14 de março de 2012

100 Scenes. Tim Gaze (asemic editions)

A descrição subtitular deste livro não é, de todo, uma provocação. Ou sê-lo-á, de um modo muito específico. Apesar da história complicada da banda desenhada, mais múltipla do que os seus convencionais defensores e divulgadores querem dar a entender, ela encontrou momentos de entrosamento com outras áreas criativas, ou outras áreas criativas encontraram nela modos de potenciação do encontro entre a imagem e o texto - ou uma camada visual e uma organização de sentido, melhor dizendo, querendo com isso apontar a um bloco de sensações mais livre na primeira e na segunda uma subsunção a uma coordenação passível de explicação lógica. Está ainda por fazer uma história completa (se for possível) dessa óptica alternativa da história desta arte.
No entanto, temos testemunhado uma acelerada multiplicação de valências, possibilidades, haustos, experimentações, fugas, nos últimos anos, que vêm reforçar o papel social e estético da banda desenhada enquanto disciplina artística cada vez mais aberta, mesmo no perigo (mas porquê entender esta situação enquanto perigo?) de que a sua linguagem ou o seu emprego mais convencional se venha a perder ou pelo menos diluir…
De acordo com Tim Gaze, autor deste grande livrinho, em vez de pensarmos nas imagens e no texto como dois sistemas semióticos opostos, ou pelos menos de natureza muito divergente, deveríamos considerar o seu contínuo. É claro que o texto, numa primeira instância, é percepcionado como imagem. Afinal, vemos as letras antes de as ler, e antes de as escrever aprendemos a desenhá-las. No entanto, se nos munirmos de instrumentos de abstracção e teoria, como a semiótica de Peirce, apercebermo-nos-emos das diferenças de interpretação que estão em jogo face a ícones (as imagens) e símbolos (as letras) (e a isto voltaremos). Seja como for, nesse sentido, podemos considerar algumas experiências em que a imagem surge num seu valor textual (desde os enigmas figurados ao movimento lettriste, passando mesmo pelos variadíssimos projectos de instituir uma linguagem infográfica, inclusive o Isotype) ou em que o texto é utilizado no seu valor visual (da micrografia hebraica e a pintura caligráfica chinesa aos caligramas de Apollinaire, dos vários capítulos da poesia visual às intervenções tipográficas do futurismo, de Paulo de Cantos, de Massin). Tim Gaze tem continuamente demonstrado no seu trabalho e discussões um interesse em beber de uma família muito alargada de referências para construir os seus próprios processos (muitas vezes estocásticos, mas que poderão levar a resultados coerentes) de criação. No posfácio de 100 Scenes, ele cita Oscar Domínguez e Max Ernst, Michael Jacobson, os lettristes, Andrei Molotiu e Henri Michaux e muitos outros exemplos, bem diversos entre si, mas todos eles concorrendo para essa ideia que elimina a separabilidade perceptiva, cognitiva e, eventualmente, semiológica, entre escrita e desenho.
Mais importantemente, aponta os seguintes aspectos: primo, que pretende irmanar-se com essas obras “tanto do domínio da literatura como da banda desenhada”; secondo, e correlato do ponto anterior, que “toca em duas áreas emergentes: a banda desenhada abstracta (…) e a escrita assémica”; tertio, que apesar de utilizar sobretudo manchas de tinta-da-China sobre papel (e já voltaremos ao aspecto material), não quer ser confundido com o teste de Rorschach, o qual é uma “ferramenta analítica. As minhas [manchas de tinta] querem servir ao estímulo da imaginação de pessoas saudáveis, por prazer”.
Este último passo é problemático na sua assunção sobre “pessoas saudáveis”, mas o que Tim Gaze talvez queira sublinhar é o facto das suas manchas não pretenderem constituir-se como um sistema restrito de interpretação estatística e clínica como o testo (fechado) de Rorschach. Mais importante ainda são os outros dois pontos que tenta demonstrar, em primeiro lugar, os domínios sociais (económicos, de distribuição, de divulgação) em que se pode inscrever, e em segundo, que papel pode ganhar em termos de “desenvolvimento e pesquisa artística” dessas mesmas áreas, as quais, graças ao próprio Gaze, se tornam potenciais áreas gémeas.
