12 de abril de 2023

Mar Negro. Ana Pessoa e Bernardo Carvalho (Planeta Tangerina)

O novo livro e parceria entre Pessoa e Carvalho retoma alguns dos ingredientes básicos de Desvio, mas relança-os de um modo distinto. Também aqui temos uma história concentrada num período curto, o “fim do Verão”, que em si mesmo serve de sinal a uma transição temporal a vários títulos. Também temos, como protagonistas, naturalmente, adolescentes, na recta final e difícil da primeira idade adulta, cujo cruzamento os obriga a procurar, através de acções e de diálogo, o que existirá em comum que os aproxime de alguma maneira, e o que essa mesma aproximação dirá de forma a acentuar e consolidar as suas próprias individualidades.
Se a adolescência pode ser descrita de alguma maneira, as melhores palavras serão sempre “confusa”, “insegurança”, “emocional”, “contraditória”, e quejandas crises. Na verdade o mesmo poderia ser aplicado a toda a vida humana, é certo, mas digamos que nesses anos (dependendo das circunstâncias, mas os primeiros estertores começam pelos 12 anos e os últimos deveriam ter lugar pelos 19, 20... conditions may apply) os sintomas estão mais à flor da pele e sujeitos a flutuações drásticas de temperatura.

Mar Negro tem como protagonista a jovem Inês, que está a terminar o secundário, e se encontra num trabalho de Verão, tomando conta da copa de um café à beira de uma praia relativamente movimentada, a qual serve uma população urbana, de passagem. Um primeiro anel de relações encontra-se com a sua convivência diária com J.P., um jovem efusivo, com laivos de sedutor e brincalhão, que não deixa uma única oportunidade para poder tentar derrubar o que ele entende como “muros”. Uma segunda etapa prende-se ao facto de se dar um acontecimento terrível, a saber, a morte de uma jovem pouco mais velha que Inês, ali mesmo na “sua” praia, que costumava ser cliente do café e, por várias razões, se tornará uma espécie de território-fantasma no qual ela entrará. O facto dessa outra jovem se chamar Inês é apenas o início dessa entrada. Finalmente, um terceiro enleio será com o Bruno, namorado viúvo da outra Inês, Polvo de apelido, e com isso enfatizando uma metáfora clara de envolvimentos – há muitos tentáculos prendendo-a – e contradições – uma criatura do mar que não nada.


As relações entre cada uma destas partes vai complicando-se conforme entram em jogo, alterando as forças entre elas, e relançando novas configurações. Se Inês mostra alguma resistência em relação a J.P., a notícia da outra Inês baralha a disponibilidade de aproximação da “nossa” Inês, e a relação desta com Bruno baralha ainda mais aquela estabelecida com J.P. Aumentando ainda a complicação destas figuras geométricas sempre móveis, consideremos ainda que não é apenas um triângulo amoroso, uma vez que a “Inês-fantasma” é um ângulo que tenta transformar aquela relação num bloco rectangular e inamovível e irreconciliável. Mais ainda, há um outro triângulo, cujo vértice é a amiga Vera, que serve de espelho ao de Inês, tanto no sentido de espaço para reflexão como como superfície que inverte os agenciamentos.


Como é consabido da escrita de Pessoa, o factor “o que os adultos pensam” não é de todo presente, e Mar Negro explora o diálogo directo entre os jovens. Havendo espaço para os adultos intervirem, é bem menos do que em Desvio, e poderíamos até analisá-lo como relativamente livre, descontraído, mas é quase irrelevante. Na verdade, faz-me recordar alguns dos ingredientes da melhor parte dos filmes de John Hugues (menos as dimensões mais problemáticas destes, como os estereótipos raciais, a agressividade sexual q.b. e mid brow bourgeoisie): a capacidade de empatizar com os jovens. Afinal de contas, um dos grandes problemas no diálogo adultos-jovens – e isto podemos afirmar quer a partir do empirismo diário, quando fomos adolescentes ou agora parentes de adolescentes, ou de considerações mais balizadas da emergência dos próprios conceitos de “juventude” e das associadas “sub-culturas”, conforme as obras de um Jon Savage ou Dick Hebdige [reparo agora que já o havia citado quando do outro livro] – recai sobretudo sobre os primeiros, já que são estes quem atravessou já aquela experiência. Não deveriam, portanto, sequer pôr de lado a capacidade que têm de empatizar, por dentro, esses mesmos sentimentos atropelados. Por qual razão nos vamos esquecer, ou pior, disfarçar e mentir, essas mesmas experiências confusas?

Essas “culturas” são usualmente o mais localizadas possível, quer em termos de espaço – ainda que hoje se expanda e fragmente, paradoxalmente – quer em termos de tempo – uma inscrição numa “etapa” determinada é, passe o pleonasmo, determinante para a identidade. Não deixa de ser surpreendente, então, que que os autores tentem, de certo modo, evitar entrar em especificidades que datassem o livro de alguma maneira. Não existem expressões de calão, por exemplo, salvo um “fogo!” ou uma frase em inglês. Não se citam bandas, não há t-shirts com referências, não se comprometem as personagens em espaços particulares (ao contrário de um Companheiros da Penumbra, que se pretende localizar em absoluto, até por envolver uma dimensão autobiográfica).


