Logo à partida, seria difícil gerir demasiadas personagens, desenvolver personalidades e interacções emotivas interessantes, mas Hickman consegue fazê-lo (Nick Spenser colabora a partir do no. 12), ora concentrando números numas ora noutras personagens, permitindo que Thor tenha uma conversa com Hyperion sobre ter filhos, ou que um grupo de personagens mais jovens descontraia num casino onde convivem mesmo com inimigos. Além do mais, ele vai introduzindo conceitos imensos a par e passo (o Jardim e, depois a integração dos conceitos do Novo Universo, agora o regresso dos Construtores, etc.), sublinhando a escala cada vez mais cósmica em que quer colocar as suas personagens. Por vezes as coisas são céleres demais, sem grande tempo para desenvolver, como o surgimento do Alto Evolucionário ou a utilização desse tropo que nos ensinaram chamar-se “Worf effect” – isto é, fazer com que uma nova personagem derrote, as mais das vezes fisicamente, uma personagem que já sabemos ser poderosa para mostrar que ela o é ainda mais – em relação a Ex Nihilo, e depois uma versão feminina deste, etc. Mas como esperar outra coisa de séries que têm de mostrar grandes avanços e nódulos de acção a cada 20 páginas mensais que apresentam ao público? Em New Avengers, verificam-se antes os bastidores dos “poderes: reunindo apenas os Illuminati (pois é, mas o que querem?), isto é, um grupo restrito de super-heróis que toma decisões maiores sobre os fados de toda a Terra, observamo-los “obrigados” a gerirem uma ameaça terrível, e eliminam uma Terra alternativa (e pelo caminho, sem grandes explicações, destroem as Gemas, que eram supostamente indestrutíveis: Whorf effect reprise). Aqui há uma menor velocidade e tentativa de criar sementes de ideias a desenvolver a lume brando, mas muitas vezes há abandonos a momentos de acção totalmente despropositados e ridículos, e entradas a outras linhas narrativas (a guerra em Wakanda) que só se desenvolveram noutros títulos.
Seja como for, essa maior concentração em menos personagens permite explorar dinâmicas mais conseguidas, que é outras das forças dos diálogos de Hickman, a nosso ver (e de design, uma dimensão importante neste autor).
Em termos visuais, ambas as séries têm sido desenhadas por toda uma troupe variada de artistas, e arrastam-se por aquela linha média de autores competentes e que queremos ver neste tipo de abordagens, típico na economia de produção da Marvel, mas por vezes menos bons, e que não são coerente no interior sequer de uma mesma página. No primeiro grupo temos Dustin Weaver, Jerome Opeña e Steve Epting (no seu melhor desde o run de Brubaker em Captain America), no segundo artistas que, na esmagadora maioria das vezes, vivem de um certo nome mas espalham-se em detalhes, como Stefano Caselli, Mike Deodato e mesmo Adam Kubert.
Entretanto, Rick Remender e John Cassaday, tentando recuperar os problemas criados de um evento anterior, criam em Uncanny Avengers uma possível mistura das dinâmicas dos Vingadores e dos X-Men numa equipa mista, com plots um pouco já experimentados várias vezes: a ascensão do neofascismo nazi do Caveira Vermelha nos E.U.A. como desculpa de slugfests em catadupa, mas sem nunca tocar nos verdadeiros nervos da sociedade contemporânea norte-americana. Mais tarde, já com outros artistas, prosseguem outros arcos e histórias, cada qual com as suas escaladas de poder e intrigas, chegando mesmo à escala cósmica, mas que vão perdendo ímpeto, e nunca chegam ao nível de organização de Hickman. Os regressos de mortos e outras soluções fáceis são empregues repetidamente. Ainda assim, não sai do primeiro arco com Cassaday uma narrativa despicienda, se descontarmos o surgimento intempestivo e um grupo de vilões algo patéticos, que conta com “A rapariga da face de cabra” e “Mzee”, que parece uma tartaruga. Não é a brincar.
Bem mais “distraídas”, isto é, sem grandes preocupações mas como quem segue vegetativamente uma série qualquer que já está a dar na televisão, foram as leituras dos títulos Indestructible Hulk e Thunderbolts. A primeira série tem sido assinada por Mark Waid, e começou com os desenhos de Leinil Yu, com uma premissa interessante: Bruce Banner é contratado pela S.H.I.E.L.D., que lhe disponibiliza fundos e uma equipa para ele explorar o mundo da ciência de forma continuada e contribuindo para o avanço da civilização humana, e de quando em vez é empregue como arma de destruição maciça na sua transformação em Hulk. Cada número apresenta um caso, tal como uma série de televisão de episódios sucessivos mas independentes, o que é excelente num formato destes. Infelizmente, é veloz a desistência dessa direcção, para colocar a personagem mais uma vez em encontros fortuitos com todas as outras personagens do universo, com um arco horrendo passado no passado com Thor, e desenhado por um desinspirado Walt Simonson. A partir daí, é uma descida ao absurdo, e parámos (ou chegou-se à indigestão, para continuar com a analogia alimentar).
