No rescaldo das Primeiras Conferências de Banda Desenhada em Portugal, de que daremos notícias em breve, e na convergência da nossa participação em dois projectos relativamente análogos, a saber, o livro, 1001 Comics: You Must Read Before You Die, dirigido por Paul Gravett (leiam mais aqui), e o Top 10/Top 115 do blog Hooded Utilitarian (vejam aqui e procurem todos os documentos e discussões associados), deixamos, para a leitura dos interessados (e pacientes: atenção, documento de 13 páginas!), um pequeno ensaio algo desorganizado sobre a ideia do cânone ou da canonização literária aplicado ao campo da banda desenhada. Esperemos que sirva algum propósito.
Podem consultá-lo aqui.
4 de outubro de 2011
Listmania! (O Cânone na Banda Desenhada)
Publicada por Pedro Moura à(s) 10:02 da tarde
Etiquetas: Academia
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12 comentários:
Deixo aqui uma mensagem de extremo agradecimento e apreciação pelo trabalho que vem fazendo e fará. Realmente muito motivador, espero que não pare.
Só posso eu agradecer, Thales. Obrigado!
Pedro
Olá Pedro:
Obrigado pelo modo como terminas o teu texto sobre a canonização. Se ao princípio afloras um pouco o facto de entre literatura e banda desenhada, como campos sociais (e Bourdieu teria, aqui, uma palavra a dizer) haver uma grande diferença não desenvolves o tema no resto do texto. Acho que a canonização numa subcultura que se desenvolveu como reacção infantilizante e anti-intelectual à cultura oficial tem obviamente de ser muito diferente de todas as outras (por "outras" refiro-me às artes socialmente legitimadas se é que isso não está hoje reduzido a um resíduo elitista, como creio que está por destruição completa do sistema educativo, etc...). Enfim era só para te agradecer o facto de teres visto que o meu projecto é mais de alargamento do que de fechamento. Digo isto porque me acusam (Matthias Wivel, por exemplo) frequentemente de ser dogmático. Não digo que não o sou, apenas gostava era de os ver a reconhecer que não o são menos...
Olá, Domingos.
Como sempre, nestas questões tão complexas, fica sempre mais por dizer do que o que consegue efectivamente dizer. E há sempre pequenas curvas que levam a problemas ainda mais complexos, socialmente mais perigosos ou mesmo aporias. O meu ponto principal, que não sei se é claro, de não acreditar que alguma vez seja possível mecanismos idênticos na banda desenhada do que noutros meios tem a ver com o facto de que não existe um corpus de acesso idêntico ou de circulação idêntica entre os vários pólos de produção e de consumo (que podem não coincidir). Alguns de nós, portugueses, lemos banda desenhada franco-belga, norte-americana e japonesa (e brasileira, argentina, finlandesa, e portuguesa, etc.), mas talvez o mesmo não ocorra tão continuamente entre os franceses e os norte-americanos e os japoneses, etc. Logo, como esperar que os mesmos critérios ou os mesmos corpus possam alguma vez coalescer num consenso? Por outro lado, será necessário? Eis outra discussão.
E concordo em absoluto contigo e é por isso que acho o projecto do Crib Sheet uma abertura curiosa: tu (mas outras pessoas também) têm consciência da escolha que fazem. Chamar isso dogmático pode ser, talvez, duas coisas: 1. reconhecer que a pessoa que o faz tem de facto um programa (um "dogma", se se quiser), 2. não reconhecer, pela parte de quem o diz, de que também segue um programa, só que à vista dele/a, esse programa é "universal", "natural", "consensual". Quando alguém começa a dizer "toda a gente concorda que", " como todos sabem", etc., está o caldo entornado.
Abraços,
Pedro
Claro... ser inconsciente do dogma que se segue não significa que se não siga um...
Por outro lado tens razão quanto à compartimentação do corpus. Sobretudo se estamos a falar de coisas não comerciais. É perfeitamente compreensível que um editor nem sequer pense em traduzir uma obra que no país de origem foi comparticipada pelo Estado. Li recentemente um texto de Pascal Lefèvre (com Morgan di Salvia) em que se diz que na Bélgica 27 artistas de língua holandesa e 35 artistas de língua francesa receberam bolsas do Estado (acho que no prazo de um ano). Não sei se foi para produzirem a _História de Ghent ou coisa do género (como tantas vezes acontece aqui) ou se foi para criar livremente, mas um livro subsidiado pelo Estado belga e editado pela Frémok, por exemplo, só pode ter êxito artístico não pode ter êxito comercial. Isso implica que não pode ser exportado a não ser que outro governo aceite subsidiar também como aconteceu a _Woyzek_ de Olivier Marboeuf nos tempos da Bedeteca.
