24 de setembro de 2013

Epílogo. Topedro (auto-edição)

Tendo em consideração o jogo que o autor comete com cada um dos seus títulos, os pequenos “embustes”, por assim dizer, que se provocam sobre os seus significados mais normalizados, estamos em crer que em nada este novo gesto possa ser visto como encerrando o projecto geral. A longo prazo entender-se-á se deve ser visto somente como reflectindo um ciclo, um “arco”, ou um qualquer outro conjunto, ou se, bem pelo contrário, o “epílogo” apenas diz respeito àquilo que se encerra entre as suas capas.
Como já o repetimos várias vezes, a existência de um projecto autobiográfico não nos permite, de forma alguma, considerarmos ter alguma intimidade com a pessoa real. Mesmo que aceitemos a ideia de que os autores, ao transformarem a matéria das suas experiências, com níveis diversos de efabulação, em textos a ler e ver, logo, num certo intuito comemorativo dessas mesmas experiências, sejam elas impactantes, diferentes, banais, quotidianas, nada dessas “confissões” nos dão acesso à pessoa verdadeira, ao cidadão ou cidadã empíricos, à verdade judicial da coisa. Não obstante, como acontece naqueles autores cujo projecto alargado permite que surja uma “vida contada”, uma “autobiografia” (e suas variações, da auto-ficção à grafia fria), como Baudoin e Topedro, Davodeau ou Pekar, a leitura sucessiva de cada livro permite ainda assim uma navegação de trás para diante, a construção de uma fiada que vai criando uma imagem mais ou menos coesa. Por mais plural que sejam esses gestos individuais, eles coalescem num corpo, eles obrigam a essa intertextualidade “interna”. Um novo elemento que se vem juntar aos anteriores, reescrevendo-os, reposicionando-os e, assim sendo, escrevendo-se a si mesmos para além dos traços que os compõem de modo imediato (porque absorvem os anteriores), posicionando-se a si mesmos (em relação a um conjunto anterior).
Os livros de Topedro parecem ser drasticamente diferentes entre si, em termos de tom e humor. Existem características comuns, claro está, para além daquelas superficiais parecenças formais, advinda do gesto físico da criação. Referimo-nos a um certo estilo de narração exteriorizado das acções, que não procuram uma recriação dramática do tempo pretérito, mas apresentam-no como tal, e onde as imagens, isoladas, fora de uma sequência mais dinamizada e clássica, as tornam ainda mais reificadas, o que não significa que sejam fluidas e passíveis de serem reconduzidas nas suas relações. Elisabeth El Refaie, no seu recente livro sobre autobiografia em banda desenhada, sublinha o modo como este meio permite, ou se permite, de uma forma avivada, a explorar a “narrativa de uma vida” através de “impressões associativas e fragmentos de narrativa”. É necessário ler com atenção cada autor para compreender os vários graus de impressionismo, de vagas de associações mais ou menos livres ou metafóricas, o grau de fragmentação do possível dinamismo e encadeamento. Topedro parece-nos ser um autor que cultiva sobremaneira essa forma rítmica e fragmentada. Criando um auto-retrato complexo e que se nos escapa, por mais próximos que pensemos estar dele.
Para aproveitar uma citação da artista e académica Gen Doy, de Picturing the Self, feita por El Refaie, “até o auto-retrato, apesar de parecer próximo ao sujeito criador, não consegue evitar essa externalização e objectificação do eu [self], no qual o eu se confronta a si mesmo como um outro no próprio processo de fabricação”. E essa externalização, em Topedro, torna-se claríssima neste Epílogo, com a inclusão de imagens do narrador-protagonista na sua própria acção de desenhar: vemos blocos de desenho e de escrita abertos e fechados, sobre os joelhos, a secretária de trabalho com os bonecos anatómicos, as mãos trabalhando. Mas temos também muitas cenas cuja focalização parte da perspectiva do eu: o reflexo no espelho da casa de banho, as mãos, os joelhos, as pernas, vistas dos próprios olhos. O que se contrapõe com as perspectivas “impossíveis”, externas ao corpo, algumas delas possíveis de serem vistas por uma outra personagem – conduzindo, enrolado na cama, jogando snooker – e outras apenas pertencentes a “deus” – as perspectivas picadas. E a “faixa textual”, numa primeira parte, parece referir-se a um outro que não o protagonista, mas muitas pistas levam-nos a considerar que esse é um exercício de desdobramento, em que esse outro não é senão o eu que conta, ou um seu avatar.
Há uma outra “metade”, porém, neste livro: o da “cura” da toxicodependência. O isolamento numa pensão, um chuto, uma cura, metáforas visuais que poderão querer dar conta de um processo doloroso de descida de uma sujeição: vogamos por essas imagens em busca de uma saída, que num primeiro passo se lança ao infinito do mundo, aos conflitos mais externos possíveis, e depois um regresso seco, como uma queda em baque, na mais baixa materialidade do corpo, na máquina cheia de órgãos, no saco de vento. Porém, tal como a imagem que mostra o chuto torna claro, não há, em nenhum momento deste livro, a presença da carne. Não é sangue o que vemos, é tinta, uma mancha de tinta disforme, que apenas promete vir a ganhar uma forma significativa no acto da sua leitura.
Que relação tem este episódio desta “personagem” em relação àqueles anteriores, desde uma memória de uma semana na praia àquelas relacionadas com a família? Por que razão eleger este momento, estes intervalos, numa fiada ininterrupta de uma vida? Uma possível imagem é-nos dada por um outro trabalho do autor.

O Seixo é uma espécie de filme animado mínimo, onde se encadeiam imagens retiradas dos blocos de aguarelas do autor, repetidas, re-enquadradas, movendo-se em relação ao emolduramento geral, substituindo-se lentamente, e integradas num ambiente sonoro natural, com o som das ondas calmas e rítmicas da praia e a voz do narrador, gravada de forma rudimentar, lendo também lentamente um texto que enquadra tudo. Nessa pequena narrativa, o protagonista colhe um seixo e diz que poderia ter escolhido outros, tão ou mais interessantes. O mesmo poderia ser dito dos momentos da “vida” que têm sido eleitos no projecto autobiográfico do autor. Porquê estes momentos e não outros? Mas esse tipo de hierarquização não tem lugar nas interrogações críticas ao texto, pois, de uma forma simples, podemos dizer que os momentos que não foram colhidos não existem, isto é, os momentos que lemos e vemos, os que foram colhidos, ganharam substância, importância, interesse e até mesmo existência pelo facto de terem sido colhidos. É a sua constituição enquanto texto, enquanto tinta no papel, que lhes dão prova de existência. Está fora do nosso alcance a consideração de uma vida empírica, contínua, contra a qual se fariam juízos de valor em relação aos textos, não apenas eleitos, como construídos.
E sobre esses textos jamais se encontrarão prólogos ou epílogos definitivos.
Nota: agradecimentos ao autor, como sempre, pelo envio do seu livro (e as imagens).

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