4 de julho de 2019

A guerra. José Jorge Letria e André Letria (Pato Lógico)


A expressão “para a infância” deverá, cada vez mais, libertar-se do seu juízo de valor associando-o a produções que significam tão-somente um entretenimento formulaico, protegido, incontroverso e afastado das mesmas preocupações que regem (regeriam? Deveriam reger?) o “mundo dos adultos”. E, cada vez mais, são livros como A guerra que contribuem para essa alteração. Mais, se acreditarmos que a formação cognitiva, intelectual, cultural e para a cidadania das crianças começa “de pepino”, genuinamente, então que se lavre esse trabalho com instrumentos intensos, directos e acabados. Ei-lo. 

Será certamente uma experiência recompensadora, para os próprios e para os privilegiados leitores e testemunhas, de vermos a continuidade de uma carreira, não apenas do pai-escritor José Jorge Letria e do filho-ilustrador André Letria, mas da sua confluência: a de dois autores que, a fortiori, desenvolvem uma intimidade que os incita a criar melhor. Se virmos o percurso de uma forma taxativa e redutora, veremos como se encontra no livro sobre o Benfica um titubear de públicos e estilo, em Se eu fosse um livro o encontro feliz de uma forma equilibrada de verdadeira co-criação, mas ainda incerta, e agora um corolário perto da perfeição.

A guerra é um livro maior. Não se trata de algo que se respigue somente pela acumulação de prémios, que interessará em termos de circulação, venda, publicitação, mais que bem-vindos, mas pela eficácia com que nos interroga na leitura. Pelo modo como obriga a desdobrar o lacónico texto em um massivo tratado de filosofia condensada, um conjunto de aforismos que tinem prolongadamente, de um spread para o outro, e do livro para fora dele. Pela maneira como as imagens convidam a uma leitura ainda mais lenta, quase contemplativa, mesmo que isso nos faça cair num perigo melancólico e até próximo do grande esbirro central da pequena narrativa.



A parte visual é, como não podia deixar de ser, a de leão do livro, ficando por responder somente quais as responsabilidades dessa lavra. Se a física poderá recair nas mãos de André Letria, talvez conceptualmente tenha nascido do diálogo dos autores. A assinatura é dupla, e nela fiquemos. Assim sendo, importa assinalar como este livro apresenta verdadeiros jogos de metáforas visuais excelentes na sequencialidade, em que se vão originando, transformando, ganhando novas funções ou valências ou poderes actanciais à medida que os “episódios” de sucedem. Se uma figura marcial ganha uma espécie de protagonismo (uma espécie de Monsieur Choc), para que possa arcar nos ombros a responsabilidade dos crimes que comete e a violência a que convida, são os minúsculos animais que rastejam e as imensas aves que rasgam os céus que assumem a quota-parte das condições necessárias, a montante e a jusante, do poder que aquela figura exerce.

As imagens espraiam-se em as aguadas de tons soturnos, térreos, fuliginosos, ictéricos, como se se tratasse de uma doença do papel, ou as ilustrações se fizessem acompanhar do peso da realidade que quer representar. Não há paixões aqui. Nem o vermelho do sangue, o laranja e o amarelo das deflagrações, os riscos azuis das saraivadas e exaustões balísticas, ou os pequenos padrões coloridos que fazem das bandeiras e pavilhões tribais o emblema do ódio. A guerra não nos oferece uma nota nem-pensante de esperança, não apresenta “soluções”, não nos passa mão no pelo. É um livro austero. Não serve para ser lido em sessões de Sábado soalheiro à tarde, nem na caminha antes de dormir descansado.



É um livro para ler em voz alta, de pé, ora com um tom cabisbaixo ora com um grito de raiva. É, na verdade, um livro a combater.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

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