A publicação de um imenso volume reunindo todas as tiras que foram publicadas no seio da colaboração com o jornal leva a que, de uma forma feliz, não haja uma grande distância da sua publicação hodierna e a sua possível transformação em texto “livresco”, e a consequente nova respiração, circulação, memória e integração na “obra” de Marco Mendes. Naturalmente, e como não cessamos de o repetir sempre que falamos do trabalho deste autor, ele entrosa a sua prática, digamos comum, em cada circunstância que possa advir do novo projecto, mesmo que essas mesmas circunstâncias alterem as condições de produção.
Uma
das alterações “físicas” ou em termos prático-artísticos foi
a do formato das pranchas. De papéis usualmente maiores e com uma
grande variedade de materiais riscadores, assim como da própria
maneira de lançar o esboço e completar as artes-finais, Mendes
passou a criar a esmagadora destes trabalhos em aguarela sobre folhas
A4. Isso permite-lhe uma maior rapidez no desenho, influindo
igualmente numa certa plasticidade fora do alcance do controlo total,
o que resulta em imagens deslumbrantes sobretudo em paisagens
desafogadas ou fenómenos naturais, uma certa leveza nas personagens
(sem nunca descurar o virtuosismo da correcção e observação
precisa das expressões e emoções), assim como uma escolha
judiciosa na escolha das cores e tons quando se tratam de tiras
monocromáticas, e sobretudo nos cruzamentos quando se verificam
maiores misturas.
Mesmo
que depois haja correcções sobre estas pranchas originais,
inclusive através dos meios digitais (limpezas de texto, imagem,
posicionamentos das vinhetas, proporções, etc.), o resultado final
mantém a gestualidade original.
Mas
a grande alteração terá a ver com a variedade de temas, de
tratamentos, de humor e de atenções. A produção diária,
obrigatória, foi algo de inédito para o autor, cujo ritmo de
produção era significativo, sólido e expresso (através das
publicações de fanzines, livros e o blog), mas que aqui ganhava uma
urgência distinta. Neste campo, para além desse mesmo ritmo diário,
o autor via-se a enfrentar uma certa resposta editorial, uma
responsabilidade, digamos assim, em “dizer alguma coisa” sobre o
mundo à sua volta, mais alargado, por força de participação num
jornal.
Não
abdicando jamais do seu olhar poético sobre o quotidiano, a
capacidade em desvendar os sentimentos mais comezinhos do ser humano,
o abandono à auto-derisão, a forma como evita uma patina de
“bem-pensante” interrompendo o fluxo da poesia, do bon mot,
do pensamento profundo com uma bordoada ou um arroto (uma
característica que partilha com Miguel Carneiro, com quem havia
fundado A Mula), encontramos aqui uma mais contínua conversa com o
mundo da política (que já fazia, sobretudo com os desenhos a lápis
de indivíduos, deixando alinhadas algumas frases e pensamentos nas
margens).
Todavia,
há um recuo a esse seguimento das “notícias”. Uma das aparentes
“recusas” do autor foi a de enfrentar a dita espuma dos dias da
política, ou melhor, da politiquice portuguesa, os fait divers
ou controvérsias de bolso da semana, que leva aos desdobramentos de
comentários e “posicionamentos” nas televisões, colunas e redes
sociais em torno de um compadrio camarário ou uma bordoada arrotada
à saída do Parlamento por um qualquer elemento eleito. Surge-nos
como fulcral aqui a diferenciação que Jacques Rancière fez entre a
chamada “polícia”, isto é, a política tal como exercida pelos
mecanismos de poder e as regras que impõe – quem fala, como fala,
quando fala, o que é necessário para se poder falar, usualmente
encarcerado em papéis institucionais, das eleições à assinatura
da coluna do jornal, da pertença a partidos políticos organizados
ao currículo dado pelos pares, e por aí fora – e a “política
propriamente dita”, que é sempre a criação de um espaço público
de participação na cidade, o qual, as mais das vezes, se nota
quando ele mesmo se funda, isto é, quando se conquista mais
espaço de fala. E a banda desenhada não deixa, de forma alguma, de
participar como um espaço de fala dessa natureza (como esperamos ter
demonstrado na ocasião de SemConsenso).