As ligações a áreas várias é assustadoramente complexa e multidisciplinar. Acompanhem-se os tremendos passos expostos por Andrei Molotiu no seu blog, e para uma história mais condensada mas tão vivaz dos encontros destas disciplinas (que podem não ser díspares), veja-se o texto que Domingos Isabelinho escreveu sobre este mesmo livro em The Hooded Utilitarian.
O caminho até à poesia é múltiplo, e não tem sempre a ver com uma mestria da linguagem em veículos expressivos. Austin Kleon é autor de Newspaper Blackout, uma antologia do seu trabalho que consiste em páginas de jornal cobertas com marcador, revelando apenas algumas palavras que constituem um novo texto, um poema. Muito similar à prática de Tom Philips, ainda que o resultado seja diferente quer em termos compositivos e visuais quer em termos de género literário. Mas onde Kleon e Philips chegam à poesia sem abandonarem a âncora (barthesiana, até) da matéria textual, Gaze quer lá chegar por outra via.
Uma das grandes (ainda) e vexantes (ainda) questões da crítica literária, que também se estende a outras disciplinas artísticas, é da sua categorização, implicando uma imediata emergência de instrumentos próprios de apreciação, análise e subsequente valorização, se não mesmo hierarquização. Ao mesmo tempo, esse caminho não pode levar a uma absolutização desses mesmos instrumentos, nem a legislações universais. Isto é, não poderemos julgar um determinado tipo ou categoria de texto - se concordarmos, logo à partida, com essa categorização - com um outro. Por hipótese, esperar de um texto da literatura infantil os mesmos elementos que um romance contemporâneo, ou esperar que um romance de ficção científica obedeça aos mesmos princípios cognitivos que funcionam na leitura de um ensaio. Tudo isto é claro, mesmo quando temos, de facto, literatura infantil que explora aspectos usualmente empregues na literatura contemporânea (experimentações no tempo diegético, explorações de uma vagueza conceptual, matérias emocionalmente profundas e jamais resolvidas, não-ditos, etc.), ou romances contemporâneos que empregam elementos do universo infanto-juvenil (personagens-tipo, estruturas simplistas mas empolgantes, soluções ex machina, emoções ou básicas em si mesmas ou com um tratamento básico, etc.), ou discursos científicos que podem misturar os dois modos (ficcional e ensaístico).
Quando se abordam textos “visuais”, essa questão torna-se ainda mais complexa, pois todos aqueles instrumentos que a narratologia nos oferece - focalização, tempo da história versus tempo da narrativa, velocidade e ordem do tempo, personagens, narrador, fábula e história, metalepses, etc. - vão pela janela fora, e é-se obrigado a ir buscar conceitos e instrumentos a outras disciplinas que pareciam ser totalmente estrangeiras, a saber, as artes visuais. A provocação do sub-título, como aponta Isabelinho, encontra-se no facto de que a relação deste livro de Gaze com a noção de romance (“novel”) é quase inexistente, mas, se ponderarmos cuidadosamente sobre a história desse género literário em particular, compreenderemos que tampouco se encaixa na perfeição naqueles livros de banda desenhada que parecem ter merecido esse nome…
Quando tivemos oportunidade para discutir a antologia Abstract Comics, falámos da noção da escrita assémica, que tinha mais a ver com a presença de signos que não constituem, na nomenclatura de Peirce, símbolos, isto é, uma norma convencional acordada em sociedade, do que algo que não possuísse significado algum. No entanto, e apesar de 100 Scenes ser constituído por imagens que não parecem ser manipuladas a partir de uma matriz comum, nem poderem instituir um princípio (simples, visível, interpretável, assinalável) de variações coordenadas, ainda assim, existem pequenas técnicas, estilismos, que são detectáveis: pequenas formações dendríticas, arrastamentos, carimbagens, possíveis manipulações via fotocopiadora (prendendo a imagem sob o scanner), uso do pincel meio-seco, golpes provavelmente circulares do pulso… O modo de reprodução e impressão (digitalizações simples de “tinta acrílica barata” sobre papel vulgar, tudo isto em offset) impede que se possa apreender as especificidades materiais dos gestos e dos instrumentos empregues. Algumas manchas aparecem com uma densidade de pretos que muito provavelmente não corresponde à mancha original, as texturas dos objectos com os quais Gaze criou as suas decalcomanias não são apreensíveis, e muito provavelmente há