8 de maio de 2016

Dois livros do Mickey Mouse. Cosey/Trondheim-Keramidas (Glénat)

Os dois álbuns de que falaremos pertencem a uma outra série, de que se prevêem para já quatro títulos (sendo estes os dois primeiros, mas existindo já material de Loisel acessível na internet, promissor), nas quais autores centrais ou importantes da tradição “franco-belga” da banda desenhada têm carta-branca para criarem histórias com as personagens mais famosas da Disney. Este gesto tem de ser entendido de modo bem diverso daquele que faz parte da prática comercial da Disney nas suas produções internacionais, nomeadamente no Brasil, Itália e Dinamarca, na qual se procura instituir um “estilo da casa” que é seguido pelos autores contratados. O que se procura nesta série, tal como no caso de Le Spirou de…, Une aventure de Chlorophylle par...‏, Lucky Luke vu par… ou até mesmo a colecção Graphic MSP, é que os autores convidados tragam a “sua” assinatura (o estilo do desenho, as abordagens narrativas, as estratégias mais típicas, etc.) para o campo das personagens, criando como que uma inflexão autoral no território mainstream. (Mais)
Naturalmente que esta descrição tem inúmeras limitações. Afinal de contas, apesar da imposição de determinadas regras na construção de material para uma companhia como a Disney, isso não significa que não tivessem emergido “personalidades autorais” no seu seio. Não são apenas os nomes de Gotfredson, Bill Walsh e de Barks, enquanto demiurgos, que se destacam, mas o de Tony Strobl, Kay Wright, Don Rosa, Ivan Saidenberg e Renato Canini (de quem falámos a propósito do “seu” Zé Carioca), Daan Jippes, Marco Rota, Romano Scarpa, Bottaro, Massimo de Vita, Tito Faraci, entre tantos outros, cada qual identificável pelo estilo visual ou pela matéria narrativa que instilaram nas suas “prestações”. Porém, haverá decerto uma diferença (de grau?) na medida em que todos estes autores surgem enquanto “funcionários” daquela máquina – recordemo-nos de que a “assinatura” foi durante muitos anos metafórica, já que os nomes não eram impressões nas publicações. No caso da MSP, por exemplo, isso ainda ocorre, tal como a diluição das personalidades individuais dos artistas e escritores é mais marcada do que no caso da Disney (o que quer dizer alguma coisa).

Adicionalmente, recordemo-nos de que é a Glénat quem tem, no espaço francófono, os direitos de tradução e edição das edições “arquivo” da Disney, publicando as colecções recentes de Floyd Gotfredson, assim como as dos seus sempre celebrados Carl Barks e Don Rosa, assim como outro material (italiano ou específico a um tema e/ou personagem). O lançamento destes livros deve ser entendido então num quadro de experiências de crossover, claro, mas igualmente de possibilidade legal e de estímulo comercial (mútuo). Afinal, nada têm estes usos a ver com a prática underground dos Air Pirates, que lhes levou a um caso judicial esmagador e destrutivo, nos anos 1970. Estes livros funcionam como homenagem, não enquanto acção de desconstrução ou de crítica. E autorizada. É isso que em parte explicará a relativa ausência de força e eficácia destes gestos, sendo num caso um mero exercício superficial de pastiche e no outro uma inclinação à nostalgia.

Mickey’s Craziest Adventures. Lewis Trondheim e Keramidas. Este álbum simula a recuperação de uma aventura perdida de Mickey e Donald. Os autores pretendem fazer crer que encontraram uma colecção de revistas mensais da Disney da década de 1960 intitulada Mickey’s Quest, na qual teria sido publicada uma história, à razão de uma prancha por número, cujo título o álbum repesca. Este volume, portanto, não seria senão a re-apresentação em fac-simile das páginas que conseguiram recuperar. Uma vez que a colecção não estava completa, das 82 pranchas da história completa, apenas tiveram acesso a 44, “encaixando-se” então na fórmula franco-belga.

