Quando falámos do primeiro número deste comic book de Crane, havia uma sensação de não apenas
ter chegado tarde a um ciclo deste tipo de publicações pela parte
dos grandes nomes da banda desenhada indie dos anos 1990, como
se entendia que, seja como for, haveria uma forma de trabalhar algo
distinta. Passados dez anos, a existência de apenas mais quatro
número da mesma publicação – e outros projectos pelo meio,
sobretudo livros – leva de facto à confirmação que Crane procura
manter menos viva a ideia de um número anual (ou mesmo “annual”,
como se diz nos Estados Unidos a números especiais e maiores de um
título), como é praticado por Adrien Tomine e Seth, do que
simplesmente deixar em aberto um veículo à sua produção quando
pronta... (Mais)
Outra das fórmulas que se têm mantido
é a por vezes quase indistinção entre uma história e outra. Quer
dizer, não existem separadores claros ou os títulos trabalhados não
estão logo ao início formando uma barreira cognitiva necessária à
leitura. Pode muito bem acontecer que entremos num novo território
narrativo sem a certeza de ter abandonado o anterior. Mas este tipo
de desordem, mesmo que momentânea, parece ser um efeito desejado
pela própria estrutura das histórias, como veremos. Uptight
é uma espécie de antologia one man show, em que o autor
publica histórias curtas e auto-conclusivas, alternadas com
episódios multifacetados mas de projectos maiores ou capítulos de
uma narrativa que se adivinha, no futuro, a poder compor uma obra
maior. Este último caso é claríssimo ser aquele garantido por
“Keeping Two”, que continua desde o primeiro número (e de antes
mesmo). Uma vez que o tempo se estendeu entre o quarto número de
Uptight e este, o autor acabou por reunir mais material, de
forma a ter publicado uma revista de mais de 100 páginas, recordando
um outro formato americano (mais propriamente da DC), o “80-page
giant”... Por isso, além de um novo capítulo desse trabalho mais
estendido, temos ainda mais três histórias, tudo levando a crer
serem curtas fechadas. Parte dessa ideia é sustentada pelo
facto de Crane ter publicado duas das histórias neste número em
pequenas auto-edições limitadas.
Uma vez que há mais páginas, não
deixa de ser surpreendente que “Keeping Two” tenha mais de
cinquenta pranchas nesta edição. A paranóica espera do
protagonista pelo regresso da namorada, que vai sucessivamente
imaginando ter sofridos os mais díspares acidentes ou catástrofes,
continua, interrompendo o fluxo normal da sua experiência vivida.
Ainda que haja escolhas visualmente claras na separação entre “vida
real” e “imaginação” pelo uso ou ausência de molduras nas
vinhetas – de pranchas regularíssimas, numa grelha de 2 x 3 – a
sua flutuação é tão rápida que uma sensação confusa de
travessias inconclusivas é natural. Recordações, elas próprias
aceleradas, projecções num futuro hipotético auto-complacente,
momentos de reflexão, transformadas numa curiosa mistura entre
deslocação espacial e stasis temporal graças a uma faixa
verbal introspectiva, e ainda uma interrupção por um nível
hipodiegético adicional por penetrarmos na leitura que o
protagonista faz (e que por sua vez apresenta cenários hipotéticos,
um mais dramático que o outro, e que poderá espelhar a história do
“nosso” protagonista de várias maneiras), tudo isto cria uma
estrutura por camadas cuja navegação apenas se deve fazer com a
máxima atenção e possivelmente regressos e releituras. Estamos
seguros que quando existir em livro, angariando uma atenção maior
crítica, que Keeping Two será visto como um tour de force
narrativo, sobre os perigosos devaneos a que a solidão convida.
As outras três histórias estão
unidas por linhas temáticas: de uma maneira ou outra, os
protagonistas dessas histórias encontram-se presos num qualquer
espaço, do qual não há escapatória, esperando um qualquer fim
terrível. O próprio Crane descreve tudo como
“histórias onde coisas horríveis acontecem”. “Wake Up” é uma espécie de pesadelo circular e
auto-destrutivo de uma mulher, com cerca de 8 páginas (dependendo de
como contamos as pranchas a negro). “The Dark Nothing” é uma
história de ficção científica, de 24 páginas, com grandes
preocupações sólidas de worldbuilding mas para se
concentrar num acidente de mineração. “The Middle Nowhere” (é
mesmo assim), de quase trinta páginas, mostra igualmente um
acidente, em que um homem que trata de uma torre de comunicações
isolada cai ao mar e é atacado por uma criatura fantástica, uma
espécie de mulher-polvo. A que grau de realidade pertencerá esse
confronto, ficará ao leitor a responsabilidade de negociar.
Jordan Crane demonstra nestas páginas,
também, a sua capacidade de adaptação do trabalho de linha e
coloração (ou trabalho em cinzentos, melhor dizendo) conforme os
registos desejados. O seu treino em serigrafias ou
separação de manchas é notável mesmo quando trabalha apenas a
preto ou gradações de cinzentos. Se “Keeping Two” se mantém no seu
estilo-assinatura de figuras muito estilizadas, sumárias mas com
pequenos pormenores que assinalam o seu realismo, “Wake Up”
parece querer demonstrar uma maior proficuidade no detalhe
naturalista, sobretudo no que diz respeito aos corpos das
personagens, já para não falar de estratégias bem diversas de
composição de página e de vinhetas, dramatismo, etc. Mas acima de
tudo, estão os sólidos negros dos quais mal escapam manchas
brancas, que demonstram como Crane pode ser um artista exímio no
chiaroscuro como muitos dos seus mais famosos cultores. “The
Dark Nothing” regressa a uma abordagem mais limpa e suave, que tira
partido de uma composição mais respirada, com poucas vinhetas por
página, levando a um ritmo mais rápido da acção mas ao mesmo
tempo a possibilidade de imagens mais alargadas e pausadas, como
convém ao que se passa no espaço. O uso das gradações de
cinzentos também é usada de maneira a construir as formas, e não
somente para lhes dar textura e dimensão, mostrando mais outra
dimensão no trabalho de Crane. Finalmente, “The Middle Nowhere”
mantém-se na sua abordagem estilizada-naturalista, mas emprega
halftones e altos-contrastes para criar as estruturas de luz
e formas de que vai precisando.
Com a excepção dos episódios com
Simon e Jack, as personagens da saga infantil Clouds Above,
todo o material de Uptight tinha um ambiente sombrio,
melancólico, mas com a ausência dessa nota leve, e com o tamanho
das histórias, neste número, esse ambiente é ainda mais reforçado.
Apenas a última história se poderá compreender como terminando
“bem”, se for esse o caso... Mas é precisamente esse jogo entre
episódios melancólicos, paranóicos, de isolamento e visões, em
que as personagens acabam por ser ver abandonadas com os seus
próprios pensamentos, e face ao silêncio ou ausência dos outros,
que mais revelam a fragilidade intrínseca aos humanos...
Nota final: agradecimentos à editora,
pelo envio da publicação em formato digital.
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