6 de outubro de 2011

The Bayeux Tapestry. The Comic Strip. Gilles Pivard e Arthur Shelton (OREP)

Penso que a apresentação geral da Tapeçaria de Bayeux é por demais conhecida. No essencial deve guardar-se o facto de que se pode olhá-la tanto quanto um documento histórico (todos os artefactos o são, é certo, mas há uns mais que outros) e como obra de arte (pelas suas específicas características formais e estilísticas), criada algum tempo, mas pouco depois, da Batalha de Hastings, a 14 de Outubro de 1066, que ela própria retrata. Essa foi, em suma, a batalha que opôs aquele que seria o herdeiro legal da coroa da Inglaterra (de acordo com a história contada na própria Tapeçaria), Guilherme II da Normandia, depois ganhando o cognome de “O Conquistador”, e os povos saxónicos que não queriam “estrangeiros” reinando as suas terras. Opunham-se, de um lado, os exércitos “franceses” de Guilherme e, do outro, os defensores “britânicos” de Haroldo II, genro do rei anterior, Eduardo o Confessor, e “traidor” da confiança que tinha com Guilherme, a quem havia antes prestado vassalagem, cumprindo o desejo de Eduardo em ter em Guilherme um bom e pacificador rei do seu reino. Enfim, marca o início do reinado normando da Grã-Bretanha. Esta obra famosíssima tem a história dessa batalha como a última e climática cena de um ano de acontecimentos em seu torno, desde a morte de Eduardo a toda a rocambolesca trama que relaciona os outros dois soberanos. A narrativa é clara: Eduardo quer dar continuidade à paz, passando o testemunho a Guilherme, pedindo a Haroldo que passe a mensagem; este é levado pelo interesse dos barões saxões e usurpa a coroa; Guilherme responde a esta afronta com a guerra, e sai vitorioso. Simples, linear, sem problemas? Veremos.
Outro aspecto importante é que não é uma tapeçaria, mas sim um bordado: algodão de uma contida mas expressiva paleta (apenas 8 cores) em 70 m por 50 cm (a parte final perdeu-se, o que só por si abre caminho a interpretações, algumas das quais dignas de thrillers policial-históricos contemporâneos) de imaculado linho.
Existirão muitos outros livros que oferecem reproduções de maior qualidade do bordado histórico, com maiores introduções históricas e até com argumentos e complementos mais alargados e profundos, do que esta edição. A curiosidade está no facto deste livro de divulgação dar continuidade a uma integração problemática no campo da banda desenhada desta obra de arte medieval, ou torná-la acessível a um público mais jovem (não há dúvida, até por outros projectos análogos da mesma editora e dos mesmos autores, de que o seu público-alvo estará em idade escolar, cujos programas incluirão sem dúvida uma abordagem aos eventos retratados) através de mecanismos formais desenvolvidos na banda desenhada moderna.
Não há forma de diminuir o fascínio que esta peça tem exercido nos mais variados campos. Todos e quaisquer elementos que a compõem, toda e qualquer perspectiva que se possa aplicar é passível de rasgados elogios, discussão e contínua fruição: ao nível da técnica, da representação, das informações sobre costumes e gestos, vestes e alimentação, estratégias militares e armamento, aspectos de falcoaria, trabalhos agrícolas, a inclusão de representações das fábulas de Esopo nas margens, a aparição do que seria chamado de “Cometa Halley”, não há nível que não provoque rios de tinta, como se costuma dizer. Mas há muitos outros aspectos por desvendar de forma cabal, de figuras misteriosas e incompreendidas até agora, a atribuições de nomes ou nomenclaturas nada claras (“Turold”, por exemplo).
A própria factura do bordado é extremamente complexa e nada linear. As atribuições da encomenda são múltiplas (o bispo Odo irmão de Guilherme, ou Edite, irmã de Haroldo?), tal como a sua função original (celebração da vitória normanda ou acusação de usurpação de Guilherme?; curiosamente, a inclusão das lendas de Esopo é vista pelos defensores dessas duas posições como variação do tema central, ora contra Haroldo, ora contra Guilherme). O papel de propaganda, que seria tão caro à banda desenhada do século XX, não é de todo alheio a esta obra. Por exemplo, crê-se que a seta cravada no olho de Haroldo, que o mata, é uma adição posterior, para sublinhar o seu estatuto de “abjurador”. Mas também é possível que a propaganda fosse até em detrimento do poder de Guilherme, tal como poderá ter estado revestido tão-somente de um mero propósito de entretenimento moralista para a nova classe nobre da nova dinastia.
E a sua história material, a sua própria sobrevivência, é também alvo de curiosidades, desde a sua momentânea perda à sua redescoberta no século XVII, e todas as vicissitudes ou breves glórias que sofreu, desde o ataque Calvinista à Catedral de Bayeux até às mãos de Napoleão movendo-a para Paris ou o misterioso telegrama de Himmler desejando apossar-se dela.
Ainda hoje a Tapeçaria é matéria de amor-ódio entre franceses e ingleses. A que “nação” pertencerá? Independentemente do seu propósito original, quiçá irrecuperável para sempre, esta obra tem um papel definidor no regime de construção da tradição homogeneizante dos povos (a “invenção da tradição”, de Hobsbawn e Ranger) - e seus nacionalismos - que implica, apesar de historicamente as relações entre saxões e ingleses, por um lado, e normandos e franceses, por outro, não ser, de forma alguma, linear e estanque. Para a tessitura da história inglesa, esta é uma peça fundamental, já que os normandos de Guilherme são mais uma adição aos anteriores bretões, depois os anglo-saxões, depois os dinamarqueses… Quer dizer, a história da Inglaterra, tal como a de quase todas as outras nações (na sua acepção moderna, e Portugal não é excepção) é feita do encontro e cruzamento e mescla de povos diversos, em circunstâncias diversas, com resultados diversos. Não existe qualquer possibilidade de encontrar uma linha narrativa, ou um tema, no sentido musical, idêntico e transversal da formação de uma nação. A não ser, eventualmente, uma: a da violência.