Este exercício é curioso, e tem um espaço privilegiado em algumas das tais práticas “arquivísticas” da banda desenhada a que aventámos a propósito de L’homme qui tua Lucky Luke. Há uma criação de um filtro fictício que pretende entrar em contacto directo com a materialidade real da história da personagem. Em termos visuais isso é corroborado por algumas estratégias. A cor das pranchas é feita de tal modo que torna muito visível os “Benday dots” da quadricromia da época, e a superfície das pranchas apresenta toda uma série de problemas, recordando manchas de tinta, o amarelecimento natural do mau papel, e num caso particular, um troço inferior rasgado. 

Porém, como todos os exercícios da Oubapo (de que Trondheim é não apenas fundador mas um cultor recorrente e engajado), o limite é atingido de forma rápida. Os autores, na sua programática “imitação”, querem construir uma aventura absolutamente linear com estas personagens. Uma vez que a narrativa segue, prancha a prancha, um ritmo desconjunto, com elipses e saltos, “falta” parte da história, mas os leitores, habituados não apenas à construção elíptica da banda desenhada mas igualmente por uma prática, real, de ler por vezes revistas sem a ordem correcta, re-constroem nas suas mentes uma intriga suficientemente clara para compreender cada passo. O problema é que estes passos são de facto uniformes e lineares [não é que desejemos criar uma hierarquia de valores, onde as características modernistas do oblíquo, do fragmento, da dissonância fossem necessariamente superior, mas há uma expectativa crescente ou exigência mesmo no interior de géneros populares]. Acontece isto, depois isto, e a seguir isto, sem qualquer tipo e complexidade narrativa, e com uma falta de sofisticação (de referências, humor, de cultura, etc.) que perderia em comparação com material da época supostamente revisitada. Mesmo não recorrendo a Barks e Gotfredson, em que a linearidade – forçosa no campo da banda desenhada de entretenimento infantil - tinha outras qualidades exploradas, não será displicente recordar o trabalho de Carl Fallberg e Paul Murry (aventuras intrépidas) ou de Bill Walsh e Manuel Gonzelez (aventuras mundanas, com um Mickey “middle-American”).   

Trondheim e Keramidas parecem ter feito uma lista de “temas” e “objectos” recorrentes nas aventuras – cidades subterrâneas, civilizações perdidas, tesouros encontrados, roubos à caixa-forte do Patinhas, invenções estrambólicas do Professor Pardal, viagens à Lua, etc. – e revolveram criar um “dumping” num só projecto. Não há qualquer necessidade dos episódios se encaixarem na direcção em que prosseguem senão pelo se próprio humor de inconsequência, estapafúrdio e acumulação. Demonstra, porém, uma apreciação meramente superficial de semi-memórias dos autores, porém.

Os desenhos de Keramidas têm uma qualidade de esboço rápido que acompanham a “velocidade” e urgência da aventura, mas são algo falhos na elegância e coerência que se esperaria que tivessem. Ainda que haja espaço para muitos estilos (do absolutamente plástico de Bottaro ao pormenorizado de Rosa, passando pelo anguloso de Strobl ou a ligne claire de Jippes), há algo neste universo estandardizado que pede por um equilíbrio interno. E se o seu desenho funciona perfeitamente nas inúmeras criaturas e cenários que vai tecendo ao longo deste livro, em relação às personagens principais há uma qualquer incúria, digamos assim, que derrota parte da ilusão pretendida. Essa ilusão é igualmente quebrada a outro nível, já que a “personalidade” das personagens também parece algo deslocada. É natural que os autores tenham toda a liberdade para criarem o que bem desejam com estes “brinquedos”, mas parte do prazer da leitura “arquivística” está precisamente em encontrar momentos de variação, para o que é fulcral que existam elementos comuns, expectáveis, de base. Se não fosse pela economia das referências, este Mickey e Donald poderiam ser quaisquer outras personagens, sobretudo o Mickey Mouse, que tem contornos de um estranho cinismo algo impróprio na narrativa.

Poder-se-ia também imaginar um trabalho mais burilado, específico e complexo na materialidade do livro. Por exemplo, tirarem partido das tais manchas ou rasgões no interior de uma prancha para ocultar um elemento da narrativa (isso, sim, um exercício oubapiano à la Antoine-Mathieu, elevado e estimulante). Assim, o resultado final é o de uma aventura propositadamente fragmentária, mas ao mesmo tempo linear, banal e unidimensional.

