Os dois álbuns de que falaremos pertencem a uma
outra série, de que se prevêem para já quatro títulos (sendo estes os dois
primeiros, mas existindo já material de Loisel acessível na internet, promissor), nas quais
autores centrais ou importantes da tradição “franco-belga” da banda desenhada
têm carta-branca para criarem histórias com as personagens mais famosas da
Disney. Este gesto tem de ser entendido de modo bem diverso daquele que faz parte
da prática comercial da Disney nas suas produções internacionais, nomeadamente
no Brasil, Itália e Dinamarca, na qual se procura instituir um “estilo da casa”
que é seguido pelos autores contratados. O que se procura nesta série, tal como
no caso de Le Spirou de…, Une aventure de Chlorophylle par..., Lucky Luke vu par… ou até mesmo a
colecção Graphic MSP, é que os autores convidados tragam a “sua” assinatura (o
estilo do desenho, as abordagens narrativas, as estratégias mais típicas, etc.)
para o campo das personagens, criando como que uma inflexão autoral no
território mainstream. (Mais)
Naturalmente que esta descrição
tem inúmeras limitações. Afinal de contas, apesar da imposição de determinadas
regras na construção de material para uma companhia como a Disney, isso não
significa que não tivessem emergido “personalidades autorais” no seu seio. Não são
apenas os nomes de Gotfredson, Bill Walsh e de Barks, enquanto demiurgos, que
se destacam, mas o de Tony Strobl, Kay Wright, Don Rosa, Ivan Saidenberg e Renato
Canini (de quem falámos a propósito do “seu” Zé Carioca), Daan Jippes, Marco Rota, Romano Scarpa, Bottaro, Massimo
de Vita, Tito Faraci, entre tantos outros, cada qual identificável pelo estilo
visual ou pela matéria narrativa que instilaram nas suas “prestações”. Porém,
haverá decerto uma diferença (de grau?) na medida em que todos estes autores
surgem enquanto “funcionários” daquela máquina – recordemo-nos de que a “assinatura”
foi durante muitos anos metafórica, já que os nomes não eram impressões nas
publicações. No caso da MSP, por exemplo, isso ainda ocorre, tal como a
diluição das personalidades individuais dos artistas e escritores é mais
marcada do que no caso da Disney (o que quer dizer alguma coisa).
Adicionalmente, recordemo-nos de
que é a Glénat quem tem, no espaço francófono, os direitos de tradução e edição
das edições “arquivo” da Disney, publicando as colecções recentes de Floyd
Gotfredson, assim como as dos seus sempre celebrados Carl Barks e Don Rosa,
assim como outro material (italiano ou específico a um tema e/ou personagem). O
lançamento destes livros deve ser entendido então num quadro de experiências de
crossover, claro, mas igualmente de possibilidade
legal e de estímulo comercial (mútuo). Afinal, nada têm estes usos a ver com a
prática underground dos Air Pirates, que lhes levou a um caso
judicial esmagador e destrutivo, nos anos 1970. Estes livros funcionam como homenagem, não enquanto acção de desconstrução ou de crítica. E autorizada. É isso que em parte explicará a relativa ausência
de força e eficácia destes gestos, sendo num caso um mero exercício superficial
de pastiche e no outro uma inclinação à nostalgia.
Mickey’s Craziest Adventures.
Lewis Trondheim e Keramidas. Este
álbum simula a recuperação de uma aventura perdida de Mickey e Donald. Os
autores pretendem fazer crer que encontraram uma colecção de revistas mensais da
Disney da década de 1960 intitulada Mickey’s
Quest, na qual teria sido publicada uma história, à razão de uma prancha
por número, cujo título o álbum repesca. Este volume, portanto, não seria senão
a re-apresentação em fac-simile das páginas que conseguiram recuperar. Uma vez
que a colecção não estava completa, das 82 pranchas da história completa,
apenas tiveram acesso a 44, “encaixando-se” então na fórmula franco-belga.
Este exercício é curioso, e tem um
espaço privilegiado em algumas das tais práticas “arquivísticas” da banda
desenhada a que aventámos a propósito de L’homme
qui tua Lucky Luke. Há uma criação de um filtro fictício que pretende entrar
em contacto directo com a materialidade real da história da personagem. Em termos
visuais isso é corroborado por algumas estratégias. A cor das pranchas é feita
de tal modo que torna muito visível os “Benday dots” da quadricromia da época,
e a superfície das pranchas apresenta toda uma série de problemas, recordando
manchas de tinta, o amarelecimento natural do mau papel, e num caso particular,
um troço inferior rasgado.
Trondheim e Keramidas parecem ter
feito uma lista de “temas” e “objectos” recorrentes nas aventuras – cidades subterrâneas,
civilizações perdidas, tesouros encontrados, roubos à caixa-forte do Patinhas,
invenções estrambólicas do Professor Pardal, viagens à Lua, etc. – e revolveram
criar um “dumping” num só projecto. Não há qualquer necessidade dos episódios
se encaixarem na direcção em que prosseguem senão pelo se próprio humor de
inconsequência, estapafúrdio e acumulação. Demonstra, porém, uma apreciação
meramente superficial de semi-memórias dos autores, porém.
