As vicissitudes da publicação original, no semanário Se7e, que foi extremamente influente na forma como divulgava a informação sobre cultura e música “popular” (num quadro de relativa pobreza a esse nível – como se não o fosse ainda, mas enfim, hoje mais mitigada), não deixam de se fazer notar na própria fabricação das narrativas presentes neste livro. Utilizamos esta última palavra com a certeza de descrevermos o objecto que agora de oferta, mas que levanta alguns problemas de inscrição histórica. (Mais)
As pranchas originais correspondem a folhas em formato A4, ao comprido, e teriam sido publicadas no Se7e em conjunto de duas ou três. Compreende-se que a sua edição em livro não poderia - ou apenas através de um esforço de mimese complicado - seguir essa mesma distribuição, mas a opção em transformá-las em pranchas singulares, isoladas em páginas, sublinha um desejo de coerência passível num objecto coeso. Nesse sentido, Sangue Violeta e outros contos recorda-nos a experiência recente de Diário rasgado, de Marco Mendes, que também se reservou o direito de repescar o seu próprio material e submetê-lo a um adicional trabalho de edição para o transformar em novos elementos de um novo livro, que não é mera colecção do que já havia sido publicado. São antes questões de re-articulações (num meio que é ele mesmo construído sobre a ideia de articulação, segundo Groensteen) ou de flutuação de um arquivo. Esta condição levanta questões muito pertinentes e importantes sobre a circulação da banda desenhada, quer enquanto texto que tem múltiplos canais de distribuição - cada qual com os seus modos de apreensão - quer enquanto obra passível de rememoração e arquivo, questão a qual se torna ainda mais premente em Portugal, que peca de forma assinalável pela relativa ausência de gestos rememorativos, arquivísticos, históricos, salvo alguns poucos gestos, que em nada apontam a uma política de sistematização (seja dos editores e investigadores, das casas de edição, das instituições, ou até mesmo dos autores, etc.). os livros El Pep, portanto, vêm juntar-se a alguns outros projectos, tímidos, da recuperação de uma certa memória da banda desenhada portuguesa, para já aquela de uma modernidade recente.
Aliás, perguntamo-nos até que ponto é que este livro estará carregado de uma certa aura de nostalgia, presente quer no texto de introdução de Paulo Monteiro quer no trabalho editorial de Pepedelrey e Pedro Brito, e alguns dos seus leitores imediatos, dos quais não nos excluímos, que se recordarão de terem lidos estas histórias na sua adolescência ou no fim da infância, num momento muito particular em que aquilo que se buscava nas páginas da banda desenhada já não era tão-somente escapismos fantasistas, genéricas e oníricas, mas uma qualquer natureza de subversão, à medida que se apercebia o que significava ser-se subversivo. Isto é, Sangue Violeta ajudou a construir, nesse mesmo processo da sua emergência, a compreender os limites e contornos dessa subversão, que exigia uma outra banda desenhada também. Relvas, quer através do humor desbragado do Espião Acácio, quer através da terna ficção científica de Rosa Delta sem saída, quer através desta iconoclastia de Violeta (mas não, parece-nos, através do seu trabalho mais recente, como Li Moonface), foi instrumental nessa descoberta e construção. Não obstante, e a existência agora deste volume, permite relançar a pertinência, a força e o significado destes trabalhos.
Na sua publicação original, entre os anos de 1983 e 1986, estes trabalhos correspondem a três séries (palavra que o autor não emprega seguro, hesitando entre “histórias” e “contos”, apesar das respectivas incompletudes, e apontando à sua qualidade titubeante, de ensaio, de gesto numa espécie de vazio institucional). Aquele texto corrido que se apresenta agora neste objecto terá um efeito bem diferente do que fora ofertado nos anos 1980. Para já, começando pela sua ordem de entrada no jornal - que o autor diz ter sido respeitada mas o editor apresenta outra versão dos factos [nota adicional: ver comentários do autor abaixo, trata-se aqui de um entendimento diferente da leitura que fizemos]- , que começara com Sabina (1983), interrompida, seguida de Sangue Violeta, a qual também se interromperia e desembocaria numa “série dentro da série”, com Tax Driver (ambas, parece-nos, de 1984). Mas o autor, no seu blog, ainda nos chama a atenção para como estas histórias entrosam com outros dos seus trabalhos, como Cevadilha Speed e Carlos Starkiller (personagem, aliás, que “rebentaria” por dentro a série para ganhar autonomia, e que poderá ser, pelo menos em parte, um avatar do próprio autor), objectos de outros actos de revisitações editorial. A ideia de arquivo revisitável adensa-se, portanto.
Não havia, originalmente, qualquer associação entre uma série e outra, em termos programáticos, e, em menor grau, diegeticamente. Mas a sua transformação num novo texto, agora num livro, obriga os leitores a lançarem redes de interpretação que as encaixem de alguma forma. Por exemplo, se Sangue Violeta surge como uma espécie de retrato de uma Lisboa nocturna, ambígua e roqueira punk, Tax Driver parece um desvio “de Verão” interno à novela da punk de subúrbio, e depois Sabina como grau de maior realismo dos mesmos elementos (a “rapariga da trança” poderá muito bem ser uma versão outra de Violeta). A relação com a recepção musical, mormente da cena em ebulição do chamado rock português, é claríssima: vejam-se as referências a bandas reais como os Grito Final, os Mata-Ratos, ou a breve participação do jornalista João Gobern (do próprio Se7e), a determinados espaços de espectáculos (não sendo explícito, é possível que se trate do mítico Rock Rendez-Vous), e outras cenas “ambientais”. Ou seja, até certo ponto, e isto não deixa de ser sintomático da banda desenhada portuguesa (se bem que, diga-se de passagem, também se verifica em muitos dos outros círculos criativos portugueses, do cinema ao teatro), parte dos locais, das personagens, dos acontecimentos, das situações retratadas nestas páginas nasce do envolvimento do círculo das vivências, amigos e experiências do autor, e dos seus próximos, criando-se um rol de “inside jokes” que seriam (são) melhor ou pior compreendidas quanto o nível de conhecimento/envolvência com esse mesmo contexto. Sobreviverá, porém, algum desse imaginário nestas páginas para os leitores dos nossos dias, para além daqueles que estão a relê-las? Pensamos que sim. Aliás, se não fossem algumas pequenas minúcias de moda, estilos musicais ou objectos, o tipo de rivalidades, de tensão destas “culturas marginais” face à sobreexposição do comercialismo, é a mesma. Até em questões de moda, poderíamos encontrar afinidades gerais, por exemplo entre os punks e os rockabillys ou góticos actuais (salve as distâncias dos papéis que as respectivas músicas têm nos nossos dias, e a sua relação com o resto do tecido social), ou entre os freaks dos anos 1970/80 com os freaks dos anos 2010.
De uma certa perspectiva, mas que seria manca por falta de análise e mais dados de aliança, não deixaria de ser curioso apontar as afinidades eventuais entre o trabalho de Relvas e os dos irmãos Hernandez e do barcelonês Max, que não só surgiram igualmente nos primeiros anos de 1980 (Relvas havia já começado o seu trabalho na segunda metade dos anos 1970), mas por terem todos claras ligações íntimas com um certo imaginário musical, punk, no próprio momento em que este ganhava contornos de renascença, com o hardcore nos Estados Unidos, e a sua chegada protelada aos países periféricos. Não só as características musicais, mas os seus entrosamentos com outras preocupações políticas mais alargadas, económicas, ecológicas, sexuais, ideológicas, etc., e que se nota precisamente em pormenores - que não chegam a tornar-se a matéria principal mas por isso mesmo mais insidiosa na obra de Relvas - nestas histórias.
Relvas era e, e é, um autor plenamente informado por tendências de banda desenhada que respondiam menos às tradições clássicas e comerciais da banda desenhada, por transporte das revistas especializadas e os álbuns, do que dos trabalhos específicos a certa imprensa especializada (da música, da cultura contemporânea, de envolvimento político, etc.). Ler estas páginas é também encontrar um retrato de um Portugal pouco mitificado e pitoresco (à Portugal, de Pedrosa), antes atento ao cruzamento de várias marginalidades, mas também de preocupações de busca pela identidade jovem e independente das expectativas burguesas das instituições, da família, das carreiras sociais mais expectáveis. Isso faz pensar em Relvas como um autor que, no quadro da banda desenhada francesa contemporânea, seria apodada por Bruno Lecigne de “novo realismo”: uma maior atenção para com pormenores reais da sociedade em que surgia, um questionamento das identidades dos protagonistas em relação ao contexto social (neste caso, os jovens fãs de expressões musicais “marginais”), o surgimento de aspectos paralelos mas significativos desse mesmo contexto (as cargas policiais, o conservadorismo social e moral português, a hipocrisia face a novas expressões), etc. No quadro da banda desenhada portuguesa, panorama drasticamente mais reduzido que o francês, é preciso recordar que as décadas de 1970-80 significavam o estertor de um quadro económico e cultural que se havia mantido durante os últimos cinquenta anos. Se um ponto de comparação pode ser encontrado nos trabalhos da Visão, essa mesma comparação seria breve, já que onde a esmagadora maioria dos trabalhos dessa revista preferia a via da fantasia ou de um humor irónico e transformador, Relvas optava antes por um realismo apenas ao de leve distorcido por voos fantasiosos.
Os desenhos de Relvas, e as suas opções compositivas, cromáticas, de integração da matéria verbal, etc., são de uma grande variedade. Se em termos gerais fará recordar uma vincada influência de autores como Tardi, Ted Benoît (na sua fase ante-linha clara), Michel Duveaux (mas ainda uma certa inconstância ou incómodo interno às personagens à Daniel Ceppi), de contornos negros e grossos decisivos para a delineação das personagens, há um ou outro desenho (um panorama sobre o Castelo de São Jorge, paisagens desérticas do sul de Portugal) que poderão indiciar práticas de desenho de campo, e há outros momentos de maior “nervosismo” no pulso. A própria figuração oscila entre um grau de maior naturalismo (sobretudo no episódio relativo a Sabina, no final deste volume) e outras abordagens mais arredondadas, mais humorísticas, e até se poderia salientar a distribuição dessas escolhas ao nível do grafismo associadas a certas personagens: Carlos Starkiller é sempre um “boneco”, ao passo que Violeta é mais moldada anatomicamente e Sabina ou os freaks do Algarve mais “realistas”. Um brevíssimo trecho da história de Sabina – colagens com tramas Mecanorma – fará lembrar abordagens provindas, quiçá, dos primeiros anos da Métal Hurlant. E a inclusão de blocos de texto colados, selvaticamente, e escritos à máquina, levantam outras tantas questões da multiplicidade dos modos, das vozes, dos registos, que tem tudo a ver com a inscrição da materialidade e diversidade de discursos intrínseca aos jornais no plano da criação de banda desenhada (isto é, mais uma outra dimensão que nos obriga a pensar nesta obra como, não diria tipificada, mas intimamente associada ao género das tiras de jornal).
A esta edição falta o terceiro episódio de Violeta, mas que o editor resolveu não incluir por não terem sido encontrados os desenhos originais do mesmo, e a sua reprodução a partir dos jornais impressos ou microfilmes significar uma perda de qualidade significativa, que diminuiria a coerência do projecto do livro. Ao editor não interessará esta abordagem historicista, arquivística ou académica, decerto, e este seu contributo é, como vimos, desde já decisivo, mas fica pelo menos o seu desejo.
Nota final: agradecimentos ao editor pela oferta do livro, as imagens utilizadas (obrigado, Pedro Brito), e algumas informações, e a José Marmeleira, por algumas discussões.
12 comentários:
"também se reservou ao direito", as gralhas são atrevidas...
saúda-se uma edição do velho Relvas.
um abraço, Pedro.
Pois é, e não deve ser a única. Corrigido, e obrigado pelo aviso!
Pedro
Acho estranho näo aplicares neste livro os teus feminismos da treta...só aplicas a receita a autoras e a homens que desenham mulheres ojbectos ?
estas tipas teem umas caras feias; parecem homens.
Näo vai uma teoriazinha sobre a masculinizacäo das mulheres nos anos 80?
aqui a autora dos" afectos e dos olhares" agradecia rsrsrsrsrs
Acho muito curioso que uma pessoa como tu, que preza a liberdade de expressão, procuras canais alternativos de discussão e trabalho, e criticas, e bem, as instituições, me imponhas o que devo ou não fazer... É muito curioso.
Dito isto, se é verdade que há uma vincada masculinização na esmagadora maioria das personagens femininas do Relvas, pelo menos nesta fase (se bem que a Li Moonface também pareça ter prognatismo), mas isso não impede que elas assumam uma sexualidade marcada, com agência, e que serve de factor de distúrbio para as acções dos personagens masculinos...
Pedro
o que sabes tu sobre o que eu prezo ou näo?
prezo o direito de contestacäo, e tu vieste pör encima de mim um epitáfio ridículo,
...aquela "dos afectos e dos olhares "ainda hoje me enjoa e enoja...além disso, prova mais o que tu näo sabes, do que o que tu sabes..
falamos disso em privado e deste-me razäo mas preferiste prevalecer a tua critíca do que dar o braco a torcer...
um crítico de bd que se preze tb tem de saber distinguir desenho copiado de fotografias a desenho à mäo livre
e tu näo sabes.
devias ter pensado nisso antes de vires enfiar as tuas teorias da connerie em cima de mim.
como escreves publicamente critíco publicamente
mais uma vez; tens que vir sempre com o teu feminismozinho para cima das autoras?
qual é o teu problema? näo te sabes defender?
