12 de setembro de 2011

Chagall en Russie, 2 vols.. Joann Sfar (Gallimard)

O que há numa vida? (segunda resposta)
Sem querer com isso apontar para uma qualquer fraqueza que se possa depreender, Chagall não encerra grandes surpresas em termos materiais, estilísticos, compositivos, ou até mesmo de alguns aspectos temáticos no interior da contínua obra de Sfar. Voltamos àquela fórmula de paginação regular (2 x 3) - que, como explicara Chavanne, ajudará os autores a concentrarem os seus esforços noutros domínios. Neste caso, uma (pseudo)biografia de Chagall. Ao mesmo tempo, e na relação para com a investigação temática, há duas linhas que se repetem também, cada uma entrosada na outra, ou unidas de uma forma indistrinçável. (Mais) 

Por um lado, o interesse que Sfar nutre por certos autores, que parecem constituir uma família criativa que, quem sabe, o autor elege como seus padrinhos, expandindo o campo da banda desenhada enquanto campo ressonante das energias criativas a outras áreas: a pintura e ilustração, com Pascin, a música, com Gainsbourg e Brassens, e um tipo de boémia, com todos eles (e isto para citar apenas aqueles projectos em que essas ligações são flagrantes). 

Por outro, a transformação das suas narrativas em banda desenhada numa máquina de reflexão sobre as capacidades expressivas, recriativas e transfiguradoras do desenho. Ou seja, a utilização da banda desenhada para a emergência de um pensamento autotélico e metalinguístico, sem com isso criar um discurso obtuso, impenetrável nem denso. Toda essa força de argumentação encontra-se perfeitamente integrada na história que Sfar conta, de uma forma fluida e nítida, se bem que no caso de Chagall en Russie exista como que uma qualidade líquida que o atravessa, fazendo com que quase todas as personagens se abandonem aos seus pensamentos, desejos e memórias, dando-nos acesso às imagens que habitam as suas mentes, e transformando a narrativa numa sequência de blocos de sensações tanto autónomos como interdependentes.

A esses temas, acrescentar-se-ia o judaísmo e as suas culturas, a reflexão filosófica ancorada na experiência mais prosaica e terra-a-terra possível, e de certa forma, reveladora de uma espiritualidade tão antiga e libertária quanto presente, as fronteiras entre as necessidades de um amor que se desejaria casto e as pulsões da lascívia e do ciúme. No seguimento disso, poderíamos dizer que este livro se parece com a de um romance alegórico, podendo-se fruir a superficialidade dos seus eventos ou optando por nos concentrarmos em cada episódio, cada frase, cada personagem, como símbolos de algo a elaborar por nós mesmos. Outra flutuação. Num momento, uma das personagens diz que não gosta de símbolos - porque Chagall o pinta de amarelo - , ao que Chagall lhe responde que ele se restringe aos materiais que tem - neste caso o amarelo. Noutro, vemos um sonho em que o pequeno Chagall vê-se obrigado a desenhar com fruta, mas não o consegue fazer nem com uma maçã nem com um figo, e só abrindo uma romã, e esmagando os seus baguitos, é que mancha a folha de vermelho. Tendo em conta o papel que a romã tem enquanto marca da sabedoria e da fecundidade no judaísmo, como não ler este episódio como outra alegoria? Acreditamos que o propósito de Sfar é transformar os próprios livros em modos paradoxais de pensar.

Tal como no caso de Pascin, Sfar não está a criar aqui uma biografia real, ancorada nos acontecimentos verdadeiros da vida do pintor, ou até mesmo na autobiografia que o pintor escreveu (Ma Vie, de 1923). O mais importante é eleger um princípio de elementos reais, suficientes e fortes para criar uma base ancorada, e a partir dela permitir que a ficção, e até mesmo a fantasia, procure os caminhos que melhor encontrar para o seu fito. Recordemo-nos que também a vida de Pascin não correspondia à realidade, e que o artista russo que aparece em Le Chat du Rabbin era uma imagem de Chagall. Enfim, com Sfar estamos sistematicamente a entrar e sair e a confundir os territórios da ficção e da realidade, da vigília e do sonho, da vida corrente e daquela presente na arte (o que terá um papel fundamental nesta obra em particular), dos paradoxos e contradições que surgem inevitavelmente quando procurarmos satisfazer mais do que um desejo ou sonho, quando alguns deles esbarram com a vontade dos outros, quando somos, inevitavelmente, humanos.

Chagall en Russie mostra a vida de Chagall nos shtetls em Witebsk, então parte do Império Russo e lodo depois da União Soviética, atravessando quer as ameaças anti-semitas dos Brancos e dos Vermelhos quer a vida patusca e rural e simples dessas origens e os luxos conquistados pela aproximação aos mundos cosmopolitas, e testemunha igualmente o crescimento difícil do entendimento de Chagall sobre qual o verdadeiro poder da (sua) arte, opção tomada em contraste com uma vida “de um bom trabalho”, como desejaria o pai da mulher que ama: Reb Tevié, o leiteiro. Esta última informação serve para ligar a uma outra tradição ficcional, a dos contos de Sholem Aleichem sobre essa personagem, grafada como Tevye, e as suas filhas, que dariam origem ao famosíssimo musical Um Violino no Telhado. Esse universo e o plástico de Chagall unem-se neste discurso bem moldado ao modo de Sfar. Várias personagens quase-alegóricas, outro ponto típico do autor francês, atravessam-se pelo seu caminho: o judeu que pensa ser o Jesus nazareno - mas verde, como se fosse um piscar de olhos ao amarelo de Gauguin? - , músicos klezmer, o circo composto de ex-mercenários e depois prostitutas da Ópera de Paris, o temporalmente deslocado mas tão certeiro rabi de Lobavitch, que não os pôde atender mas que mesmo dormindo partilha com eles as portas do sonho, e as farândolas de anjos, mas acima de tudo, a sua amizade por Tam, o “Simples”, açougueiro kosher, e a paixão pela bela filha de Reb Tevié, que se unirão num percalço quase inultrapassável.