um tratamento e uso homogéneo de formato que nos impede de perceber quais as dimensões originais. Ainda assim, aqueles tais sinais regulares fazem-nos imaginar a possibilidade de entender um vocabulário mínimo e recorrente como aquele instituído por teóricos clássicos da pintura caligráfica chinesa, como Shi’Tao. Percebemos, portanto, o problema deste objecto, entre especificidades materiais e expressivas que se poderiam tornar significativas nelas mesmas, e uma homogeneidade gráfica final que pretende anular esses mesmos efeitos e aproximar-se dessa qualidade “neutra” (nunca o é, esta é apenas uma confortável ficção analítica) do texto impresso…
De certa forma, regressemos a um ponto anterior, esta abordagem visual está na continuidade do espectro que imaginámos ininterrupto entre os dois possíveis pólos da escrita e da imagem. O primeiro sendo uma altamente estilizada e codificada forma de apresentar signos que representam um número fechado de elementos (sons vocálicos, consonantais, melódicos, etc.) mas podendo depois, por seu lado, combinar-se num número infinito de representações, o segundo signos sem a possibilidade da dupla articulação, que representassem objectos concretos - por vezes, eles mesmos - mais ou menos próximos desses objectos “reais” que representariam (portanto, constituindo a relação de iconicidade, segundo Peirce). Mas vimos também como essa divisão apresentaria problemas, se tomarmos em conta que desenhamos letras, entre outras relações de com-plicação (á hifenização não é gralha).
Será possível encontrar ritmos internos no interior do livro? Pequenas sequências de página a página que nos permitissem imaginar uma transição como aquelas estipuladas por Scott McCloud? Ou encontrar pelo menos unidades em duplas páginas? A verdade é que é tentador encontrar essas unidades. Numa página, encontramos o que nos parece o campo negativo da imagem da página anterior; ali onde as manchas se espalhavam em torno de uma área branca, aqui inverte-se essa dominância; o enxame de círculos grandes desta página parece variar na página seguinte numa escala menor (fundos de dois copos servindo de carimbo?); uma sequência de quatro páginas parece consistir numa mancha de tinta espalhada numa superfície e depois “limpa” com os dedos; um dripping que levou a uma espécie de trama gigante parece repetir-se mas num movimento circular… Mas, depois destas uniões, que outro tipo de alianças serão possíveis entre estas hipotéticas unidades? Que coesão global? Que contrastes e continuidades? E, no final, a que se referirão afinal estas “100 cenas”? Haverá de facto um eco de continuidade com Hokusai, Hiroshige, Henri Riviére? Mas qual será então o objecto central de atenção? Os gestos? A tinta? Estaremos no domínio do que Walter Benjamin chamou de mancha absoluta, aquilo que se manifesta, isto é, um não-sinal, o qual por contraste se inscreve e recorta simbolicamente (“Pintura e desenho. Sobre a pintura, ou o sinal e a mancha”)? Mas então como compreender aquela “redução material” a que aludimos acima?
Tim Gaze é um poeta “experimental”, no sentido em que ele coloca “palavras” - estendemos a descrição desse mesmo termo para chegar a um puro gesto físico que cria uma mancha - num sistema que está para além dos padrões linguísticos convencionais ou consensuais. Recombina-as, aqui sob uma forma visual total, total no sentido de “apagar” a sua hipotética raiz “legível”. Por outro lado, trata-se de um autor que demonstra as suas preocupação pelos contextos formais de transmissibilidade, veiculação, espaço de divulgação dos textos (entendidos aqui no seu modo mais alargado possível), que podem ter lugar na página, mas que poderiam ser encontrados em telas, ecrãs, numa performance, num espaço físico público… O livro traz um aspecto curioso de “detenção” (apesar dele estar disponível em formato e-book pela Transgressor aqui e num slideshow musicado aqui). Se Gaze partiu da possibilidade da recombinação, e, para mais, através de processos permitidos pela flutuação das ferramentas digitais hodiernas (é uma hipótese, mas não cremos que esteja próximo em termos processuais da obra - apenas “visual”? - de Andrei Molotiu) - e que tornam realidade exponencial o que Raymond Queneau fez com Cent mille milliards de poèmes em papel - e que poderiam ainda ser ofertadas aos