Os desenhos de Keramidas têm uma
qualidade de esboço rápido que acompanham a “velocidade” e urgência da
aventura, mas são algo falhos na elegância e coerência que se esperaria que
tivessem. Ainda que haja espaço para muitos estilos (do absolutamente plástico
de Bottaro ao pormenorizado de Rosa, passando pelo anguloso de Strobl ou a ligne claire de Jippes), há algo neste
universo estandardizado que pede por um equilíbrio interno. E se o seu desenho
funciona perfeitamente nas inúmeras criaturas e cenários que vai tecendo ao
longo deste livro, em relação às personagens principais há uma qualquer incúria,
digamos assim, que derrota parte da ilusão pretendida. Essa ilusão é igualmente
quebrada a outro nível, já que a “personalidade” das personagens também parece
algo deslocada. É natural que os autores tenham toda a liberdade para criarem o
que bem desejam com estes “brinquedos”, mas parte do prazer da leitura “arquivística”
está precisamente em encontrar momentos de variação,
para o que é fulcral que existam elementos comuns, expectáveis, de base. Se não
fosse pela economia das referências, este Mickey e Donald poderiam ser
quaisquer outras personagens, sobretudo o Mickey Mouse, que tem contornos de um
estranho cinismo algo impróprio na narrativa.
Poder-se-ia também imaginar um
trabalho mais burilado, específico e complexo na materialidade do livro. Por
exemplo, tirarem partido das tais manchas ou rasgões no interior de uma prancha
para ocultar um elemento da narrativa (isso, sim, um exercício oubapiano à la Antoine-Mathieu,
elevado e estimulante). Assim, o resultado final é o de uma aventura propositadamente
fragmentária, mas ao mesmo tempo linear, banal e unidimensional.
Une mystérieuse melodie, ou, Comment Mickey
rencontra Minnie. Cosey. Já o livro do
autor suíço parece entrar em contacto directo com memórias pessoais e
concentradas do autor. Como se compreende pelo título, este é um daqueles
projectos que se inscreve na lógica do “Year One”, uma atitude em que os
autores pretendem justificar, explicar ou tornar claras as origens de um
comportamento da personagem típico, mas que nunca foi explicado (ou mostrado). Porque
é que Batman já não usa armas? Porque é que Lucky Luke deixou de fumar? Porque
é que o Spirou deixou de usar o seu nome próprio? Que formou Choc? E no caso
presente, como e quando se conheceram Mickey e Minnie?
Cosey desliga-se da produção de
banda desenhada – a que terá tido acesso, imaginamos, ao longo de décadas e na
sua infância através das publicações francesas – para se concentrar na
primeiríssima vida de Mickey no cinema de animação. Daí que os nomes de Ub
Iwerks e de Gotfredson, para além do de Disney, se encontrem numa página de dedicatória,
onde um Mickey lê as suas próprias aventuras, enquanto bebe um copo de leite e
come uns biscoitos. Não é todo impossível imaginar que esta seja uma cena
nostálgica do próprio Cosey e que foi partilhada por jovens leitores um pouco
por todo o lado (era essa a mesma imagem que usámos num texto sobre o Bone de Jeff Smith, quando o comparámos à
leitura de Barks).
No entanto, o autor evita criar uma
história com contornos infantis, e tenta enxertar o imaginário Disney ao seu
próprio, autoral. O Mickey de Cosey é, inevitavelmente, um avatar de Jonathan,
que já havíamos chamado noutra ocasião de “Tintin pós-hippie”. Personagem que
se entrega à sua tarefa de escrita e sonho, isolada mas simpática para quem os
rodeia, sensível à cultura e imbuído num espírito romântico que implica
relações específicas com a natureza, a viagem, a leitura, o lazer e,
finalmente, o amor, é nítida a maneira como se podem criar ligações ponto a
ponto com a restante obra do autor (cuja série mais famosa se encontra em venda
em Portugal numa colecção acessível).
O Mickey de Cosey é um argumentista
de cinema, trabalhando para o cão-actor Pluto (aliás, aprenderemos aqui como
surge esse nome), e o seu produtor-patrão exige que ela escreva um argumento
com mais peripécias, complexo, emotivo e maduro (um comentário, talvez, que
possa ser lido metatextualmente). O patrão apela para Shakespeare, e essa
referência desdobrar-se-á quando se descobre um hipotético manuscrito perdido
que chegara às mãos de Pateta. Acrescentando ainda um encontro fortuito com uma
misteriosa mulher num comboio às escuras, e misturando essas linhas para criar
a ilusão de uma intriga complexa, Mystérieuse
melodie acaba por procurar valer-se de vários humores e direcções. Haverá
sempre um qualquer grau de incongruidade expectável nestes géneros: afinal na
capa vemos um Mickey a comer queijo, como se supõem que os ratos adorem, e a
beber café, como os escritores entusiasmados como ele. A questão estaria em encontrar
um equilíbrio entre essas dimensões e factores, mas perguntamo-nos se é de
facto atingido por Cosey.
Apesar das várias linhas da
intriga, é uma história comum ritmo algo tranquilo demais, sem tensão, e as
referências culturais parecem facilitistas. Não deixa de ser curioso ver o
traço de Cosey empregue nestas personagens, e reconhecem-se algumas das suas
técnicas recorrentes (as vinhetas incrustadas, por exemplo, em estruturas
maiores, ou o uso judicioso da cor) ou motivos (vistas ao longe da natureza ou
dos objectos). Mesmo que Cosey utilize de uma forma mais inteligente,
concentrada e criativa o “arquivo Disney” do que Trondheim e Keramidas, talvez
a marca nostálgica e romântica seja demasiado vincada para transformar o livro
numa conquista total.
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