Thunderbolts teve um arco de doze números escritos por Daniel Way e desenhados por Steve Dillon. Esta é uma série, como sempre o foi, que mistura os géneros de guerra com o de super-heróis, cheios de intervenções militaristas brutais, segredos de estado e referências q.b. ao estado dos acontecimentos actuais político-militares (já deixaremos em aberto se crítica e inteligentemente ou se simplesmente cúmplices a uma visão apertada do mundo). Se bem que Dillon fosse excelente em, ou para, Preacher e alguns arcos em Hellblazer, e alguns outros trabalhos esparsos, as suas forças estavam em representar ambientes e personagens aparentemente vulgares mas que subitamente explodiam em episódios de extrema violência. A sua figuração algo perra e até mesmo modular era sempre servida por cores relativamente primárias, como se estivéssemos perante uma versão da indústria norte-americana da linha clara, e funcionava. No entanto, em histórias em que a acção é permanente e a violência expectável – Way interessou-se por criar toda uma cadeia de acções, e mesmo as relações e personalidades das personagens estavam totalmente subsumidas a isso, sem grandes desenvolvimentos - as limitações de Dillon são contínuas, e o tipo de modelagem de cores e sombras tentadas (por Guru eFX) não abonavam a seu favor. Quando foi substituído por Phil Noto, entrámos naquela família de artistas absolutamente “normalizados”, de que nada há a dizer. Aliás, há a dizer que esta é um dos problemas recorrentes neste tipo de indústria, que é seguir um título, mini-série ou o que for, onde há uma aliança interessante entre escritor e artista(s), mas a meio do percurso o artista é mudado – a indústria prefere um artista regular e seguro nos prazos de entrega mas que seja menor do que um “grande” que faz atrasar o projecto (veja-se Age of Ultron, precisamente).
Iron Man, nas mãos de Kieron Gillen e Greg Land, também vai percorrendo caminhos interessantes. Apesar das contradições – tentar compreender como é que o Homem de Ferro anda pelo espaço na senda de uma armadura que mata Celestiais no seu título, a acompanhar uma trupe de guerreiros em Guardians, e a tratar de assuntos na Terra em Avengers e New Avengers, pode levar a dores de cabeça na lógica - e clichés – a típica conversa do potencial humano no Universo, a moralidade aplicada a tudo, os sistemáticos retcons e reformulações de conceitos do universo Marvel – temos aqui uma narrativa relativamente concisa e legível. A arte de Greg Land é por vezes paradoxal. Não sendo terrível como Liefeld ou a escola da Image anos 1990, percebe-se que é alguém que não só está mais apto para trabalhos de ilustração isolada como a forma de desenhar a partir de referências fotográficas em poses heróicas é por demais visível e não o torna o mais dinâmico e fluido dos artistas. Estando melhor do que noutros trabalhos anteriores, e com um trabalho de cor típico da Marvel contemporânea, disfarça os problemas, mas apenas até um ponto sofrível. Gillen, que havia criado um arco curioso com Loki e segue outros interesses com Über (de que falaremos noutro post), tenta jogar aqui com muitas das referências, personagens e conceitos da Marvel, também a um nível cósmico, que poderá ou não vir a ter um papel no que está a ser planeado por Hickman et al. no tal “evento”, mas nada de particularmente novo. Apenas uma oportunidade de brincar com vários géneros e plots típicos, para criar uma narrativa plena de acção e twists.
Finalmente, tentámos seguir aqueles títulos que têm sido desenhados por artistas portugueses, a saber, Captain Marvel, com Filipe Andrade, e um número dos Fantastic Four por André Lima Araújo. Se o primeiro tem tornado os seus desenhos de uma forma cada vez mais plástica e estilizada e conquista um espaço particular na Marvel, onde insufla o “house style” com uma certa leveza europeia, o segundo criou uma pequena variação à la Otomo Katsuhiro para um episódio integrado em Age of Ultron. Infelizmente, em nenhum dos casos estão a servir linhas que pudessem ter um interesse para além da sua estreita província. Anuncia-se outro título no futuro com Jorge Coelho, Venom, mas temos o mesmo problema. É muito mais compensador encontrar estes nomes a trabalhar em narrativas mais desenvoltas, como no caso de Coelho em Polarity, de que falaremos.
Haveria muito mais a dizer, e se houvesse oportunidade, de se ser mais detalhado sobre o que nos parece funcionar melhor ou pior em termos narrativos, figurativos, composicionais, nestes títulos todos. Mas o prazer inerente à sua leitura quase automática e substituível tem um timbre muito próprio, de que não abdicaremos.
Nota final: agradecimentos a S.S., pelas nerd sessions, a F.L. e M.R., pelo empréstimo de algumas séries. Imagens colhidas na internet e ficheiros digitais.
1 comentário:
Mais um apanhado interessante dos novos titulos da Marvel. Não acompanho muitos deles mas fica desde já a referência futura do trabalho de Gillen e Land no Iron Man. É um personagem que não acompanho com regularidade, mas fiquei curioso. Obrigado!
Qt aos Avengers de Hickman, partilho da sua opinião.
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