e admiro a consistencia do trabalho do relvas
Olá, Teresa,
O que disse "em privado" foi que não tenho nenhum prurido em receber as tuas críticas, bem-vindas. O que contesto é a forma como me parece estares a negar, de uma forma directa, simples e unidireccional, que tipo de instrumentos posso ou não usar. Quanto à tua acusação de eu não saber distinguir desenho à mão livre e desenho sobre fotografias, penso que não só sabes estar enganada como perceberás a linha que estás a passar. Não retiro uma palavra do que escrevi anteriormente, se bem que possa compreender a tua irritação com o uso da palavra "feminismo", ou coisas quejandas (e que te leva a essas explosões, que, como digo, em si mesmas não são mal-vindas). Atrevo-me a dizer que essa tua recusa se deve a um mal-entendido do que é que "feminismo" significa. Tu entendes como uma redução, mas não é isso que eu utilizei. Uma leitura feminista em relação a este livro do Relvas em particular não iria, penso eu, revelar nada que não esteja já no interior das expectativas maiores: apesar de termos duas protagonistas (Violeta e Sabina), poderíamos argumentar que elas seguem linhas gerais tipificadas do herói, e até notar como acontecem-lhes mais coisas a elas do que elas a fazerem coisas. A primeiraimagem que mostro do "Taxi Driver" desequilibra a relação entre a nudez/objectificação sexual e a distribuição dos géneros, e isto nota-se noutras partes do livro. Ou seja, não penso que o autor seja particularmente desatento a essas problemáticas, mas sem que faça alarde disso. Aliás, a sua sensibilidade social é notória, mesmo que a faça passar porfiltros ora da fantasia ora do humor desgarrado.
Sobre as mulheres serem "feias" ou "masculinas", é uma questão de estilo, que Relvas tem às dúzias, passando entre eles... Por outro lado, não estará ele a responder a uma "tipologia" das mulheres de um punk determinado? Afinal, a Siouxsie Sioux e a Nina Hagen não eram propriamente "meninas bonitas", e nem vou falar da Wendy O. Williams...
hasta pronto.
Caro Pedro.
Comentário um pouco atrasado, é certo, mas só agora vi o texto.
Duas correções: 1, eu referi a edição como um trabalho arqueológico (no que respeita à investigação do pormenor "enterrado"), o que não implica cronologicamente correto, e 2, o título da história é Tax Diver.
Um abraço
Relvas (o Fernando)
Caro Fernando Relvas, não existem atrasos de qualquer espécie e eu é que agradeço a atenção. Em relação à primeira informação, já deixei uma nota adicional, que remete ao seu esclarecimento, ainda que lhe pedisse, caso possa, que tornasse ainda mais explícita sobre essa "arqueologia". Concordou com a ordem apresentada? Faz mossa não estar a "Violeta" completa? Revê-se neste, afinal, "novo" livro? Seja como for, acho sempre importante estas recuperações.
Quanto ao título da série, já corrigi. Não é a primeira pessoa a dizer-me isso, e fiz o erro sistematicamente noutro local. Distracção? Insistência em voltar à referência original? Lapso? As minhas desculpas.
Obrigado,
Pedro Moura
Caro Pedro
As histórias são minhas, mas a organização do livro é um trabalho independente, onde tentei meter-me o menos possível (a capa e um título foram alterados a meu pedido, e é tudo da minha parte), trabalho esse com o qual estou completamente de acordo. Conforme tentei explicar no blog, o "arqueológico" refere-se não só a material que é marginal ao correr das histórias, como concursos e reportagens de concertos (e que eu nunca me lembraria de incluir, caso fosse eu a fazer a seleção)como à recuperação de páginas em falta e da ordem original de publicação das páginas de cada história. Trabalho que não pretendeu ser académico ou exaustivo e que eu aprecio. A ordem dos títulos segue preferências da equipa que organizou o livro e também não tenho nada contra, afinal a Violeta é cabeça de cartaz.
Considero que este livro saiu muito bem e, caso lhe venham a descobrir qualquer falha (há sempre quem esteja disposto a ir a pormenores inimagináveis), isso só lhe aumenta a graça.
Relvas (Fernando)
Caro Fernando Relvas,
Em nenhum momento estava a apontar falhas algumas, quer em relação às obras originais quer a esta edição, que muito prezo (e espero tenha sucesso suficiente ora para permitir aos editores repetir gestos idênticos ou fomentem outros a fazê-lo, quer em relação ao seu trabalho - ainda há tanto por "recuperar" - quer em relação a outros autores).
Obrigado por todos os esclarecimentos,
pedro
Caro Pedro
Não era minha intenção acusar alguém de estar a apontar ou a tentar apontar falhas ao livro, nem sequer criticar os observadores de pormenor que gostam de dissecar os trabalhos dos outros (desde que o façam com rigor, claro).
Quanto a informações, sempre ao dispor.
R
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