Não é sem um prazer
muito particular que vemos um autor como Pedro Franz, que ainda poderemos
apelidar de novo artista nas suas várias acepções, a conquistar plataformas
diferenciadas para trabalhar e publicar o seu trabalho. A continuação
sustentada do seu projecto pessoal, Promessas
de amor…, sob a forma de publicações independentes, mostrará a sua faceta
de perseverante e afoito no trabalho, ao passo que Bukkake revela a possibilidade de auscultar formatos curtos e
concentrados, e Suburbia a sua
capacidade de resposta a encomendas de contornos mais comerciais, sem com isso
significar um respeito cego a convenções de género ou a facilitismos narrativos
ou estilísticos, conseguindo bem pelo contrário “arrastar” a matéria que lhe é
apresentada como desafio para o seu próprio território de expressão. Quaisquer
comparações com outros contextos, mormente o português, serão falhas, mas não
nos deixa de surpreender que haja espaço para, no Brasil, certos agentes editoriais
estarem atentos às tendências contemporâneas da HQ local, e procurarem
trabalhar com novos autores, mesmo com linguagens arriscadas para um público
mais normalizado, ao passo que entre nós há ainda uma divisão de águas muito
clara, talvez demasiado clara e por isso empobrecedora, dos círculos mais
convencionais e aqueles mais afectos a novas experiências.
Promessas de amor a desconhecidos enquanto
espero o fim do mundo. Vol. 3. Potlatch
(auto-edição). Comecemos
pelo título que temos acompanhado do
autor, da sua lavra pessoal e singular, e que encontra aqui o seu término. Desde
o seu começo que nos apercebemos que Pedro Franz pretendia deixar ver todos os
seus processos de aprendizagem na construção desta sua narrativa. Agora que Promessas terminou, perguntamo-nos até
que ponto será possível imaginar uma edição de conjunto, quiçá segundo os
trâmites de um projecto como Building
Stories, de Chris Ware, que permitisse agregar num objecto multímodo as
especificidades formais de todos os passos do projecto. É que Franz foi
sondando estratégias diferenciadas a todos os níveis: figurativo e narrativo,
de composição de página, de escalas cromáticas, de formato e material de
trabalho, entre a sequência mais linear à aleatoriedadede um conjunto de imagens, já para não falar dos próprios materiais de
trabalho, variadíssimos, que levam a que esta obra tenha uma camada visual e
matérica acentuada, e não tanto de “duas dimensões”. Poder-se-ia argumentar
que, em termos narrativos, aquilo que o início da série construíra não encontra
aqui um desenlace claro: onde estão o padre Siqueira, porque não tentar
compreender o fado dos Jolly Roger, porque é que a multiplicação de vozes
flutuou a vários níveis e não encontra uma circularidade mais concisa?, etc. No
entanto, também o progresso da série dava a entender que se pretenderia atingir
uma amplitude que pouco ou nada deveria a organizações aristotélicas, e que
acentuariam, bem pelo contrário, a perdição e angústia e incerteza do cacho de
personagens que vive nestas páginas. Poderíamos tentar dizer que Potlatch não é tanto a conclusão dos eventos da série – o tremendo tumulto popular contra a polícia, pelos seus actos de violência, e a resposta desta através de vários outros actos de violência e inclusive a tentativa de controlo da informação – mas antes os sucessivos dénouement desses mesmos eventos. Há menos um clímax singular (ainda que detectável) do que uma sucessão deles que não se anulam mutuamente, mas pelo menos distribuem a tensão. A palavra empregue para esta compilação dos últimos episódios é, como se sabe, o termo da cultura nativa norte-americana (Chinook, especifica a Wikipédia) para um ritual de oferta de presentes, numa cadência crescente que foi explorada por muitos antropólogos e académicos, mas que poderíamos descrever, talvez simplisticamente, como uma espécie de abnegação e anulação do valor material de si-mesmo, implicando mesmo a ruína económica, mas que angariaria, pelo contrário, um prestígio moral, por assim dizer. Daí que tenhamos aqui no primeiro episódio o protagonista, Lucas, a tentar salvar um polícia (mas há indícios igualmente de que tudo não passa da alucinação quimicamente induzida de Lucas), ou a partilha súbita e exponencial de um vídeo nas redes sociais (ainda que de forma esquemática e instrumental, Franz coloca no centro das relações entre as personagens as potencialidades que a cultura da Web 2.0 permite à vida cultural e social). Claro que poderemos entender que o potlatch não é, de todo, um acto desinteressado, e portanto voltaríamos a olhar todos estes eventos como estruturantes de uma possível redenção dos mal-entendidos cometidos. Mais, o fecho absoluto da série faz-nos afastar das ruas e dos eventos colectivos dos tumultos e a resposta, violenta, dramática, do povo em relação à opressão policial, para um nível literalmente superior, no terraço de um prédio, onde nos ficamos pela esfera privada, íntima, de Lucas e uma nova amante. Será que a “promessa de amor” significa então a única fuga possível dos problemas “lá em baixo”? Que apenas um ensimesmamento nas emoções é solução para as crises sociais?