Nessas expressões culturais é onde se encontra o húmus da personalidade crescente. E a contestação ao que, na óptica dos adolescentes, consideram a normatividade adulta. Basta pensar em questões da música ou de modas (de roupas a comportamentos, hobbies à linguagem). Sinceramente, se existir algum intervalo de compreensão nessas áreas entre adolescente e adultos... óptimo. Significa que os adolescentes estão a criar um espaço que lhes é próprio, exclusivo e poderão negociar consigo mesmos, sem intervenção parental, os problemas que a eles lhes diz respeito. Nos tempos que correm, há muitas dicas ou esforços para sermos todos “amigos” e “compinchas”, partilhar hobbies e gostos, mas é preciso não misturar águas e deixar-lhes um espaço que lhes pertença sem a nossa presença, ou sequer sombra. Se os adolescentes souberem que, imediatamente fora desse perímetro que lhes é próprio, todas e quaisquer necessidades estão asseguradas, perfeito. Mas não temos de tentar entrar nesse território específico. Parece-nos que os adultos, como as vozes em Peanuts, têm uma presença diagonal em Mar Negro, suficiente, desenhando uma larga circunferência na qual vemos a liberdade dos movimentos, pensamentos, decisões e enfrentamentos de Inês, J.P., Bruno, Vera...


Já como acontecia em Desvio, toda a acção parece desenrolar-se numa área geográfica que se estenderia da Costa ou da Linha a Lisboa, se bem que neste livro a presença da FBAUL cria um troço de referencialidade mais forte, até em termos de correcção visual. Mas é secundária essa referência, pois poderia ser noutra grande cidade do país com certa proximidade à praia, com transportes suburbanos, espaços de convívio de franchises, e serviços médios para jovens burgueses. Este “apagamento” pode ser visto de dois modos, talvez até com dois juízos de valor contrários, uma vez que tanto se pode exaltar a sua ânsia de universalidade como a angústia de um desagregamento, desejando, em parte, um maior compromisso específico ao peso da realidade circundante. São estratégias de comunicação que caberá aos leitores julgarem, conforme as suas preferências.

A dimensão visual do livro continua naquela qualidade titubeante que garante uma espécie de charme às personagens, e a toda a diegese, compaginável com a narrativa em si. Não podemos dizer que Bernardo Carvalho tenha na sua possa um tipo de domínio ou mestria das expectativas mais clássicas da banda desenhada, nem sequer dos seus princípios estruturais, comunicativos, expressivos. Ele é um desenhador e comunicador visual nato, e portanto vai procurando solucionar cada um dos “trechos”, digamos assim – quase que se poderiam considerar “set scenes”, ora de acções, ora de diálogos, ora de sensações – com livres exercícios de distribuição, com uma clara predilecção por linhas oblíquas e composições angulosas de impacto (por vezes, faz lembrar Richard McGuire). As suas figuras flutuam em termos de homogeneidade, debuxadas com um conjunto de linhas que se aproxima da “colega” minimalista Joana Estrela, por exemplo, mas onde as linhas desta última possuem uma fluidez e candura de uma máxima elegância, Carvalho mantem antes um nervosismo de riscador gráfico. O uso de texturas, sombreados, linhas paralelas, efeitos de quasi-pictogramação torna a leitura destas 300 páginas num processo rápido, natural.


Servirá este livro mais a leitores da idade dos protagonistas, ou aos seus progenitores? Servirá de espelho de recordação aos mais velhos, de encontrar algums pontos em comum, ou antes assegurará a individualidade de cada leitor? Estamos em crer que pela própria natureza das negociações e tensões – que, atenção, são na verdade levadas ao longo de um ritmo tranquilo, de uma respiração introspectiva, e não de melodramas acérrimos – eles possam encontrar um lato espaço para muitos leitores distintos.

Falámos acima da necessidade de haver uma aproximação, diálogo e empatia, sobretudo dos mais velhos pelos mais jovens. Mas, diga-se a bem da verdade que por outro lado, essa empatia e capacidade de escutar tem de passar também pela possibilidade de darmos um passo de afastamento. Isto é, por vezes, há que engolir e saber que pouco importa, da “nossa” parte (esperemos que não seja negativo assumirmos aqui esta identidade de um nós enquanto pais, adultos, educadores, etc.) tentarmos ser compreensíveis ou ouvir. Pouco importa para os teens. E haverá sempre espaço para o fazermos de modo errado, senão lesivo. Todavia, se parte dessa tentativa for dar-lhes para as mãos livros desta natureza... menos mal.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. As imagens foram colhidas da internet, inclusive Facebook e site da editora.

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