Portanto,
encontramos muitas tiras em torno de Donald Trump e dos vários
horrores para o qual ele contribui, dando a ideia de “tudo normal”
para o exercício da boçalidade, ou de Bolsonaro, que também
contribuiu para a ideia de uma “normalidade do abjecto”;
encontramos algumas curiosas chamadas para a realidade turca, por
força da sua intimidade com esse país (através da companheira –
tudo elementos representados no interior do texto, que jamais abdica
das suas raízes autobiográficas, não se tratando de indiscrição);
e respostas emotivas e poderosas perante acontecimentos impossíveis
de evitar: a hecatombe no Mediterrâneo, os incêndios de Pedrogão,
desastres naturais, os fenómenos de extrema-direita um pouco por
toda a Europa... E alguns comentários também em relação a
acontecimentos portugueses, mas não muitos. Não é que Marco Mendes
não tenha, possivelmente, pensamentos ou atitudes perante essas
realidades, mas o “peso” dessas mesmas notícias é tão fugaz,
que duas semanas longe deles tudo se dissipa. Mesmo assim, há um
retrato caloroso de Jerónimo de Sousa, uma atenção para com os
fins de contrato selvagens do arrendamento nas cidades de Lisboa e
Porto, lições sobre compadrios... E o autor terá evitado encher o
seu trabalho com essa matéria friável, preferindo antes reforçar
as possibilidades de uma memória perene de questões bem mais
prementes.
O
retrato do próprio autor – falámos de autobiografia, mas saberão
os leitores deste espaço que essa noção engloba questões de
fantasia, distorção, logro, jogo, humor, caricatura, sonho –
continua, e será curioso entender, a longo prazo, quais os sinais de
transformação interna que ocorrem sobre a sua personalidade
(enquanto personagem, repitamos, nunca estaremos a falar do autor
empírico). A comensalidade, mesmo quando reduzida a “copos” é
um tema recorrente nestas tiras, e isso é revelador do tipo de
companheirismo que este “Marco” procura entre os seres humanos,
expresso igualmente noutros episódios, desde a forma como
cumprimenta efusivamente os vizinhos, apoia um aluno, aceita os seus
amigos tal qual são (alguns dos quais igualmente transformados em
“personagens recorrentes”) ou compreende a empatia necessária e
silenciosa que devemos ter para com aqueles menos afortunados que nós
mesmos. E, claro, a sua mulher ganha os papéis igualmente de fonte
de sabedoria e ternura, âncora e rasteira, consolidando aquela
transformação que abordámos.
As
pressões editoriais – discutidas publicamente, logo também aqui
não estaremos a fazer inconfidências – foram sentidas, talvez
desde um momento inicial, e é extremamente produtivo, interessante e
revelador que a escolha editorial tenha sido feita a que não apenas
surjam as datas de cada tira, como tenham incluído aquelas que foram
recusadas e as que as “substituíram”, seja parcial ou
totalmente. Desta maneira, caberá aos leitores o tentar compreender
as razões dessas recusas. E se nalguns casos, não que se aceite a
censura, mas se compreenda as limitações morais, políticas ou
sociais que terão informado essa decisão – não temos de as
aceitar nem deixar de criticar, é apenas a compreensão dessa
posição –, há casos outros em que a ambivalência e as próprias
características deste autor tornam incompreensível essa mesma
decisão.
E
a questão da “domesticação”? Verificou-se? É inevitável que
o amadurecimento altere certas prioridades e disponibilidades da
vida, e crie enfoques mais concentrados. Não nos pode deixar de
surpreender que a necessidade de responder todos os dias a um
trabalho desta natureza, onde o acompanhamento de uma equipa e uma
verdadeira responsabilidade diária e pública exerça o seu peso. Há
uma acalmia, portanto, natural. Mas se perdermos de vista a maneira
como o autor se ri das suas próprias piadas sem no-las revelar,
mostra a podridão e crueldade de que somos capazes, bastas vezes
disfarçada com palavras como “tradição”, “realpolitik”,
“naturalidade”, “inevitável”, como observa as estrelas e a
aurora, deixa que as crianças revelem a sua profunda compreensão de
quem somos, se deixa abandonar no abraço dos amigos e amante, então
não estaremos a ver a diversidade
frutífera com que o
Diário Rasgado é
capaz de mudar as suas páginas, sem nunca perder a sua urgência.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume. Indicamos
ainda que o volume foi publicado com três cores diferentes para as
capas (vivos e claros verde, amarelo e rosa), todos numerados e
assinados.
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