De tempos a tempos, vemos a abertura de
novos territórios na banda desenhada em Portugal. Gravidez,
não sendo propriamente uma novidade em termos genéricos ou
estilísticos, é-o todavia no seio da nossa própria cena, que ainda
continua, apesar da sua mais recente saúde, arreigada a abordagens
relativamente convencionais e expectáveis. Este livro, para além de
ser a primeira experiência de fôlego da artista e ilustradora
portuguesa radicada na Argentina, é também a primeira incursão
neste campo criativo pela livraria-editora Tigre de Papel,
tornando-se portanto duplamente uma “nova voz”. (Mais)
Poderemos entender este livro de várias
maneiras. Como uma autobiografia, um diário, um caderno de viagem,
uma exploração específica de uma experiência única (a gravidez),
mas ao mesmo tempo um cadinho em que, de uma forma particularmente
subtil, se propõem modos de interrogar ideias feitas, atitudes
sociais, expectativas generalizadas e que convidariam, certamente, a
toda uma série de discussões de cariz político. Em termos básicos,
ou numa hipotética sinopse, poder-se-ia dizer que é a “história
da gravidez da Júlia” e toda uma série de interacções com o
mundo à sua volta, desde o companheiro aos amigos e família, os
vários serviços de saúde, soluções alternativas ao
acompanhamento da gravidez, mas também uma auto-reflexão sobre o
que essa experiência significa para si mesma, quer do ponto de vista
físico quer do ponto de vista existencial.
O facto do livro ter um formato oblongo
convidaria igualmente a toda uma série de interpretações
materiais-conceptuais, possibilitando ir tão longe quanto o que uma
alucinação semiológica permitiria, discutindo a “verticalidade”
do acto central à diegese, mas fiquemo-nos por algo mais simples. A
autora estrutura as suas páginas em pequenas filas de personagens
que leva a estratégias recorrentes: ora o desenho de um cenário
completo e unificado onde as personagens se repetem para dar a ideia
de movimento, ora apresentando breves sequências de uma acção,
estratificando-a ao longo do tempo, ora espraiando uma galeria de
personagens que criam a ideia de uma tipologia face a um
acontecimento, ou então reforçando sempre a ideia de movimento
linear.
A autora, cultora de uma atitude de
desenho-esboço, uma gestualidade sumária e rápida herdeira de toda
uma série de autores modernos que poderia encontrar em Claire
Bretécher um dos seus apogeus, não está interessada propriamente
em efeitos de realismo ou de ilusão, mas antes em assegurar os
elementos de agência que lhe importa moldar. Não se esteja à
espera de, por exemplo, “coerência gráfica”, uma vez que a
flutuação dos registos funciona para melhor transmitir as
diferentes intensidades de cada “episódio”. Apesar da autora ter
discutido publicamente como estas pranchas finalizadas e publicadas
são uma versão reestruturada de um verdadeiro registo diarístico
que foi compondo ao longo desses meses, essa urgência e imediatez é
mantida no produto final. A utilização de várias abordagens
gráficas – linhas grossas ou finais, linhas pontilhadas ou
pequenos rendilhados e texturas, manchas negras, aqui maior trabalho
de detalhe na construção de uma personagem secundária, ali maior
celeridade na delineação das personagens principais – contribui
sobremaneira para o ritmo desconjuntado desse mesmo percurso,
temporal e experiencial.
Por sua vez, aquela linearidade, a qual
não deve de forma alguma ser vista como uma fraqueza ou uma ausência
de mecanismos de organização narrativa “mais sofisticados”,
apenas consolida o foco de todo o projecto. Tal como proposto por nós
numa das questões colocadas à autora quando da apresentação
pública de Gravidez, há aqui uma nítida opção por criar
uma descomplicada estrutura temporal associada ao que o título
promete. O livro não se estende sobre as condições da união entre
a protagonista e o seu parceiro, nem tampouco explora a vida do seu
fruto. Concentra-se no complexo acto e processo da gravidez: começa
imediatamente antes do retorno da “fertilidade”, seguido logo da
notícia-choque da gravidez e a mudança de Portugal para Buenos
Aires, e termina pouco tempo depois do parto, com o rebento
plenamente chegado à vida externa.