O trabalho visual de
Franz, neste volume, é soberbo nas cores, tornado possível pelo novo patamar
financeiro desta publicação. O autor desenha ainda a tinta-da-China as suas
figuras, mas depois emprega cores, nada naturalistas, berrantes, exóticas,
expressionistas (de Franz Marc a Brendan McCarthy, a família de referências é
alargada), criadas por traços grosseiros, rápidos, muito gestualistas, do que
parece ser lápis de cera ou pastéis. Se em casos pontuais, e por razões
imediatamente relacionadas com os acontecimentos diegéticos (um sonho
“policiado”, o conteúdo de um vídeo, a partilha sequenciada do mesmo – se bem
que estas últimas páginas nos recordem uma forma mais normalizada do que Coché
fizeram em Hic Sunt Leones), o autor opta por uma composição regrada das
vinhetas, na esmagadora maioria destas páginas há antes uma libertação da
esquadria para deixar as personagens a flutuarem num espaço livre e de
temporalidades complexas (desta feita, isto permitiria criar afinidades com o
campo alargado da banda desenhada, recordando Charlotte Salomon). O episódio
mais significativo, nesse aspecto, é o décimo (segundo deste volume), “Quando
as luzes se apagam”, em que Lucas se despe e depois mergulha no mar, numa
sequência silenciosa e quase de dança, que nos recordará algumas cenas de Anders Nielsen.
Bukkake
(Cachalote).
Pertencendo à colecção 1000, da qual déramos conta quando do seu primeiro volume antológico, esta
prestação de Franz procura uma fórmula mais simples e linear do que Promessas (e mesmo Suburbia, como veremos). Apesar do projecto em si se abrir ou
permitir vários graus de experimentação, como já havíamos comentado, as opções
têm-se pautado por uma certa contenção a todos os níveis. Bukkake não é excepção. Fôssemos adeptos de moralismos, esta obra
poderia surgir como “controversa”: as personagens principais são crianças impúberes
envolvidas num ritual sexual com alguns contornos satânicos; esse ritual
conjura um demónio monstruoso (mas mais risível que assustador); a arma de
defesa é uma imponente ejaculação (daí o título, que remete a um particular
ramo do cinema pornográfico de origem japonesa). Mas nenhum desses aspectos é chocante, já que o tratamento do autor quase que “naturaliza” estes eventos através de uma composição de páginas relativamente convencional, de uso retórico, com todas as figuras e cenários nitidamente desenhados a negro e colocando todos os eventos no centro da focalização, evitando assim espaços para ambivalências. O facto de o demónio emergir dos fluidos vaginais da menina, e o “antídoto” partir da semente do menino, não nos parece augurar o melhor princípio na igualdade de oportunidades mas também se poderia ler Bukkake como uma versão irónica do cliché “o amor vence tudo”…
Enquanto exercício,
Pedro Franz optou por algum grau de descontracção e segurança na sua
participação no projecto, levando a pensar que é em formatos mais dilatados que
o autor explorará melhor as suas forças particulares.
Suburbia
(Globo Marcas/Retina78). Este outro título é uma intrigante adaptação, ou melhor
dizendo, uma transmediação, de uma recente – e que terá desenvolvimentos futuros
- série de televisão escrita por Luiz Fernando Carvalho e Paulo Lins (conhecido
sobretudo entre nós, portugueses, pelo romance Cidade de Deus, adaptado ao cinema com grande sucesso comercial).
Ela foca sobretudo a figura de Conceição, uma jovem negra oriunda de uma aldeia
miserável de Minas Gerais e que acaba por tentar a sorte num dos subúrbios do
Rio de Janeiro, mergulhando numa aprendizagem a vários níveis. Mesclando a
beatice popular, a emotividade agradecida de uma família de acolhimento, o confronto
ingénuo com a sexualidade desabrida dos olhares dos outros, a descoberta da
dança e da música como uma espécie de libertação catártica (e, para mais, sendo
a trilha principal o bombástico funk favela), Conceição desabrochará nessa nova
realidade, sem nunca perder um certo ar de inocência. Perguntamo-nos até que
ponto uma leitura comparada com Gabriela,
Cravo e Canela não revelaria estruturas ou princípios idênticos trabalhados
em momentos diferentes, quer relativamente ao contexto histórico das diegeses
(a década de 1920 por contraste à de 1990) quer em relação ao momento da
escrita (Amado como que escrevendo uma resposta aos regimes do seu país na
década de 1950, Suburbia como
resposta a um Brasil contemporâneo onde paradoxalmente a exploração comercial
das expressões das populações mais desfavorecidas é capitalizada e rende). A
menção à blaxploitation, mencionada
repetidamente por comentadores da série, é por demais óbvia, mesmo observando
somente os materiais videográficospromocionais. Não podemos falar da série em si, uma vez que a não vimos, nem teríamos os instrumentos mais correctos para tecer um discurso crítico sobre ela, mas não deixa de fazer sentido trazer à colação o conceito, nem sempre muito claro, da “Globoalização”, que remete a uma certa monopolização de conteúdos informativos do Brasil, a uma modelação da imagem do país, inclusive para o exterior, a transformação de certas produções de cultura popular como “representativas” de toda a nação e da sua diversidade cultural, entre outros assuntos. Enfim, a pergunta de que até que ponto é que estas produções são de facto retrato real ou plataforma de expressão das suas pessoas, e não uma política de representação necessariamente (“fotogenicamente”) metamorfoseada. Afinal de contas, as telenovelas e séries não mostram as misérias de frente, ou revelam-no através de um qualquer filtro de felicidade dos “simples” (e Suburbia não é excepção), e todo o mundo parece ser filho do sol e da malhação: corpos perfeitos, soluções individuais, pequenas conquistas. Algum cinema pareceria ser excepção, mas estamos em crer que os modelos neoliberais do mercado livre e a eleição de Tarantino enquanto paradigma (apenas a nível superficial, não de confronto com os fantasmas) vieram afastar as produções contemporâneas – não nos esqueçamos que a Globo é também uma distribuidora de cinema – de marcos do cinema brasileiro “politicamente comprometido” como o Cinema Novo ou Pixote. Mas, repitamos: tudo isto carece de uma análise e conhecimentos mais sustentados.
