A expressão “para a
infância” deverá, cada vez mais, libertar-se do seu juízo de
valor associando-o a produções que significam tão-somente um
entretenimento formulaico, protegido, incontroverso e afastado das
mesmas preocupações que regem (regeriam? Deveriam reger?) o “mundo
dos adultos”. E, cada vez mais, são livros como A guerra que
contribuem para essa alteração. Mais, se acreditarmos que a
formação cognitiva, intelectual, cultural e para a cidadania das
crianças começa “de pepino”, genuinamente, então que se lavre
esse trabalho com instrumentos intensos, directos e acabados. Ei-lo.
Será
certamente uma experiência recompensadora, para os próprios e para
os privilegiados leitores e testemunhas, de vermos a continuidade de
uma carreira, não apenas do pai-escritor José Jorge Letria e do
filho-ilustrador André Letria, mas da sua confluência: a de dois
autores que, a fortiori, desenvolvem uma intimidade que os
incita a criar melhor. Se virmos o percurso de uma forma
taxativa e redutora, veremos como se encontra no livro sobre o
Benfica um titubear de públicos e estilo, em Se eu fosse um livro
o encontro feliz de uma forma equilibrada de verdadeira co-criação,
mas ainda incerta, e agora um corolário perto da perfeição.
A
guerra é um livro maior. Não se trata de algo que se respigue
somente pela acumulação de prémios, que interessará em termos de
circulação, venda, publicitação, mais que bem-vindos, mas pela
eficácia com que nos interroga na leitura. Pelo modo como obriga a
desdobrar o lacónico texto em um massivo tratado de filosofia
condensada, um conjunto de aforismos que tinem prolongadamente, de um
spread para o outro, e do livro para fora dele. Pela maneira
como as imagens convidam a uma leitura ainda mais lenta, quase
contemplativa, mesmo que isso nos faça cair num perigo melancólico
e até próximo do grande esbirro central da pequena narrativa.
A
parte visual é, como não podia deixar de ser, a de leão do livro,
ficando por responder somente quais as responsabilidades dessa lavra.
Se a física poderá recair nas mãos de André Letria, talvez
conceptualmente tenha nascido do diálogo dos autores. A assinatura é
dupla, e nela fiquemos. Assim sendo, importa assinalar como este
livro apresenta verdadeiros jogos de metáforas visuais excelentes na
sequencialidade, em que se vão originando, transformando, ganhando
novas funções ou valências ou poderes actanciais à medida que os
“episódios” de sucedem. Se uma figura marcial ganha uma espécie
de protagonismo (uma espécie de Monsieur Choc), para que possa arcar
nos ombros a responsabilidade dos crimes que comete e a violência a
que convida, são os minúsculos animais que rastejam e as imensas
aves que rasgam os céus que assumem a quota-parte das condições
necessárias, a montante e a jusante, do poder que aquela figura
exerce.
As
imagens espraiam-se em as aguadas de tons soturnos, térreos,
fuliginosos, ictéricos, como se se tratasse de uma doença do papel,
ou as ilustrações se fizessem acompanhar do peso da realidade que
quer representar. Não há paixões aqui. Nem o vermelho do sangue, o
laranja e o amarelo das deflagrações, os riscos azuis das
saraivadas e exaustões balísticas, ou os pequenos padrões
coloridos que fazem das bandeiras e pavilhões tribais o emblema do
ódio. A guerra não nos oferece uma nota nem-pensante de
esperança, não apresenta “soluções”, não nos passa mão no
pelo. É um livro austero. Não serve para ser lido em sessões de
Sábado soalheiro à tarde, nem na caminha antes de dormir
descansado.
É
um livro para ler em voz alta, de pé, ora com um tom cabisbaixo ora
com um grito de raiva. É, na verdade, um livro a combater.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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