A autora pretende fazer uma abordagem
franca e quase completa desta gravidez, mas vai tanto além
como aquém disso. Aquém porque, apesar de à partida
podermos estar à espera de uma total exposição do si de uma forma
“demasiado” íntima – o que, em si mesmo, seria apanágio de
toda uma série de experiências da autobiografia da banda desenhada
moderna, sobretudo aquela advinda da “escrita [gráfica] feminina”
– há sempre uma distância suficiente que a afastaria, em grau,
ainda que não em natureza, de autoras como Aline Kominsky, Roberta
Gregory ou Julie Doucet.
Digamos que, se criássemos uma
(desinteressante, mas com valor heurístico aqui) dicotomia entre uma
abordagem “pornográfica” e outra “delicodoce”, diríamos que
Júlia Barata não se inclina nem para aquele trio de autores
anglófonas, mais acerbas, nem tampouco para um tom mais suave, como
o da autora francesa Capucine, a qual também criara outro diário de
gravidez, Corps de rêve. Por exemplo, na cena de uma
episiotomia a que se vê forçada, Barata opta por uma representação
de um “close-up” da vagina num registo mais simbólico e
metafórico do que iconográfico. Sendo a única cena que foge
totalmente à câmara dos eventos do resto do livro, torna-se
significativa. Dito isto, o estilo do desenho está mais próximo do
new wave do que os registos de uma ilustração mais
convencional e formulaica.
Mas, por outro lado, Gravidez
vai além daquele tratamento. A autora não quer tão-somente
falar das metamorfoses do seu corpo e espírito. A “circunstância”
da gravidez é a desculpa para que, em torno dela, se criem
perspectivas sobre as atitudes que existem em relação a ela. Como
qualquer pessoa que tenha estado grávida, ou envolvida numa
gravidez, saberá, os conselhos chovem de todas as direcções e
quase toda a gente tem conselhos a dar. Mais, num tempo em que existe
uma imensa facilidade em ter acesso a informação sobre tudo, tudo
poderá surgir para discussão. O problema está em navegar por entre
esse excesso, as escolhas a fazer mas, sobretudo, apercebermo-nos de
quais juízos de valor emergem nessa navegação e quando aceitar ou
rejeitar esses mesmos juízos.
Ora, a questão não é, pelo menos
neste nosso espaço, discutir quais conselhos são certos ou qual a
atitude a tomar, naturalmente, mas compreender a forma como Júlia
Barata é muito subtil nessa gestão na sua banda desenhada. Na
ausência de legendas de uma narradora externa, de diálogos com
outras personagens sobre terceiros, até mesmo de apartes com o
narratário, e no uso parcimonioso de balões de pensamento, a
protagonista não faz qualquer juízo de valor sobre as pessoas com
quem interage, sobre o que dizem, ou até do que vê (se bem que
possamos interpretar as suas expressões). Mas à medida que vai
falando com novos amigos na nova cidade, com obstetras, agentes de
seguradoras, vendedoras de roupa de bebé, parteiras privadas e
doulas, terapeutas e enfermeiras, e pessoas em geral, vão surgindo
aqui e ali farpas, conselhos, ideias feitas, opiniões, perspectivas,
etc. com que a protagonista lida de modos sempre distintos, mas
sobretudo deixando aos leitores a responsabilidade de criar os seus
próprios juízos. Imaginamos que estes juízos sejam diferentes
entre os leitores (estes acreditando que uma doula permite uma
relação mais primal e directa com certos ritmos do corpo e
independentes da “invasão” da medicina ocidental, aqueles outros
preferindo a segurança ofertada pelo serviço nacional de saúde,
etc.), e é aí que reside uma das forças do livro.
É uma gravidez, não todas
ou sequer a gravidez, que é aqui exposta. Mas é ela que
convida, após a leitura desta experiência e a sua expressão
individual, encetar talvez uma conversa maior.
Nota final: agradecimentos à editora,
pela oferta do livro, assim como pelo convite ao seu lançamento
oficinal na livraria do mesmo nome, e um cumprimento à autora, pela
simpatia e confiança.
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