Apesar do livro ter um grande formato e 64 páginas, é inevitável que esta transmediação de uma série televisiva procure uma maior concentração nas suas acções, elegendo de facto Conceição como figura central, não permitindo grandes desvios de focalização. Além do mais, o autor opta mesmo por soluções de condensação espácio-temporais que tornam as “fases” da vida da protagonista momentos rápidos e organizados causalmente: a vida em Minas Gerais, a fuga para o Rio, a imediata confusão de identidades, um primeiro emprego providencial como doméstica, uma nova fuga por razões sórdidas, o acolhimento numa família suburbana, a descoberta de um mundo maior, inclusive de amigos, música, trabalho, e o amor, a construção paulatina da felicidade possível, e uma oportuna vitória que coroa o seu percurso (de certa forma, Suburbia é uma versão moderna e localizada de Cinderella). Esta condensação é particularmente significativa nos momentos em que o namorado de Conceição, Cleiton, a ensina a ler, escrever e a fazer conta: num breve conjunto de vinhetas, vemos como que um processo mágico de condensação temporal, e não tantos os dificultosos obstáculos que esse processo levaria na “realidade”. São esses alguns dos aspectos que nos levam a considerar este Suburbia como “intrigante”, uma vez que parte de um modelo convencional e até talvez com contornos hegemónicos, para depois criar uma diferenciação de expressão marcadamente autoral.
Isto tem as suas naturais repercussões na dimensão visual. Franz encontra um equilíbrio muito curioso neste livro entre pranchas de construção regular e aquelas mais livres, e uma leitura atenta de cada uma dessas prestações demonstraria como o autor as incute com a tensão emocional que aí é retratada: uma alegria desmedida, um medo terrível, o abandono na dança do funk, ou então a economia regrada e linear da introdução. Quanto ao trabalho imagético, encontra-se a meio entre as liberdades expressivas de Potlatch e o autodomínio de Bukkake, como não poderia deixar de ser, e o mesmo pode ser dito de todos os outros aspectos, como o emprego de texto, aqui em formas de balões convencionais, ali recorrendo a uma voz narradora externa caligráfica, ali multiplicando a confusão babélica das vozes nas festas (o “pancadão”). As cores são igualmente exuberantes, se bem que haja um maior controlo (palavras que não implicam qualquer negatividade no “gestualismo” de Potlatch) na sua aplicação, gerindo alguns troços deixados “por pintar”, alguns brancos, e o uso de aguarela “tranquilizar” a sua materialidade.
Um dos últimos aspectos
que gostaríamos de abordar, em termos gerais aplicáveis a todos os livros é a
seguinte: em termos da figuração mais repetida de Franz, para onde se dirige o
olhar das personagens? Sobretudo em Suburbia
e na sua saga, Franz opta por desenhar os olhos com a circunferência da íris
mas sem pupila, o que lhes oferta um ar de cegueira ou espectralidade, por
vezes desconcertante. Essa estratégia parece-nos perfeitamente viável em Potlatch, na qual as fronteiras da
fantasia e da realidade, da vigília e da alucinação, das percepções sociais
mesmo, não deixam de ser matéria da narrativa, mas em Suburbia traz um grau de deslocação estranho, que imbui toda a
história (aliada à forma condensada dos acontecimentos) de uma fantasmagoria,
não deixando de pôr em causa o seu aparente projecto de reivindicação social. Por
outro lado, esta seria uma dimensão analisável sobre a pesquisa do autor na ausência
de imediaticidade da banda desenhada enquanto meio, ou na exploração da sua
opacidade, ou no delir da ilusão realista, mas essa questão tem de ser
suspensa.
Nota final:
agradecimentos ao autor e às editoras respectivas, pela oferta das publicações.
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