leitores/operadores graças àquele princípio teórico dos novos meios de comunicação social a que Lev Manovich chama “variabilidade”, a existência de um objecto como o livro vem fechar essa potencialidade. Não obstante, essa é uma herança de uma materialidade do texto e do próprio livro que havia sido iniciada por Mallarmé, o qual “tentou criar uma síntese entre uma visão filosófica do livro como um instrumento expansivo do espírito e a capacidade das suas formas físicas em incorporarem o pensamento em novos arranjos visuais”, segundo as palavras de Johanna Drucker em The Century of Artist’s Books. Outro autor, Jerome McGann (citado por Joseph Grigely em Textualterity), discute como “não existem obras finais ou acabadas, mas apenas textos finais ou acabados” (nosso sublinhado). 100 Scenes é um texto acabado, sem dúvida, a sua manipulação está fechada; todavia, ao mesmo tempo ele parece ser essa promissora expansão.
Nas notas anexas a este romance, como já indicado, o autor estabelece uma relação directa com várias experiências advindas de variadíssimos territórios, mas indica os romances-colagem de Max Ernst, como La femme 100 têtes e Une semaine de bonté, como a sua primeira raiz criativa, ou fonte de acção. Como escreve, “através de colagens estranhas de imagens, ele oferece pistas, que o leitor tem de transformar de certa forma numa narrativa [story]”. Todavia, o afastamento da obra de Ernst é produzida a mais do que uma medida. O primeiro aspecto, mais óbvio mas de não de somenos importância, tem a ver com a distância histórica, o seu impacto epocal, e o modo de circulação das obras. Quando Ernst criou as suas obras, a estranheza delas era total, algo que não compreenderemos hoje sem algum esforço da imaginação, que terá de fazer apagar toda a nossa experiência em encontrarmos aproveitamentos posteriores das suas técnicas, da sua figuração e das suas estruturas numa miríade de textos e propósitos, inclusive a mais prosaica e funcionalista das publicidades. O rapto de imagens retiradas dos seus espartilhados convénios vitorianos para um esquema desregulador, ou melhor, supra-regulador conforme os preceitos do Surrealismo, poderão hoje parecer-nos simples ou até inócuos, no meio de uma diluída atenção, garças à sobre-exposição aprogramática de experiências similares (ainda que similares somente na superfície). Um dos aspectos fortíssimos das imagens de Ernst, por exemplo, é que as suas colagens não são de forma alguma aleatórias ou ocasionais. As escolhas de quais imagens cruzar, e de como as cruzar, no mais ínfimo pormenor espacial e relacional, é superior a toda a extensão. Há algo de misterioso não por se ver uma cabeça de faisão sobreposta à de um homem, ou um reflexo num espelho que mostra as mesmas personagens mas seguramente retiradas de um outro contexto ou episódio, mas porque todas essas imagens estão subsumidas a um grau de realidade, de respeito aos poderes da gravidade e das escalas desse momento. E é esse o factor que as torna ainda mais fantasmáticas.
Ora, o trabalho de Gaze, abordando o abstracto, libertam-se de quaisquer associações dessa natureza. O que é um desenho? Paul Klee falaria de uma linha “a passear”. Louise Bourgeois responderia que é uma “secreção”. Em ambos os casos implica-se uma forma de ocupar o espaço com movimento, apesar de se capturar num estado estático. De acordo com Charles Hatfield, um importante nome da abordagem académica norte-americana sobre a banda desenhada, esta é uma arte de tensões, cujas forças habitam sempre o nexo entre dois pólos aparentemente contraditórios ou paradoxais. A banda desenhada é, como o próprio nome indica (em português), “desenhada”, mas esses desenhos não vivem no seu interior para encontraram a calma objectual e disciplinar. Bem pelo contrário, eles são criados para viver num permanente desequilíbrio accionado pelo acto dos leitores-espectadores.
100 Scenes, “100 Cenas“. Serão estas tentativas de nos aproximarmos do cerne desta obra, através destes nomes - mancha, sinal, desenho, banda desenhada, escrita assémica, etc. (atingíssemos nós 100 termos!) -, correctas? Ou haverá antes um outro caminho totalmente diferente, talvez físico, gestual para lá chegar? Ler, somente? Mas “ler somente” é sempre mais do que “somente ler” já, não é mesmo?
Nota: agradecimentos ao autor, pela oferta do seu livro.