Tenho de ser breve, mas isso abre ainda um outro campo de problemas que é a subsidiação financeira cultural que é um facto europeu mas inexistente como tal nos Estados Unidos e com contornos bem diferentes na Ásia. E depois lá viriam os detractores a bradar aos céus sobre esse apoio ("se não vingam no mercado é porque não prestam"). Enfim, enquanto houver quem ache Tarzan um "herói" de todos os tempos e não perceba precisamente que Woyzeck é uma personagem bem mais actual (e hoje!), nem valerá a pena "kicking against the pricks". No fundo voltamos à mesma questão: há ou não há - não reificada mas enquanto processo até da nossa escrita - uma hierarquia de valores no interior da banda desenhada?
Como "inexistente [...] nos Estados Unidos"? Então e o National Endowment for the Arts? Para já não falar de uma lei do mecenato que, de facto, funciona. Claro que nos Estados Unidos nada disso tem muito a ver com a banda desenhada porque, como disse, esta se automarginalizou. Mesmo assim há bolsas privadas (ou, pelo menos, houve uma). O ano de 1984 já vai longe, mas foi nesse ano que Kevin Eastman e Peter Laird começaram uma caminhada que os levaria a tornarem-se milionários com as suas Teenage Mutant Ninja Turtles. Depois disso Estman e Laird contribuiram de duas formas diversas para o mundo dos comics: 1) Estman fundou a editora Tundra sem fins lucrativos (uma espécie de hobby em que publicou o que quis e aquilo em que acreditava). Resultado: a editora faliu (ou melhor, Eastman desistiu) quando chegou aos 5 milhões de dólares de perdas. Pelo caminho ficou _Cages_ de Dave McKean e _The Marat Sade Journal_ de Barron Storey, por exemplo... Pelo seu lado, o mais discreto Peter Laird ajudou durante vinte anos (2.500.000 de dólares) no financiamento da publicação de inúmeras operas primas (primeiras obras porque as obras-primas essas, convenhamos, escasseiam). O que escrevi acima é só uma pequena históriazinha para demonstrar como a subsidiação das artes existe nos Estados Unidos e até existiu no guettozinho da banda desenhada. (O site da Xeric Grant: http://www.xericfoundation.org/index.html )
Se a primeira vítima na guerra é a verdade a primeira vítima do neoliberalismo selvagem é a alma; a primeia a saír vitoriosa é a boçalidade.
Na verdade, a minha frase foi um problema de redacção, e as minhas desculpas por isso. Queria apenas indicar que a questão dos subsídios é algo diferente entre a nossa realidade europeia e a dos EUA. Não quero ser redutor nem determinista, mas poderíamos dizer que há uma atitude generalizada nos EUA de que a eficiência só pode ser garantida pela desregularização do Estado e a privatização (mais competitiva), ao passo que na Europa ainda existe a defesa de uma ideia de Estado que deve servir de providenciador do “bem comum” (e assim servir de tampão à expansão capitalista dita “selvagem”, como se lhe assistisse uma versão “domesticada”), através de descentralizações de apoios financeiros (isto é, a vários níveis dos governos e usualmente com algum grau de autonomia em relação ao poder executivo). Dois paradigmas, talvez? A diferença entre a social democracia, entendida de modo lato, na Europa, e o (neo-)liberalismo norte-americano tem recrudescido nos últimos anos, em detrimento sempre, sempre, de uma valorização da cultura e da educação (nós para lá caminhamos, hélas). Bastará ver como é que um plano nacional de saúde nos EUA leva a um Tea Party e ouvir a discussão sobre “as filas nos hospitais da Europa” (bom, do que vemos nos nossos hospitais, convenhamos que há verdade nisso).
O exemplo do NEA é excelente, mas não nos podemos esquecer de duas coisas. Primeiro, a de que é uma estrutura federal, ultra-centralizada, em contraste com as estruturas de apoios europeias, mais locais (camarários, p. ex.) ou pelo menos nacionais (a DGArtes). Em segundo lugar, que tem sofrido cortes brutais e sucessivos nas últimas décadas, quando não foi mesmo posto em causa pelos mais elevados níveis do Governo desse país (graças a casos mediáticos como os de Mapplethorpe e Andres Serrano, mas que serviram de desculpa para outras coisas: e usualmente com a desculpa populista de não se querer apoiar apenas as elites - entre nós é a conversa de café dos “subsídio-dependentes” que fazem coisas “só para amigos” ditas por quem não sai de casa). Penso que não existirão casos tão gritantes no caso europeu, apesar do nosso próprio rol de anedotas portuguesas (Sousa Lara/Saramago, Isabel Pires de Lima/túmulo de Afonso Henriques, a própria despromoção política de Ministério a Secretaria de Estado e a recente discussão em torno da programação dos teatros nacionais e as bilheteiras).
