formas naquelas apresentadas por Gerner. Afinal, toda a circunstância é corroborada pela presença de algumas palavras iniciais - “Bateau de guerre du monde”, “bataille”, “secours”, “escadrille de naufrage”, “monstre marin”, “manoeuvre”, “sur le pont”, “heroïque indiscipline“, “aviation”, etc. -, as quais ajudam desde logo a criar uma constelação que oscila numa proximidade familiar: o seu contexto original de guerra nos mares, barcos versus aviões, mar e céu, água e fogo. Assim, “lemos” os círculos como bocas de canhão, algumas manchas e tramas negras interrompendo o pouco branco ora como densas nuvens num céu escuro, ora como reflexos de brilhos nas águas. Sob “monstre marin”, vemos formas que poderiam ser algas sob as águas. Sob “opportunité”, uma aberta no tempo, conducente a um ataque ou defesa? Sob “mort” e “malheurex accident”, os cachos de breves linhas horizontais representará uma interrupção, ou um caminho inflexível? Se seguirmos esses possíveis, mas no fundo indecidíveis e indefiníveis elos, poderíamos pensar que Abstraction estaria na mesma senda que um livro como La Nouvelle Pornographie, de L. Trondheim, esse mesmo um falso livro abstracto. Mais, poderísmos querer pô-lo junto a uma outra obra que, não procurando ser abstracta, procura abstracizar o mais possível no interior da figuração, pelo desvio da presença humana, pelo descentramento, e pela emergência de formas idênticas entre o humano, o orgânico, o autómato, o mineral, enfim, a redução de todas as formas naturais a uma só forma plástica: Nautilus, the Ship, de Murai Toyonabu
Mas Abstraction vai mais longe: parece fintar-nos. Dá-nos pistas de interpretação para logo as sonegar. Não há qualquer lógica interna ou regrada da relação entre as palavras e as formas. As primeiras poderiam ser agregadas em várias categorias: gramaticais (a maior parte são substantivos, mas há também adjectivos, verbos no infinitivo, interjeições), número (a maioria palavras isoladas, mas há também frases autênticas, ou construções complexas, compostas, que tanto podem ser formulaicas - “choc fatal”, “sueurs froides” como misteriosas - “mépris de la mort”, “trou d’air”: serão citações?, cut-ups?, acasos?), forma (itálicos versus redondo), posição (em cima, à esquerda, ou em baixo, etc.). As segundas parecem atravessar todas as tipologias possíveis, de linhas curvas a rectas, contínuas a seccionadas, isoladas ou combinadas, tramas aleatórias ou composições fechadas.
Qual é a lógica? Fará sentido sequer desejar que ela exista? Não será essa obsessão um desfavor em relação ao modo de trabalho de Gerner? Em francês, há uma aliança etimológica entre “desespero”, “désespoir” - o movimento do leitor em busca de um sentido que pudesse encerrar Abstraction (1941-1968) - e “esperança”, “espoir” - aquela que Richter pretende que a arte abstracta nos ajuda a cumprir, aproximando-nos um pouco mais à natureza do inefável. Talvez seja essa oposição, essa guerra, aquela que, presente no livro, seja também ultrapassada.
7 de setembro de 2011
Abstraction (1941-1968). Jochen Gerner (L’Association)
Publicada por Pedro Moura à(s) 10:29 da tarde
Etiquetas: Adaptação, Experimental, França-Bélgica, Territórios contíguos
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