A colecção Oleandras é conduzida pelo artista António Jorge Gonçalves (com o selo Noturno Azul), que agora assume o papel de editor, no sentido anglófono da palavra. Estes livros são tão-somente os primeiros casos de uma experiência já prometida de continuar, de livros criados por autoras, de expressão portuguesa, de cariz autobiográfico e que se expressem empregando matéria verbal, organização textual, imagens, sequencialidade e as artes do livro. Banda desenhada, diário gráfico, poesia ilustrada, álbum de textos e desenhos, venham ganhar que corpo ganhem, ou misturem mesmo as fronteiras desses corpos, estes livros estarão unidos por um propósito. O seu primeiro corpo, na verdade, havia sido uma exposição com esse nome, contando ainda com trabalhos de Rachel Caiano e Paula Delecave, mas sabemos que outras autores se avizinharão.
O primeiro volume é da responsabilidade de Liliana Lourenço. Podemos afirmar, num primeiro descritivo, que se trata de um livro feito de poemas e ilustrações. A disposição tipográfica dos textos cria a ideia de serem poemas, e são-no, de rima livre, sem estruturas repetentes, por vezes com títulos individuais, outras vezes desprovidos disso, e embarcando numa grande variedade textual. Mas também poderão ser lidos como breves vinhetas textuais, prosaicas, prendendo memórias, e que apenas na superfície surgem dispostas como versos. Cada “texto”, isolado na sua página, aparece como uma unidade completa, de uma memória, um episódio, uma parte do puzzle. Todos eles tecem, cerzem, passam um fio (estas metáforas não são inocentes) em torno de uma ideia de caderno de memórias, que nasce da infância e vai estendendo-se ao longo da vida. Mas alguns deles derrubam a seta do tempo, para revelar outro tipo de sensações: eróticas, violentas, desagregadas paranóicas, que dizem mais sobre a impressão da identidade que transportamos a cada dia do que uma história linear e empedernida.
Liliana Lourenço tem uma estratégia de representação contínua, reconhecível e consistente: a de figuras humanas, desenhadas a contornos grossos, quase ligne claire, com alguns pormenores físicos, sobretudo do rosto, para se identificarem, e depois com linhas picotadas que lhes dão uma aparência de pequenas bonecas de trapos, nas quais os círculos vermelhos nas maçãs de rosto apenas confirmam a ilusão. Essas “bonecas” (jovens ou adultas, masculinas ou femininas) apresentam-se depois em situações distintas, espaços minimais, em que as acções se reduzem a um ou dois descritivos, de forma a que haja menos ambivalência do que segurança no seu simbolismo. Estamos em crer que algumas imagens já haviam sido expostas, no Instagram, por exemplo, mas desconhecemos se fariam parte desde logo deste “texto final” (não é, de todo, relevante, em qualquer caso).
Se poderíamos dizer que algumas destas imagens funcionam como “ilustrações” claras em relação a uma das memórias (textuais), outras têm relações menos imediatas ou lineares. Como um dos versos indica, “...há episódios que de tão especiais,/só a íris consegue contar e a boca neles adormece” (26). Emergem assim as figuras debuxadas, que abrem espaço a tudo o que há a contar que as palavras não contaram. Ou pelo menos que assinalam o intervalo intransponível entre aquelas e estas, entre o momento desaparecido da experiência e o momento já se desfazendo do agora, entre quem somos e de quem nos lembramos ter sido.
A autora também emprega trabalhos de silhuetas, quer para paisagens quer para personagens, que nos faz recordar, a mais de uma razão, o trabalho de Kara Walker (vejam a menina que nos interroga na página 39 [v. acima]). Naturalmente que podemos estar aqui a ser redutores, aliando uma artista negra a outra, mas estou em crer que essa mesma questão não é de somenos no trabalho de Lourenço, tendo em conta a importância fulcral que a identidade do cabelo, a título de exemplo, assume no discurso de todo o legado contemporâneo da Negritude. E há palavras-chave, descrições de vida e circunstâncias, sinais, que afastam a experiência da narradora da “média burguesa”, “modelar” e, portanto, “cega” em relação a outras identidades, das histórias contadas. Sendo parte principal aquelas que se dirigem ao corpo, suas extensões, derrames, problemas.
Todavia, como esperamos ser inequívocos, não se “reduz” (também é problemático achar que isso é “redução”, não é?) a isso, uma vez que poderíamos chamar Hans Bellmer ou Maurice Sendak à baila, pelo dramatismo do inanimado do primeiro e a soltura da infância selvagem do segundo, ecoando ao longo desta narrativa não-narrativa.
O segundo título da colecção (apesar de ambos terem sido lançados em simultâneo) é de Ana Biscaia, e é fruto do trabalho que a mesma desenvolveu ao abrigo de uma das bolsas de criação literária da DGLAB, que há recente reestruturaram todo esse programa, estando a banda desenhada agora num regime ainda por apurar nos seus pormenores efectivos. Mas esta primeira nota serve tão-somente para demonstrar como a produção de trabalhos de autores, mesmo com larga experiência e valências, pode ganhar com um apoio ao trabalho criativo. Biscaia não tinha um livro tão bojudo, tantas páginas juntos, há largo tempo.
Amanhã é composto, materialmente e regra geral, por três veios: dois deles verbais, sob a forma de pequenos textos, alguns dos quais tipografados como poemas, mas numa linguagem mais rasteira, prosaica, do que aquela esculpida na metaforização de Lourenço. A natureza destes textos parece distinguir-se entre aqueles datados (apenas dia e mês), e que surgem como apontamentos diarísticos, ora compondo um quadro mais ou menos coeso e narrativo ou pelo menos reflexivo, ora mais desagregado e como uma “lista” de observações, gestos ou pensamentos, e aqueles outros, sem data, mais devedores a lembranças e rasgos de memórias, mais ou menos distantes no tempo, coalescidas como que naquela noção que Walter Benjamin apelidou de Denkbild. Isto é, literalmente, “imagens do pensamento”, denotando uma natureza de uma escrita que desafia estas divisões tradicionais de prosa e poesia, diário e sonho, realismo e fantasia, em que as experiências da sensação se vêm mesclar com aportes abstractos e simbólicos, surgindo antes um objecto textual que, na sua concatenação, nos faz eclodir subitamente uma sensação completa no acto de leitura.
Estas páginas mostram muitas das preocupações recorrentes do trabalho de Biscaia, seja a solo ou acompanhada (como nos livros com João Pedro Mésseder). Há também uma curiosa linha, reiterada, de diálogos intertextuais com outras obras ou autores de banda desenhada, ilustração, grafismo ou artes visuais, cuja compreensão poderá iluminar os propósitos, ou pelo menos a instrumentação, da autora. Um desses “assuntos” se destaca, porém. Numa das “bandas desenhadas” que apresenta grelhas e vinhetas com apenas matéria verbal, lemos “um desenho para quê? / para ouvir melhor, para saber onde estão as chaves / para marcar o que é, por princípio, incerto / (porque nunca se sabe) / um desenho para construir o livro”. Um desenho é sempre no presente. Um desenho é sempre certo. Mas é neste fluxo e elos contínuos, ou melhor, descontínuos, que eles se tornam mais fluidos, indeterminados, livres.
Se for sempre esse o resultado dos livros Oleandras, auguri.
Nota: para a aquisição destes volumes, procurem informação aqui.
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