9 de abril de 2025

O tempo do cão. António Jorge Gonçalves e Ondjaki (Caminho)

“Um Vietname, dois Vietnames, três Vietnames”. Esta terá sido uma das frases ditas e reditas por Ernesto “Che” Guevara em alguns dos seus discursos e textos publicados, como na Conferência Tricontinental de 1966, sob o signo da então recém-formada Organização de Solidariedade dos Povos da Ásia, África e América Latina. A OSPAAAL trabalhava na busca da criação de um mundo anticolonial, antirracista, mais humano, criado por aqueles que eram vistos como os “deserdados da terra” (frase de Frantz Fanon). Mas, e se a solidariedade, a união e a empatia fossem além das fronteiras do humano? E se se buscasse para além do ser humano essa possibilidade de construção? E se esse além do humano pudesse ser o humilde cão, animal visto como inferior e desgraçado a partir de tantas perspectivas? Sim, pois se o cão é visto como “o melhor amigo do homem”, é também aquele que mais depressa é escorraçado e mal-tratado sem pejo, abandonado e visto como perigoso, pronto a abater.

Este não é um livro histórico, se bem que possamos imaginar que se possa passar por volta de 1964 ou 65, durante a intervenção de Guevara na Rebelião Simba, ao largo do Lago Tanganica. Ou seja, quando da aliança de todos os seus esforços de apoio e contacto com os guerrilheiros africanos na sua luta anti-imperialista e anti-colonial, inclusive com as forças de Guiné-Bissau, Angola e Moçambique, que terá repercussões na nossa própria recepção desta obra, agora, por um escritor angolano e um artista português. O foco, todavia, não se prenderá à grande escala dos conflitos, nem sequer à estrutura histórica abrangente das relações colonizador-colonizado, mas mais alargadas ainda, a uma escala impossível, a um profundidade intraduzível: a percepção ou compreensão mútua entre um homem e um cão. Entre o homem Guevara, com os seus aromáticos charutos, e um cão vadio, chamado, talvez, brevemente, de Jelani (ou “forte”, e dizemos “talvez” pois o cão jamais acusa esse nome), amaciado pelos olhos do “cubano” (Che é argentino, mas é a voz do cão), e o leite por ele oferecido.


Depois de um prólogo nas vozes de ambos os protagonistas, mas quase descorporizadas, segue-se uma cortina de mosquitos, como se a entrada teatral na intriga ganhasse corpo numa materialidade específica àquelas paisagens. Guevara chega à beira do lago, e conhece um cão. As frases de um complementam-se nas do outro. A visão do entorno começa neste, para depois desembocar na daquele. Se se poderia contar, eventualmente, o número de representações de Guevara ou do cão, ou o número de frases atribuíveis a cada qual, a leitura sequencial cria um fluxo sem pausa que vem delir essas possíveis fronteiras de identificação ou protagonismo. Estão num plano de igualdade. De imanência.

As palavras surgem em dois registos, uma letra mais cursiva e outra, também manual, mas em maiúsculas. Ambas estão na primeira pessoa, sendo a primeira do cão e a segunda do próprio Guevara, como já indicámos. Na sua busca pela língua “desportuguesa”, como diz Ondjaki, encontramos uma espécie de fluxo do pensamento, sem tempo, contínuo, quase febril, trazendo a tão característica pesquisa do escritor por um legado devedor tanto ao conto tradicional oral, ao realismo mágico, ou mesmo à fantasia infantil, numa prosa que mergulha e emerge destas várias experiências.

Impresso em folhas de gramagem alta, num brilhante azul eléctrico, e com toda a matéria visual a branco, portanto, não-impressa, mas como “rasgo” ou “ausência” naquela imensa mancha azul, esse outro plano de imanência, podemos vislumbrar tudo isso como breves ilhas interrompendo um largo tecido. Utilizando técnicas díspares, como o que parecem ser cenas de arte popular em grattage, tinta excessiva soprada para criar metástases de linhas semi-descontroladas, ou que escorrem como as “lágrimas” e os “risos” e os “fumos” das personagens, uma aplicação da linha branca que faz recordar correcções, rabiscos, esboços mínimos, e intervenções mínimas, há como que uma espécie de urgência na representação, que nos obriga a focar nas relações. A linha de Gonçalves atinge um paroxismo tal, mas gestual, ancorado na mão, que radicaliza a abordagem que tivera em A Arte Suprema, com Rui Zink, e não tanto a “suavidade digital” dos seus Desenhos Efémeros.


Não estamos propriamente num território de complexidade filosófica de
uma Donna Haraway, em que se procurem “kinships” ou sequer os territórios de “performatividades queer da natureza” de uma Karen Barad. Se houver alguma noção filosófica formal presente neste livro, poderá ser a do devir de Deleuze e Guattari, no sentido em que se procura, verbal e imageticamente, na narrativa, um momento (ou vários) em que homem e cão se encontram numa possibilidade de relacionamento profundo. Não é um processo de “transformação” de um no outro, mas a troca intensa e incessante de elementos das identidades de cada um, num fluxo mutualista. Que tem um ponto de partida e um fim, encerrando-se num “episódio” temporal (conforme o título e o arco narrativo), mas cuja intensidade será para sempre imanente. Num livro, isso significa o poder do próprio livro, a promessa da sua releitura e reexperiência.


Em vários momentos da vida deste espaço de crítica e reflexão se falou de objectos (livros, mas não apenas), que vivem precisamente numa zona indeterminada de várias disciplinas artísticas mais arregimentadas e policiadas nas suas formas. Não quererei re-argumentar novamente pela liberdade desta arte a que chamamos banda desenhada, a qual, sendo arte, tem a liberdade precisamente de se argumentar a ela mesmo pelos mais distintos caminhos, formais e outros. O tempo do cão pode ser chamado de “novela gráfica” sem qualquer entrave. É legítimo e preciso, o emprego desse descritivo. Quaisquer considerações que o vejam “de fora” de um continente são apenas olhares policiais que tampouco poderão penetrar na mutualidade das mudanças, mesmo que momentâneas, ocorrem no coração destas personagens.

Se as frases se complementam, também os rostos e os desenhos todos. A narrativa clara inicia uma dança entre os elementos faciais de Guevara e cão, depois de todos os guerrilheiros e cães, mas em nenhum momento como insulto, mas antes sublinhando a perdição de todos, o abandono, o cansaço, a animalidade que obriga o corpo a ser corpo por sobre qualquer outra possibilidade de ser. O cão, o lago, uma noite, são um momento de respiração e calma para os guerrilheiros. Numa noite tranquila após o ruído da guerra, abrimos outra entrada, para um sonho, dois, três sonhos, que se misturam e englobam, povoado de bailes, festa, alegria, e quem sabe liberdade, fraternidade, igualdade. Não é necessário um só Vietname, entendido como rasgão numa hegemonia que não escuta o deserdado, mas vários que tornem essas vozes e visões passíveis de se expressar e conviver. Como aqui convivem, neste tempo de um pequeno livro.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.


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