4 comentários:

Anónimo disse...

Permita-me, Pedro Moura, comentar como "Anónimo", utilizando todo o respeito como se subscrevesse a identificação.
A banda desenhada (comics, fumetti, manga, tebeos,hq,etc.)é uma forma de arte, indiscutivelmente; é, sobretudo, uma forma de simbiose de artes - a escrita e a desenhada; será, porventura, a arte que pode dispensar a escrita para se ler como desenho. Isto é, no meu entender, banda desenhada (uma denominação traduzida do meio francófono), porquanto banda é trilho, tira, faixa, tal qual a alegada matriz desta arte em miniaturas dos séc.s XIII e XIV.
Para mim, tudo o que fuja ao padrão da vinheta, da tira e da sequência narrativa, não é banda desenhada - chamemos-lhe outro nome.
Sabemos que o desenho precedeu a escrita, pois também sabemos que a escrita é a variante do desenho. Há, pois, uma separação entre ilustração pura e simples, liberdade gráfica independentemente do género ou da escola artística, e o conjunto sequencial de ilustrações que pretende narrar uma história. Falo, evidentemente, da sequência "fílmica" da acção, na envolvência do espaço e do tempo da narrativa, como no cinema, com todos os seus jogos de enquadramentos, planos, cortes e saltos. Mas o cinema não é anterior à banda desenhada, porque a banda desenhada era cinema antes do cinema.
Com todo o arrazoado, quero dizer-lhe que, para mim, autor de textos e autor de desenhos (curiosamente mais forte numa das artes que na outra)muito do que tem trazido - e bem - a este seu excelente blogue, não é banda desenhada.

Pedro Moura disse...

Caro Anónimo (não é assim tão difícil deixar um nome, na verdade),
Eu não faço em nenhum lugar uma afirmação categórica de que "100 Scenes" é banda desenhada. Tento antes discutir que este livro traz toda uma série de interrogações formais, expressivas e sociais que permite a sua discussão no interior de uma disciplina a que chamamos banda desenhada. Além do mais, aos poucos o lerbd foi abordando outras cisas que não banda desenhada.
Não concordo quando escreve que a bd é "indiscutivelmente... uma forma de simbiose das artes", quer pelo "indiscutível" (uma vez que tudo é discutível, sendo a discussão uma saudável e inteligente troca de argumentos com vista a uma cada vez maior compreensão), quer pela "simbiose", que parece lançar para uma posição à la século XIX sobre a possibilidade de uma arte sintética (a ópera, depois o cinema, etc.).
É muito justo o que diz sobre a relação da banda desenhada com o desenho, a sua história, o cinema, mas a banda desenhada teve sempre vários modos de apresentação. E se a banda desenhada tem na tira a sua estrutura mínima, se quiser (veja-se o livro de Renaud Chavanne), também rapidamente surgiram exemplos que começaram a tratar a página inteira como a sua unidade (perdemos assim Edward Gorey, ou Frans Masereel, ou Andrejz Klimowski?). É desse outro território, menos comum nas discussões sobre banda desenhada, que encontramos sempre pequenos desvios, e de desvio em desvio chegamos a objectos aparentemente estranhos, como este.
A partir de quando é que podemos assinalar outro território? Ele existirá, mas o estimulante é não conseguir identificar essa fronteira exacta e colocar-nos a cabeça a rodopiar permanentemente.
Obrigado,
Pedro Moura