(continua)
(continuação)
Todas e quaisquer ideias que venham à baila poderão servir de aumento do pântano em que me estou a meter (para começar a ideia de “Europa” como se fosse um bloco homogéneo nas suas políticas, economias e funcionamento cultural, e depois por estarmos a suspender a questão da distribuição da riqueza em ambos “blocos”), mas sabemos que a mistura de mercados liberais, gostos das massas, hegemonias culturais e defesas da cultura (“alta”, entenda-se) leva sempre a aporias tremendas. Mas faço parte daquele número que acredita que a liberalização das artes leva sempre a um grau de conformidade dos criadores, já que terão de respeitar um fim comum: fazer dinheiro (“ter sucesso”). É Bruce Springsteen ainda hoje uma voz “alternativa” politicamente?
Estar à espera que a música erudita contemporânea deve sobreviver por si só concorrendo com as miríades da pop actual - isto é, o arbítrio do mercado (que jamais poderá ser considerado “livre-arbítrio”) é um perigo absoluto. Ou então desembocamos nos Il Divo ou na Vanessa Mae… Portanto, acho que se deve defender a primeira com apoios ponderados e decididos por quem sabe(rá) contra a liberalização da segunda, uma vez que as “regras do jogo” não são de forma alguma idênticas. Atitude elitista? You bet. Mas não exclusivista, pois acredito que a fomentação da cultura pela educação é o veículo mais eficaz contra as hegemonias da boçalidade trazida pelo neo-liberalismo, como bem dizes. É preciso esforço para nos educarmos, e bem mais simples em encontrar consenso ao dizer-se “ca granda seca de merda” em relação a um qualquer texto mais denso… Mas a educação tem ido ao ar, tem ido ao ar…
Aliás, isto pode mesmo derivar do facto de que nos Estados Unidos as classes mais ricas têm ficado cada vez mais incultas e brutas, e na Europa as coisas serem algo mais dispersas e ainda existir uma inércia grande em proteger a… “alta cultura” (voltamos sempre ao mesmo problema, quiçá irresolúvel mas central à questão do Cânone - ele tem de ser sistematicamente des-montado para ser re-montado com novas qualificações, mas no fundo nunca é abolido; não contra Hergé a favor de Baudoin, mas Hergé+Baudoin?). De resto, se abríssemos esta discussão à História, estávamos feitos, pois ainda que as realidades sejam incomparáveis sempre existiu o mecenato.
O que dizes sobre a auto-marginalização da banda desenhada parece-me extremamente acertado, e gostava que escrevesses mais sobre isso.
É muito simples:
A banda desenhada foi apenas empresa comercial durante décadas do século XX. Entreteu criancinhas e leitores de jornais com histórinhas inanes e humor inócuo. Atraiu, assim, um público filisteu anti-intelectual e antielitista. Esse tipo de público é ferozmente conservador em termos estéticos (acha que a arte moderna é uma palhaçada, por exemplo). Assim sendo era impossível qualquer contacto entre o campo social da banda desenhada e o campo social da alta cultura onde os subsídios do Estado e outros circulam. A cultura underground não mudou nada, só deslocou ligeiramente o campo.
As coisas mudaram algo nas últimas duas décadas? creio que sim, mas já ouço dizer isso há tanto tempo sem ver progressos reais... Aliás, é convicção minha de que, ironia das ironias, agora que a banda desenhada poderia, finalmente, aceder ao nível de aceitação social das outras artes são as outras artes que ou desaparecem de cena (a poesia, a música contemporânea, ...) ou descem ao nível da banda desenhada (o cinema). Enquanto o projecto iluminista e repúblicano europeu, como bem dizes, sucumbe perante o "não há jantares grátis" da barbárie norte-americana resta-nos esperar que alguns focos de resistência continuem a existir...
Enfim... e tudo isto para explicar porque razão é que não se traduz Fabrice Neaud em inglês ou Ben Katchor em francês (embora ache muito mais fácil a segunda hipótese - pelo menos The Jew of New York foi traduzido para francês, não sei é se teve qualquer tipo de impacto que essa é outra história, se bem que relacionada com esta).
O que é curioso é que no caso português - e peço desculpa se esta é uma intuição mais do que um estudo sociológico - a esmagadora maioria das pessoas herdou do regime de Salazar exactamente filistinismo baboso, com a agravante que nunca fomos um povo alargadamente culto e educado...
Abraços!
pedro
Amén! :)
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