Há duas páginas, uma em cada livro, que podem servir de ponto de ligação e metáfora unificadora deste título. Ambas continuam a grelha regular, mas unem-se para reconstruir o corpo de Chagall, num caso voando por entre os objectos que simbolizam as suas fortalezas, no outro tombando no celeiro, marcado pela traição amorosa. A primeira é uma espécie de “ascensão” de Chagall, proporcionada pelo sonho, pela entrega ao Hassidismo, pela tarefa da pintura, da ilustração, do desenho que o artista havia descoberto como forma de responder a todo o mundo que o circundava - especialmente aquele que se transformaria na matéria protegida da infância do artista real nas suas pinturas, e que se vê aqui transformado. A outra é uma queda mais real, suscitada pelo choque de ver a mulher que ama nos braços de Tam, mas essa queda proporcionar-lhe-á, por sua, vez, um novo acesso às alucinações do sonho, e, de certa forma, às visões que o colocam num ponto de vantagem. Quase no final, já na união total entre Tam e a rapariga amada por Chagall, este diz-lhes que “les histoires d’amour finissent mal dans le vrai monde”. Piscadela aos Les Rita Mitsouko, ou mais um factor de complicação sobre os níveis de realidade e ficção a que o livro de Sfar se entrega?

Essa perspectiva imaginativa e criativa de Chagall é representada, em momentos, por um mecanismo gráfico curioso, tão contundente como incómodo. A representação do “eu” em banda desenhada não segue as mesmas regras da língua escrita e falada, que tem sempre acesso a parte dessa experiência pelos pronomes pessoais. O “eu“, graficamente, é sempre representado por um “ele”; mesmo nas autobiografias em banda desenhada, o autor/narrador/personagem surge como um corpo entre os demais. Existem casos de algumas bandas desenhadas que tentam mostrar o que uma pessoa vê através dos seus próprios olhos, mas esses resultados são sempre limitados a efeitos extremamente dramáticos (pensamos numa história de Eisner, outra de Marco Mendes, a história de terror de 1953 “Colorama”, de Bob Powell). Sfar usa um mecanismo, um punhado de vezes, que é ver uma secção da cabeça de Chagall, com nervos e veias visíveis, e no seu interior os sonhos, as memórias, a terem lugar como num palco minúsculo, mas onde cabe o mundo. É por vezes com essa estratégia que vemos alguns dos passos de Chagall-a-personagem a descobrir as vias com que poderá capturar a realidade, e depois transformá-la. As reflexões de Chagall poderão ser as de Sfar sobre a sua própria arte, como imaginaremos sem grande esforço, marcado por um falsamente simples pensamento. Os ecos de filosofia estão sempre presentes. O momento em que Chagall pensa querer abandonar a “máquina de palavras” pelo “lápis” que “faz calar todas as vozes da minha cabeça”, mas em vez disso se atira às águas para nadar parece estar próximo de algumas ideias de Deleuze.

Sfar não se limita a tornar possível o acesso aos sonhos e memórias de Chagall. Se Chagall en Russie aproveita momentos da sua vida, mas sobretudo a sua obra pictórica, para reformular a realidade da sua vida, a própria plasticidade do desenho é explorada no interior da ficção e das especificidades deste meio. Um desses momentos é o encontro de Chagall com Tam, e a discussão que ambos têm sobre a melhor maneira de o desenhar, o que testemunhamos na própria representação de Tam naquele universo diegético, espaço ficcional do livro que lemos…

Quando se aventou que havia uma vida presente na arte, que transfigura e está para além da real, isso ganha um sentido muito literal na ficção fantasiosa de Chagall en Russie: Chagall tece muitas considerações sobre o desenho ao longo da obra, entre as quais as suas capacidades salvíficas, o que contrastando com a violência que rodeia estas personagens tem um sentido muito claro. No fim, a forma que Chagall encontra de salvar os seus companheiros e concidadãos é colocá-los no interior do seu bloco de desenhos, é transformá-los em desenho. Não poderá ser essa uma forma belíssima, poética, de entender, de sublinhar mais uma vez, o que Chagall afinal fez na sua obra pictórica e de ilustração? Não será essa uma maneira também de Sfar dizer que ele mesmo quer atingir uma forma salvífica com os seus livros? Mostrando que uma vida pode encerrar fábulas…

4 comentários:

felipe dos santos disse...

sugiro a leitura da hq brasileira Cachalote.

Pedro Moura disse...

Caro Felipe dos Santos,
Agradeço muito a verve com que publicita esse livro, que muito gostaria de ler, de facto. Mas se vai colocar o mesmo comentário em todos os posts, considerá-los-ei spam e apagá-los-ei.
Obrigado,
Pedro Moura

felipe dos santos disse...

lamento não foi intenção.

Pedro Moura disse...

Sem problema, Felipe. Como disse, fiquei muito curioso com o livro e vou tentar obtê-lo, pelo que lhe agradeço muito. Achei simplesmente que não valia a pena espalhar por todo o blog. ;)
Obrigado mais uma vez! Ou, Valeu!
Pedro