Afinal de contas, o episódio narrado por este “texto” (recordemo-nos de que a Tapeçaria contem uma faixa principal de imagens, acompanhada de alguns textos, nomes, descritivos, e ainda de complementos imagéticos; e, para mais, esta versão em banda desenhada explora substancialmente a cena final da Batalha de Hastings) é de uma violência típica com que são constituídas as origens das nações. Ernest Renan escreveu, num texto de 1882 (“Qu'est-ce qu'une nation?”), que “o esquecimento, e direi mesmo, o erro histórico, são um factor essencial da criação de uma nação”. E não haverá maior instrumento de esquecimento e de consolidação do erro histórico em “verdade” do que os processos mitificadores (e aqui é preciso ter em mente o seu sentido etimológico de narrativa) proporcionados por objectos como este, reforçada pela “guerra justa”? A sua estória acaba por ser um sinal superior do que aquele da história propriamente dita.
O mesmo se estenderia para com o discurso em torno das origens e formação desta forma de arte a que damos o nome, por agora, de “banda desenhada” (por agora pois o termo é relativamente recente e poderá, quem sabe, desaparecer em breve, substituído por outro). À força da repetição acrítica, acriteriosa e supostamente indiscutível - ex.: “como todos sabem, formas de contar histórias em imagens remetem aos tempos pré-históricos” -, a Tapeçaria de Bayeux torna-se um dos Ur-exempla da banda desenhada enquanto arte transhistórica, eterna e universal (é citado repetidamente por livros de divulgação, introduções apressadas, etc.). Como diz Kunzle, faz parte do típico desporto de uma “história enlatada que mergulha ao acaso na história geral da arte”…
A aplicação da expressão “first comic strip” não é, portanto, incomum nas referências à Tapeçaria. De facto, a acção está representada na faixa central da longa tira de linho, sem quaisquer divisões de cena a não ser os espaços “interdiegéticos”, perfazendo uma superfície que deve ser lida da esquerda para a direita. Não é o primeiro, nem seguramente o único objecto que poderia ser encontrado com essas características, bastando recordar o rolo de Joshua (Codex Vaticanus, do século X, escola Bizantina). A partição da Tapeçaria em unidades visuais-narrativas menores (“vinhetas”), a sua estruturação em pranchas de banda desenhada, inclusive uma dupla prancha com a cena dos navios partindo em direcção às Ilhas Britânicas, e a inclusão de uns quantos balões de fala (não empregando propriamente o texto original, mas imaginando os diálogos de forma a acentuar a acção) e onomatopeias, serve para enfatizar essa filiação, reintegrar este objecto numa tradição moderna mas, ao mesmo tempo, como vimos, a tornar mais acessível, ou acessível de um modo específico, o texto original num veículo hodierno.
Possivelmente - ou melhor, de certeza - os autores simplificaram algumas das dificuldades do texto original (não apenas da matéria verbal mas também das representações imagéticas menos claras), abrandaram os pontos controversos e confusos, procurando (re)criar uma narrativa mais linear e de fácil apreensão, sem dúvida com o intuito de ofertar uma primeira abordagem, necessária para uma posterior e mais profunda investigação. A análise narratológica dos acontecimentos, por exemplo, permitiria a descoberta de uma trama mais complexa do que qualquer sinopse poderá alguma vez apresentar. Por exemplo, se se tivesse em conta o papel, nada secundário sob a luz das possíveis análises contemporâneas, das três figuras femininas, aparentemente em segundo e breve plano na Tapeçaria. É nestes sentidos que as leituras feministas (ou advindas dos estudos culturais) podem despertar significados objectivos (no sentido em que estão objectificados no texto) e revelatórios. Mas esses aspectos estão aqui suspensos.
As especulações históricas e políticas em torno da Tapeçaria de Bayeux são, previsivelmente, multidão, mas essas não poderão ser alvo desta brevíssimo post, até por exigirem um conhecimento que não nos pertencerá jamais. Talvez não haja outro pedaço da invenção humana à qual a expressão “quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto” não seja mais exacta, literal até. Talvez o livro de Andrew Bridgeford, 1066, the Hidden History of the Bayeux Tapestry seja aquele que apresenta uma versão mais elaborada e, também, convincente, mas no campo da história, nunca nada é definitivo.
Nota final: agradecimentos à editora, pelo envio do livro.

3 comentários:

Filipe LF disse...

Não conheço o livro;o Artigo é notável!

Lucas disse...

Olá! Adorei a postagem, mesmo agora, em 2013! =D Olha, eu procurei e procurei, mas, infelizmente,não achei... Por que motivo existem representações das fábulas de Esopo na Tapeçaria de Bayeux? Existe algum significado nisso? Agradeço imensamente se puder me responder! Até logo! Obrigado desde já!

Pedro Moura disse...

Caro Lucas, isso quase parece um pedido de tpc. :)
Seja como for, sim, existem cenas incluídas na tapeçaria. Eis um link de um texto em inglês que aborda isso:
http://englishhistoryauthors.blogspot.pt/2013/01/aesops-fables-and-bayeux-tapestry.html

Pedro Moura