Anónimo disse...

Caro Pedro
A minha interpretação corresponde a uma visão mais hermética que envolve a temática da banda desenhada; porventura, mais espartilhada no conceito de tira,vinheta e prancha. Em suma, se calha, sou uma espécie de conservador, de visão pouco ou nada futurista, talvez até daqueles que, tornando a bd minimalista, a coloque à altura da literatura infantil. Não quero esse papel!
Alargando-se o conceito - incluindo, como exemplo dado, Gorey, que é um mestre do traço, em Amerika de Kafka, por exemplo - consegue-se extravasar essa designação de "banda desenhada" que, só por si, fecha o conceito à habitual criação
do desenho-narração.
Talvez o termo "indiscutivelmente" surja numa linguagem autocrática e, por isso, abusivo nessa relatividade (ainda laivo de conservadorismo referido retro) mas a "simbiose" mantenho, pois ela existe em tudo o que é arte, porque na singeleja de um desenho, mesmo sem legenda, existe no criador e no leitor, uma leitura escrita, que não está impressa nem expressa.
Ler bd é um repositório e um laboratório, permita-me este rótulo: como tal, tem justamente o direito (e, talvez, o dever) de experimentar em todos os cadinhos, em todas as pipetas, todos os géneros que se circunscrevam ao meu restrito conceito de banda desenhada, mas que evoluiram - como toda a arte evolui - para novas formas e novas fórmulas da narrativa figurativa.
Perdoe-me manter-me, por agora, anónimo; podia tê-lo feito com um nick abstruso, que iria dar ao mesmo. Mas creia-me sempre um leitor deste espaço, porquanto como anónimo me é mais propício o elogio e menos o vitupério.
Um sincero obrigado.

Pedro Moura disse...

Muito bem, está no direito de reservar o anonimato (de resto, poderia não o permitir através dos mecanismos do blog, mas isso seria coarctar a liberdade de quem o quer). A descrição que faz deste espaço é bem-vinda, e agradeço-lhe. É verdade que muitos dos gestos aqui tentados são isso mesmo: tentativas. Espero que nunca escorregue na direcção do ditado ou da obrigatoriedade.
É verdade o que diz: "simbiose" há em todas as artes, mas eu pensava estar a referir-se àquela noção wagneriana da Gesamtkunstwerk ou depois aquelas tentativas de Ricciotto Canudo e seguidores em criar "pirâmides" de integração das artes anteriores (falei disto num texto escolar intitulado "Razões de desapreço da expressão '9ª arte'"). Já nesse aspecto mais ontológico, sim, claro, toda a arte é sempre uma simbiose entre formas, modos de agir, entre criador, obra e leitor, etc.
Por isso mesmo, gostava de poder contribuir (de uma forma secundária, pois não sou autor; e pequena, que o escopo de influência deste espaço é risível) para essa mesma ideia de que a banda desenhada, sendo arte, não tem "limitações" e pode ser esticada nalguns dos seus elementos centrais (por hipótese, a relação entre texto e imagem, ou a articulação de imagens múltiplas num mesmo espaço de composição) sem deixar de ser ela mesma...
Pano para mangas! (e já experimentado noutros textos).
Obrigado,
PM