A
possibilidade de escrever uma “autobiografia” de uma outra
pessoa, em que um artista “empresta” a sua linguagem para dar voz
e corpo à biografia de outrem mas contada na primeira pessoa, não é
de todo inédita, se nos recordarmos do projecto de Emmanuel Guibertcom Alan Cope. Os modos de produção são diferentes, porém, já
que Guibert colhia a biografia de Cope a partir de conversas
gravadas, directas e ao vivo, ao passo que Xavier Almeida estará a
trabalhar à distância. O pugilista José Santa “Camarão”,
nascido em Ovar e famosíssimo durante as décadas de 1920 e 1930,
morreu em 1965. Almeida, instado por um artigo de jornal e criando
laços com a sua terra (é também vareiro), criou este pequeno livro
de banda desenhada a partir da pequena biografia escrita pelo próprio
boxeur. (Mais)
O registo
de Xavier Almeida segue muitas das linhas de uma abordagem brut
ou naïf, o que, não preenchendo os mesmos campos, aponta
para uma prática despojada de certas regras de correcção
académica, uma maior atenção para com a expressão do que para com
uma coerência interna da figuração ou perspectiva, etc. Na
verdade, uma primeira leitura remeteu-nos a uma obra outsider
como aquela que se discutiu a propósito do autor turco Masist Gül.
Haveria aqui uma hipotética aliança entre o registo da
autobiografia escrita pelo próprio José Santa Camarão, não
erudita e franca, e o desenho de Xavier Almeida, que beberia de uma
imediaticidade igualmente popular. Repare-se como a capa poderá
fazer recordar registos visuais de uma mão-cheia de práticas das
artes folclóricas, ao mesmo tempo que remete a referências mais
eruditas, como as procissões de figuras carnavalescas de James
Ensor. Se o boxeur se sentia deslocado, por razões físicas,
das pessoas que o rodeavam na sua vida em Ovar e Lisboa, a capa
mostra as outras personagens igualmente transformadas em fantasias de
barro ou de títeres.
Gigante,
mesmo entre outras nacionalidades com outras médias de alturas
masculinas, Santa Camarão media mais de dois metros. Esse é um tema
repetido desde o seu nascimento, com os comentários em torno do seu
corpo, tamanho, força e tenacidade. Curiosamente, essa informação
surge pela forma do texto, mas, e até devido à assinatura gráfica
de Almeida, menos pela exploração visual (com algumas excepções
marcantes, como a da sombra caminhando por entre as ruas de Almada).
Se bem que se poderia argumentar que isso se deveria tão-somente às
limitações do desenho, numa óptica redutora e somente académica,
poder-se-á ver aí um tratamento respeitoso para com a humildade do
próprio desportista, notando-se como o livro abre com uma epígrafe
sua, onde confessa que esta faceta da sua vida mais famosa “não
vale a pena contá-la”.
A
estrutura do livro não é linear e cronológica, tirando partido de
saltos na ordem temporal de forma a sublinhar os elos temáticos e as
emoções significativas que o fundo social de Santa Camarão jogava
na sua ascensão desportiva e mediática. Começamos num combate, que
funciona como os limites da memória do protagonista: recuamos à
primeira infância, depois seguimo-lo para Lisboa, onde com o pai
inicia a sua vida profissional como estivador e fragateiro, o
regresso a Ovar já na primeira idade adulta e finalmente a
descoberta do mundo do entretenimento, do circo e da luta, onde
encontraria a sua carreira. Esta desdobrar-se-ia em combates de boxe
muito importantes no desporto, já que chegou a disputar o título
europeu de pesos-pesados e combateu nos Estados Unidos com outros
campeões. Além disso, teve um papel pontual, mas importante, no
cinema. Mas tudo isso está de fora desta biografia em banda
desenhada, por ser mais famosa e acessível noutros canais (uma
biografia, alguns documentos fílmicos e até o esforço de Ovar com
várias acções dedicada a este seu “filho dilecto”) ou,
voltando às palavras do próprio, porque “não vale a pena
contá-la”. A aventura das Américas fica de fora... Insiste-se
noutro foco.
Com
efeito, Xavier Almeida opta por uma abordagem quase minimalista e
silenciosa da narrativa. Não existem grandes blocos textuais a
contextualizar, nem grandes explicações. Apenas frases curtas,
retiradas da narração do pugilista. O leitor terá de, a partir das
poucas cenas apresentadas, quase aos supetões, e os diálogos
lacónicos (escritos por “Pato Bravo”, isto é, B Fachada, isto
é, Bernardo Fachada), ir construindo a fantasmática fiada contínua
da vida do vareiro. Mas essas cenas, essa vida, deverão ser lidas
num esforço de as compreender no quadro do Portugal das décadas de
1910 e seguintes, e o que significaria a vida, e a carestia, para
estas personagens. Essa dinâmica é fulcral para a leitura do livro.
Se bem que se foque na vida de uma personagem “vitoriosa”, não
deixa de poder ser visto como um retrato de um Portugal muitas vezes
arreigado da dimensão popular da nossa memória cultural, mais dada
à celebração patética de meia-dúzia de “momentos bons”. O
posfácio do autor aponta outras dimensões que lhe despertaram a
atenção na investigação para este projecto, mas que, se ficaram
de fora em termos de presença e representação, lançam sobre a
narrativa restante uma sombra que se pressente.
A
laconicidade das palavras não significa que não se explorem desvios
no que diz respeito à linearidade da imagem. São muitos os momentos
em que o olhar do narrador, que poderá tanto ser visto como
extradiegético como associado à primeira pessoa de José, voga
pelas paisagens marítimas ou fluviais, as nuvens pairando no céu, a
paisagem célere à janela do comboio, expandindo assim o horizonte
social ao qual o protagonista estaria preso. E à medida que o
amadurecimento e as experiências de Santa Camarão se tornam mais
complexas, também a matéria se complica, havendo o que parecem ser
“traduções” dos seus estados de alma para a superfície da
página, por vezes quase atingindo composições dinamistas e até
abstractas.
Uma vida
não é feita apenas pelos seus eventos e marcos superficiais. Esta
(auto)biografia demonstra-lo.
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