Une mystérieuse melodie, ou, Comment Mickey rencontra Minnie. Cosey. Já o livro do autor suíço parece entrar em contacto directo com memórias pessoais e concentradas do autor. Como se compreende pelo título, este é um daqueles projectos que se inscreve na lógica do “Year One”, uma atitude em que os autores pretendem justificar, explicar ou tornar claras as origens de um comportamento da personagem típico, mas que nunca foi explicado (ou mostrado). Porque é que Batman já não usa armas? Porque é que Lucky Luke deixou de fumar? Porque é que o Spirou deixou de usar o seu nome próprio? Que formou Choc? E no caso presente, como e quando se conheceram Mickey e Minnie?
Cosey desliga-se da produção de banda desenhada – a que terá tido acesso, imaginamos, ao longo de décadas e na sua infância através das publicações francesas – para se concentrar na primeiríssima vida de Mickey no cinema de animação. Daí que os nomes de Ub Iwerks e de Gotfredson, para além do de Disney, se encontrem numa página de dedicatória, onde um Mickey lê as suas próprias aventuras, enquanto bebe um copo de leite e come uns biscoitos. Não é todo impossível imaginar que esta seja uma cena nostálgica do próprio Cosey e que foi partilhada por jovens leitores um pouco por todo o lado (era essa a mesma imagem que usámos num texto sobre o Bone de Jeff Smith, quando o comparámos à leitura de Barks).

No entanto, o autor evita criar uma história com contornos infantis, e tenta enxertar o imaginário Disney ao seu próprio, autoral. O Mickey de Cosey é, inevitavelmente, um avatar de Jonathan, que já havíamos chamado noutra ocasião de “Tintin pós-hippie”. Personagem que se entrega à sua tarefa de escrita e sonho, isolada mas simpática para quem os rodeia, sensível à cultura e imbuído num espírito romântico que implica relações específicas com a natureza, a viagem, a leitura, o lazer e, finalmente, o amor, é nítida a maneira como se podem criar ligações ponto a ponto com a restante obra do autor (cuja série mais famosa se encontra em venda em Portugal numa colecção acessível).

O Mickey de Cosey é um argumentista de cinema, trabalhando para o cão-actor Pluto (aliás, aprenderemos aqui como surge esse nome), e o seu produtor-patrão exige que ela escreva um argumento com mais peripécias, complexo, emotivo e maduro (um comentário, talvez, que possa ser lido metatextualmente). O patrão apela para Shakespeare, e essa referência desdobrar-se-á quando se descobre um hipotético manuscrito perdido que chegara às mãos de Pateta. Acrescentando ainda um encontro fortuito com uma misteriosa mulher num comboio às escuras, e misturando essas linhas para criar a ilusão de uma intriga complexa, Mystérieuse melodie acaba por procurar valer-se de vários humores e direcções. Haverá sempre um qualquer grau de incongruidade expectável nestes géneros: afinal na capa vemos um Mickey a comer queijo, como se supõem que os ratos adorem, e a beber café, como os escritores entusiasmados como ele. A questão estaria em encontrar um equilíbrio entre essas dimensões e factores, mas perguntamo-nos se é de facto atingido por Cosey.

Apesar das várias linhas da intriga, é uma história comum ritmo algo tranquilo demais, sem tensão, e as referências culturais parecem facilitistas. Não deixa de ser curioso ver o traço de Cosey empregue nestas personagens, e reconhecem-se algumas das suas técnicas recorrentes (as vinhetas incrustadas, por exemplo, em estruturas maiores, ou o uso judicioso da cor) ou motivos (vistas ao longe da natureza ou dos objectos). Mesmo que Cosey utilize de uma forma mais inteligente, concentrada e criativa o “arquivo Disney” do que Trondheim e Keramidas, talvez a marca nostálgica e romântica seja demasiado vincada para transformar o livro numa conquista total.

Sem comentários: