Sobre as circunstâncias originais (no sentido estrito de “origem”) da factura e edição e limitada recepção deste livro em 1973, remeto todos os leitores interessados aos textos dos seus prólogos, assim como à do blog específico desta obra. A leitura de todos estes materiais demonstrará as razões dos temas e ideias aqui debatidos. É sempre um aspecto positivo que, num país que não preza a reedição de livros, inclusive aqueles que vários sectores poderão apelidar de “clássicos”, e cuja política de silêncio afecta sobretudo a banda desenhada (mas não só), se encontrem estes pequenos e esporádicos gestos. Ainda que não me pareçam significar uma reestruturação de mentalidades ou a instauração de novas políticas editoriais. No entanto, a bem do rigor, há toda uma nebulosa erguida em torno de Wanya que me parece discutível.
O primeiro problema surge na cinta em que este livro se vê exposto nas livrarias. Trata-se de mera publicidade, sem dúvida, mas ainda assim leva-nos a pensar. Diz tratar-se de um livro que revolucionou a banda desenhada portuguesa. Mas como é possível revolucionar algo quando não se deixam herdeiros? Falei de reedição, que o é sem dúvida, mas de um livro que não se encontra esgotado. De quando em vez, pequenas ou grandes feiras do livro mostram pequenas pilhas da edição da Assírio & Alvim, de 1973. O facto de não ter esgotado não é suficiente para se entender as razões pelas quais se diz ser um “ilustre desconhecido”, mas é já condição necessária. É verdade que Wanya foi um desses livros que, regularmente, surge no círculo nacional da produção de banda desenhada que se diz serem “pedradas no charco” ou “lufadas de ar fresco”, mas é igualmente um facto que muito rapidamente o charco volta a estagnar e o ar se adensa novamente.
Numa das entrevistas de então (a Vasco Granja), surge-nos de imediato o nome da influência mais imediata, a saber, a do livro Saga de Xam, “realizado por Nicolas Devil” (aqui, uma imagem desse livro), apesar de fruto de uma colaboração de uma grande equipa, publicado em 1967 pelo editor Éric Losfeld (o qual ganhara algum renome junto à intelligentsia francesa pelos seus actos culturalmente subversivos, em prol da literatura e erotismo livre: vide a primeira edição de Emmanuelle). Folhear esse livro é gesto suficiente para entender onde se encontram as afinidades formais e de mote entre um e outro. Poderíamos estender essa associação a praticamente todos os livros que Losfeld editaria por essa altura, pela simples razão de todos eles partilharem toda uma série de elementos idênticos. Estou a pensar no primeiro álbum de Barbarella (1964), de Jean-Claude Forest, os dois primeiros álbuns da personagem Scarlett Dream (1967 e 1972), de Claude Moliterni e Robert Gigi, Pravda, la Survireuse (1968), de Thomas Pascal e Guy Peellaert, Epoxy (1968), de Jean Van Hamme e Paul Cuvelier, Valentina (1969), de Guido Crepax, e Xiris (1970), de Serge San Juan, entre alguns outros títulos. Todos eles partilham a presença de uma personagem principal mulher, ou jovem adulta, livre, belíssima, e cujo exercício de liberdade passa por fazer amor ou deixar-se nua em variadíssimas situações. Pravda, por exemplo, montada numa motocicleta, apenas vestida com as suas botas de cano alto, uns mínimos calções, e um colete de cabedal: é descrição suficiente da “liberdade” dessa mulher.
É acabrunhante, portanto, que se diga que Vânia (há uma discrepância entre o título do livro e a grafia no seu interior) é uma heroína e, para mais, inovadora, quando se verificam elementos que consagrariam o seu contrário. Neste aspecto, também Wanya. Escala em Orongo, segue a linha que havia sido estabelecida nas edições Losfeld, com as suas pretensas heroínas “feministas”. Feminismo feito por homens, é no que dá: a projecção de fantasias masculinas disfarçadas de uma cumplicidade respeitadora. Lobos disfarçados de cordeiros, sem dúvida. Repara-se como, primo, não só não é Vânia quem se defende com sucesso dos “aves-do-desespero”, como acaba por sucumbir à violação de Uhr (que debateremos mais à frente), e nenhuma acção é por ela desencadeada (a não ser pela sua mera presença, como se de um catalizador se tratasse), logo... heroína?; secondo, tal qual Barbarella, Xam, Xiris, e outras que tais, as cenas de acção são mais desculpas para a despir (aos nossos olhos lúbricos, que tornam as situações pouco eróticas em palcos de um erotismo exacerbado), as situações em que se encontra são flagrantes pretextos, pouco encobertos de resto, para permitir o avanço dos temas – mais do que dos episódios e acções - que os autores pretendem debater através do livro, e as composições gráficas, mais do que uma recriação da potencialidade narrativa e legível da banda desenhada (como Crepax havia feito repetidamente, veja-se este exemplo ao lado) são antes confusas, informadas por uma cultura visual, digamos, “alta” (pintura, fotografia, etc.) que ignorando as valências da “baixa cultura” (a banda desenhada) a revisita com a ideia de a transgredir positivamente. É pela existência dessa ignorância que se ergue um obstáculo à ideia de inovação. O facto da personagem ter cabelos curtos é apontado como um dos aspectos inovadores em relação à figuração da personagem. Seja. Mas para além das informações extratextuais acessíveis – Nelson Dias ter-se-ia baseado na sua própria mulher – convêm não esquecer a presença de Valentina de Crepax desde 1965 na revista italiana Linus (que chegava a Portugal), já em si baseada em Louise Brooks, e cujo look seria continuado em Portugal tardiamente por Beatriz Costa. A qual, por sinal, também representou papéis de mulheres com um certo grau de independência, acção e autonomia visíveis, ao contrário de Vânia.
Surgem-se-me aqui dois curtos desvios, em forma de questão. Em primeiro lugar, é natural que me poderão contestar este(s) argumento(s) dizendo, “não era essa a sua intenção”, “não foi essa a sua política”; todavia, não sejamos ingénuos ao ponto de acreditar que por não verbalizarmos ou esclarecermos ou expressarmos in actu uma determinada política, ela não exista em contexto. Mais, tornando-se tão claro haver um propósito político, “engajado”, de crítica social e despertar das consciências, mais ou menos apegados às especificidades do regime vigente em Portugal, essoutra política oculta torna-se mais premente. Isto poder-nos-ia levar longe... Quando a chamada agenda política ultrapassa os valores intrínsecos e estéticos de uma obra, esta sofre as consequências de um peso insustentável; mas quando essa mesma agenda tenta ofuscar outras programações, rompe-se mesmo o cerco. Em segundo lugar, poderá sentir-se essa ténue vontade, tantas vezes repetida, de condescendência para com o que se produz em Portugal, uma espécie de atestado da fraqueza congénita das nossas produções, seguida de uma desmesurada alegria pela sua mera existência. Só que acredito que o crescimento de uma arte, de um artista, de uma pessoa, enfim, não se pode dignificar pela condescendência paternalista e nacional-porreirista (e muito menos patrioteira), mas pela acuidade e gravidade da sua leitura e exame.
Uma leitura outra importante a assinalar é a de Rui Zink, em Literatura Gráfica? (Celta, 1999), uma vez que Wanya é um dos cinco livros das “close readings” da sua tese. Algumas pistas são aí apresentadas, sobretudo as que dizem respeito a um entendimento desta obra como uma mínima transfiguração da sociedade em que se inseria na altura. Só que surgem ainda assim problemas por resolver. Se Izar, o terrível cérebro com olhos que controla a população de Citânia (um dos pontos a favor da associação imediata com um Portugal real), é “um deus que se comporta como um déspota esclarecido: dominou o povo e retirou aos indivíduos vontade própria, mas fê-lo para os salvar da destruição, mantendo-os nesse estado de hibernação durante vários séculos, mortos-vivos, é certo, mas também imortais” e “Tendo em conta que este texto foi publicado num país com um regime particularmente autoritário (...) as implicações políticas de uma leitura são tentadoras, até pela semelhança fonética entre Izar e Salazar” (pág. 156 do livro citado; presumo que se deveria entender antes aqui “as implicações de uma leitura política”?), então a leitura de um suposto Salazar consciente da mágoa e opressão está na ordem do dia, o que não me parece ter sido o caso, tal qual e muito menos a abnegação com que o regime – a Primavera Marcelista – se sacrificaria para bem do povo. Que a “opressão” tenha sido para “bem” do povo de Citânia não nos restam dúvidas, mas esta aceitação passiva implicará, em nós, leitores, a aceitação dessa mesma via. Mais uma vez, não há jamais não-acção política.
Pouco tempo depois, uns dois anos, de Wanya ter sido publicado, surgiria a revista Visão, que se aguentaria um ano, com muitos autores que se tornariam uma espécie de marco, mais consolidado, do espírito dos tempos e os quais exerceriam, de facto, algum peso e influência sobre a banda desenhada a vir. Apenas para citar um nome, por razões que serão claras aos seus leitores, Vítor Mesquita foi o autor de um álbum, relativamente próximo dos temas de Wanya, atravessando territórios contíguos, mas com uma eficácia bem superior: estamos a falar, claro, de Eternus 9. Independentemente dos gostos, não se pode negar que este livro (pré-publicado na Visão), sim, marcou um ponto de viragem, influenciando uma geração, quer directa (Diniz Conefrey, que colaborou com Mesquita) quer indirectamente (a reconstrução utópica da cidade de Lisboa de Nuno Artur Silva e António Jorge Gonçalves nos livros de Filipe Seems encontra em Eternus 9 uma das raízes, seguramente). No entanto, não me parece existir um trânsito directo entre os autores de Wanya e o grupo da Visão.
Em várias ocasiões deparo com a situação de pessoas formadas em determinada disciplina artística – dita da “alta cultura” – que resolvem visitar a banda desenhada como um território de contacto-e-fuga (ou o popular “toca e foge”). Isto é, considerando a banda desenhada algo de “interessante” para se consumir em termos de superficialidade, e cujos elementos se refiguram para a elaboração de uma “arte maior”. As mais das vezes essa posição implica que a banda desenhada é desprovida de pensamento e de uma capacidade autónoma de experimentação e revalidação das suas valências e especificidades, logo, o artista esclarecido está a fazer um favor em “reinventar” esse modo “inferior”. É claro que isto só é possível dada a ignorância dos primeiros em relação a uma desenvolta e complexa e ampla história da banda desenhada e ilustração, pois caso a soubessem, entenderiam que sempre existiu um movimento interno de reformulações, de reestruturações, de fulgurantes maravilhas e invenções desenvolvidas no seio da banda desenhada. São raros os artistas das “altas artes” que compreenderam de facto os ágeis e robustecidos caminhos da banda desenhada, quer os narrativos quer os visuais, bebendo dela para criar algo de um encontro feliz. Roy Lichtenstein, o exemplo de sempre, não foi um deles, fiel à agenda do movimento da Pop Art. Godard, Resnais, David Wojnarowicz, Öyvind Fahlström, sim, podem ser contados como tais.
Como disse atrás, no seu domínio visual, Wanya vive mais sob a influência das artes gráficas – da colagem, da fotografia, da pintura – do que da banda desenhada enquanto território específico, não obstante os autores conhecerem melhor ou pior o que existia então, e fazem-nos crer que sim, que conheciam. No que diz respeito ao domínio da narrativa, há todo um sopro de vontades políticas, de visões, que se colocam no terreno diegético mas sem lhe permitirem qualquer autonomia. A constante voz de um narrador literário externo apenas sublinha essa falta de autonomia; por vezes cai-se na redundância, por outras apenas o texto explicita a confusão visual (o contraponto com Crepax apenas serve para revelar, mais uma vez, que o autor italiano reforçava a especificidade da visualidade da banda desenhada). As imagens não são suficientes para a condução da estória, e o texto explica-as, e mais, fornecendo a dimensão poética que lhe é repetidamente reconhecida, presente pela linguagem elaborada em torno de determinados chavões epocais, quando não de expressões vácuas (pelo que se entende das várias informações, há uma preponderância da imagem sobre o texto mesmo no processo de produção e criação, o que parcialmente explica a inversão da ordem dos nomes dos autores na capa desta nova edição, mas, por uma vez, mais próximo dessa hierarquização). Há ainda uma série de buracos de informação na acção da narrativa, mas cuja vagueza poderá eventualmente contribuir para acentuar a natureza de mito que parece ser seguida, segundo uma outra leitura de Rui Zink. A existência de uma epígrafe, de uma dedicatória – ambas em torno de William Blake, cuja presença se sente igualmente no interior da obra, mormente por via dos nomes e funções actanciais das personagens, informada pela leitura sobretudo dos seus “livros proféticos” – e de episódios a que o investigador português chama de “cantos”, levar-nos-á a um cotejamento com o género literário mitificador por excelência, a saber, a epopeia. Podemos mesmo ver o início da viagem interestelar de Vânia como sendo in media res e, juntamente com as duas analepses internas, completando-se assim outros elementos do género.
Quando Vânia desperta do seu primeiro desmaio, já na superfície do “estranho” planeta (todos os planetas são estranhos na ficção científica), está amarrada a um poste. É libertada por uma “estranha” criatura, que se parece com um yeti, a qual procede à tentativa de violação da “heroína”. Esta defende-se, mas debalde, e a criatura consegue levar a sua avante. E no espaço de duas pranchas, e o que podemos ver como quatro “vinhetas” (sem filamentos), essa mesma criatura torna-se um homem – o texto explica-nos que rejuvenesce – graças à “vontade satisfeita, daquele subtil apaziguamento”. Que violar uma mulher seja subtil, deixo a questão em aberto. Que ela não demonstre qualquer raiva para com Uhr (aprendemos o seu nome pelo próprio), mas sim até alguma condescendência, só o posso entender como crença no mito psicologista (culpas as quais mal-atribuídas a Freud) de que todas as mulheres desejam ser violadas e que os homens se sentem sempre rejuvenescidos aquando do seu exercício de poder sexual: afinal, conquista-se, penetrando, um novo território.
Essa violação acontece uma segunda vez, ainda que metafórica e voluntariamente. Depois de atravessar os “arquivos do silêncio” cujas “grandes pantalhas” mostram a violenta história da civilização perdida de Orongo, a sua queda e renascimento sob os auspícios de Izar, a “última ordem” do tirano é que Vânia “conte ao povo de Loss a história do seu mundo”. Há uma troca de informações, ambas analepses, dos povos a que cada um dos narradores internos pertence, os computadores de Citânia e Vânia. As informações são extraídas da e com a heroína mais uma vez numa posição passiva, como que exposta (o “dentro para fora”). Independentemente de no fim da narração se escrever “assim falou Vânia”, apercebemo-nos de que parte dessa mesma narrativa foi imagética, um “pensamento vertiginoso”, isto é, sem as rédeas da razão. Abre-se então o espaço narrativo para a história da nossa civilização, em tudo idêntico à estratégia presente na Saga de Xam, quando a protagonista dá finalmente luz ao “híbrido”, a um só tempo espelho do nosso mundo e caminho para a sua transfiguração (psicadélica, pós-verbal, extraterrestre). Que esse episódio, “O rosto dos dias”, seja introduzido por dois pontos que se abrem ao domínio visual que vem a seguir e não a uma mera presença do texto verbal, é interessante, mas também ele devedor da experimentação da banda desenhada psicadélica francesa, e perfeitamente inserido na experimentação “esquecida” da banda desenhada portuguesa, se nos recordarmos dos parêntesis dos Apontamentos Sobre a Picaresca Viagem do Imperador de Rasilb de Bordalo Pinheiro.
No único momento em que parece que Vânia tem algo a dizer ou fazer, o narrador apressa-se a corrigir tal ideia: “Vânia está presente em todas as grande decisões da nova comunidade: sua experiência parece ser um sucedâneo da prologada dependência de Izar” (meu sublinhado). Ainda não é tempo para a “heroína” ser levada a sério pelo seu próprio valor. Depois de um massacre ou genocídio ecológico – as Aves, mesmo que sendo “do desespero”, não deixam de ser animais, criaturas vivas, dignas de alguma defesa ética, pressuponho, o que põe em risco, acrescendo-lhes os outros elementos debatidos, o valor deste livro enquanto “mensagem pacifista de carácter universal” – Vânia parte “já a caminho de outros limites”, onde, presume-se, possa contactar outros “estranhos” povos. E não precisa de fazer nada, basta-lhe ser e deixar-se ir... Esses limites esgotar-se-iam nesse primeiro livro (salvo uma história curta, que desconheço). Quiçá porque a heroína esgotara a sua capacidade revolucionária?
O primeiro problema surge na cinta em que este livro se vê exposto nas livrarias. Trata-se de mera publicidade, sem dúvida, mas ainda assim leva-nos a pensar. Diz tratar-se de um livro que revolucionou a banda desenhada portuguesa. Mas como é possível revolucionar algo quando não se deixam herdeiros? Falei de reedição, que o é sem dúvida, mas de um livro que não se encontra esgotado. De quando em vez, pequenas ou grandes feiras do livro mostram pequenas pilhas da edição da Assírio & Alvim, de 1973. O facto de não ter esgotado não é suficiente para se entender as razões pelas quais se diz ser um “ilustre desconhecido”, mas é já condição necessária. É verdade que Wanya foi um desses livros que, regularmente, surge no círculo nacional da produção de banda desenhada que se diz serem “pedradas no charco” ou “lufadas de ar fresco”, mas é igualmente um facto que muito rapidamente o charco volta a estagnar e o ar se adensa novamente.
Numa das entrevistas de então (a Vasco Granja), surge-nos de imediato o nome da influência mais imediata, a saber, a do livro Saga de Xam, “realizado por Nicolas Devil” (aqui, uma imagem desse livro), apesar de fruto de uma colaboração de uma grande equipa, publicado em 1967 pelo editor Éric Losfeld (o qual ganhara algum renome junto à intelligentsia francesa pelos seus actos culturalmente subversivos, em prol da literatura e erotismo livre: vide a primeira edição de Emmanuelle). Folhear esse livro é gesto suficiente para entender onde se encontram as afinidades formais e de mote entre um e outro. Poderíamos estender essa associação a praticamente todos os livros que Losfeld editaria por essa altura, pela simples razão de todos eles partilharem toda uma série de elementos idênticos. Estou a pensar no primeiro álbum de Barbarella (1964), de Jean-Claude Forest, os dois primeiros álbuns da personagem Scarlett Dream (1967 e 1972), de Claude Moliterni e Robert Gigi, Pravda, la Survireuse (1968), de Thomas Pascal e Guy Peellaert, Epoxy (1968), de Jean Van Hamme e Paul Cuvelier, Valentina (1969), de Guido Crepax, e Xiris (1970), de Serge San Juan, entre alguns outros títulos. Todos eles partilham a presença de uma personagem principal mulher, ou jovem adulta, livre, belíssima, e cujo exercício de liberdade passa por fazer amor ou deixar-se nua em variadíssimas situações. Pravda, por exemplo, montada numa motocicleta, apenas vestida com as suas botas de cano alto, uns mínimos calções, e um colete de cabedal: é descrição suficiente da “liberdade” dessa mulher.
É acabrunhante, portanto, que se diga que Vânia (há uma discrepância entre o título do livro e a grafia no seu interior) é uma heroína e, para mais, inovadora, quando se verificam elementos que consagrariam o seu contrário. Neste aspecto, também Wanya. Escala em Orongo, segue a linha que havia sido estabelecida nas edições Losfeld, com as suas pretensas heroínas “feministas”. Feminismo feito por homens, é no que dá: a projecção de fantasias masculinas disfarçadas de uma cumplicidade respeitadora. Lobos disfarçados de cordeiros, sem dúvida. Repara-se como, primo, não só não é Vânia quem se defende com sucesso dos “aves-do-desespero”, como acaba por sucumbir à violação de Uhr (que debateremos mais à frente), e nenhuma acção é por ela desencadeada (a não ser pela sua mera presença, como se de um catalizador se tratasse), logo... heroína?; secondo, tal qual Barbarella, Xam, Xiris, e outras que tais, as cenas de acção são mais desculpas para a despir (aos nossos olhos lúbricos, que tornam as situações pouco eróticas em palcos de um erotismo exacerbado), as situações em que se encontra são flagrantes pretextos, pouco encobertos de resto, para permitir o avanço dos temas – mais do que dos episódios e acções - que os autores pretendem debater através do livro, e as composições gráficas, mais do que uma recriação da potencialidade narrativa e legível da banda desenhada (como Crepax havia feito repetidamente, veja-se este exemplo ao lado) são antes confusas, informadas por uma cultura visual, digamos, “alta” (pintura, fotografia, etc.) que ignorando as valências da “baixa cultura” (a banda desenhada) a revisita com a ideia de a transgredir positivamente. É pela existência dessa ignorância que se ergue um obstáculo à ideia de inovação. O facto da personagem ter cabelos curtos é apontado como um dos aspectos inovadores em relação à figuração da personagem. Seja. Mas para além das informações extratextuais acessíveis – Nelson Dias ter-se-ia baseado na sua própria mulher – convêm não esquecer a presença de Valentina de Crepax desde 1965 na revista italiana Linus (que chegava a Portugal), já em si baseada em Louise Brooks, e cujo look seria continuado em Portugal tardiamente por Beatriz Costa. A qual, por sinal, também representou papéis de mulheres com um certo grau de independência, acção e autonomia visíveis, ao contrário de Vânia.
Surgem-se-me aqui dois curtos desvios, em forma de questão. Em primeiro lugar, é natural que me poderão contestar este(s) argumento(s) dizendo, “não era essa a sua intenção”, “não foi essa a sua política”; todavia, não sejamos ingénuos ao ponto de acreditar que por não verbalizarmos ou esclarecermos ou expressarmos in actu uma determinada política, ela não exista em contexto. Mais, tornando-se tão claro haver um propósito político, “engajado”, de crítica social e despertar das consciências, mais ou menos apegados às especificidades do regime vigente em Portugal, essoutra política oculta torna-se mais premente. Isto poder-nos-ia levar longe... Quando a chamada agenda política ultrapassa os valores intrínsecos e estéticos de uma obra, esta sofre as consequências de um peso insustentável; mas quando essa mesma agenda tenta ofuscar outras programações, rompe-se mesmo o cerco. Em segundo lugar, poderá sentir-se essa ténue vontade, tantas vezes repetida, de condescendência para com o que se produz em Portugal, uma espécie de atestado da fraqueza congénita das nossas produções, seguida de uma desmesurada alegria pela sua mera existência. Só que acredito que o crescimento de uma arte, de um artista, de uma pessoa, enfim, não se pode dignificar pela condescendência paternalista e nacional-porreirista (e muito menos patrioteira), mas pela acuidade e gravidade da sua leitura e exame.
Uma leitura outra importante a assinalar é a de Rui Zink, em Literatura Gráfica? (Celta, 1999), uma vez que Wanya é um dos cinco livros das “close readings” da sua tese. Algumas pistas são aí apresentadas, sobretudo as que dizem respeito a um entendimento desta obra como uma mínima transfiguração da sociedade em que se inseria na altura. Só que surgem ainda assim problemas por resolver. Se Izar, o terrível cérebro com olhos que controla a população de Citânia (um dos pontos a favor da associação imediata com um Portugal real), é “um deus que se comporta como um déspota esclarecido: dominou o povo e retirou aos indivíduos vontade própria, mas fê-lo para os salvar da destruição, mantendo-os nesse estado de hibernação durante vários séculos, mortos-vivos, é certo, mas também imortais” e “Tendo em conta que este texto foi publicado num país com um regime particularmente autoritário (...) as implicações políticas de uma leitura são tentadoras, até pela semelhança fonética entre Izar e Salazar” (pág. 156 do livro citado; presumo que se deveria entender antes aqui “as implicações de uma leitura política”?), então a leitura de um suposto Salazar consciente da mágoa e opressão está na ordem do dia, o que não me parece ter sido o caso, tal qual e muito menos a abnegação com que o regime – a Primavera Marcelista – se sacrificaria para bem do povo. Que a “opressão” tenha sido para “bem” do povo de Citânia não nos restam dúvidas, mas esta aceitação passiva implicará, em nós, leitores, a aceitação dessa mesma via. Mais uma vez, não há jamais não-acção política.
Pouco tempo depois, uns dois anos, de Wanya ter sido publicado, surgiria a revista Visão, que se aguentaria um ano, com muitos autores que se tornariam uma espécie de marco, mais consolidado, do espírito dos tempos e os quais exerceriam, de facto, algum peso e influência sobre a banda desenhada a vir. Apenas para citar um nome, por razões que serão claras aos seus leitores, Vítor Mesquita foi o autor de um álbum, relativamente próximo dos temas de Wanya, atravessando territórios contíguos, mas com uma eficácia bem superior: estamos a falar, claro, de Eternus 9. Independentemente dos gostos, não se pode negar que este livro (pré-publicado na Visão), sim, marcou um ponto de viragem, influenciando uma geração, quer directa (Diniz Conefrey, que colaborou com Mesquita) quer indirectamente (a reconstrução utópica da cidade de Lisboa de Nuno Artur Silva e António Jorge Gonçalves nos livros de Filipe Seems encontra em Eternus 9 uma das raízes, seguramente). No entanto, não me parece existir um trânsito directo entre os autores de Wanya e o grupo da Visão.
Em várias ocasiões deparo com a situação de pessoas formadas em determinada disciplina artística – dita da “alta cultura” – que resolvem visitar a banda desenhada como um território de contacto-e-fuga (ou o popular “toca e foge”). Isto é, considerando a banda desenhada algo de “interessante” para se consumir em termos de superficialidade, e cujos elementos se refiguram para a elaboração de uma “arte maior”. As mais das vezes essa posição implica que a banda desenhada é desprovida de pensamento e de uma capacidade autónoma de experimentação e revalidação das suas valências e especificidades, logo, o artista esclarecido está a fazer um favor em “reinventar” esse modo “inferior”. É claro que isto só é possível dada a ignorância dos primeiros em relação a uma desenvolta e complexa e ampla história da banda desenhada e ilustração, pois caso a soubessem, entenderiam que sempre existiu um movimento interno de reformulações, de reestruturações, de fulgurantes maravilhas e invenções desenvolvidas no seio da banda desenhada. São raros os artistas das “altas artes” que compreenderam de facto os ágeis e robustecidos caminhos da banda desenhada, quer os narrativos quer os visuais, bebendo dela para criar algo de um encontro feliz. Roy Lichtenstein, o exemplo de sempre, não foi um deles, fiel à agenda do movimento da Pop Art. Godard, Resnais, David Wojnarowicz, Öyvind Fahlström, sim, podem ser contados como tais.
Como disse atrás, no seu domínio visual, Wanya vive mais sob a influência das artes gráficas – da colagem, da fotografia, da pintura – do que da banda desenhada enquanto território específico, não obstante os autores conhecerem melhor ou pior o que existia então, e fazem-nos crer que sim, que conheciam. No que diz respeito ao domínio da narrativa, há todo um sopro de vontades políticas, de visões, que se colocam no terreno diegético mas sem lhe permitirem qualquer autonomia. A constante voz de um narrador literário externo apenas sublinha essa falta de autonomia; por vezes cai-se na redundância, por outras apenas o texto explicita a confusão visual (o contraponto com Crepax apenas serve para revelar, mais uma vez, que o autor italiano reforçava a especificidade da visualidade da banda desenhada). As imagens não são suficientes para a condução da estória, e o texto explica-as, e mais, fornecendo a dimensão poética que lhe é repetidamente reconhecida, presente pela linguagem elaborada em torno de determinados chavões epocais, quando não de expressões vácuas (pelo que se entende das várias informações, há uma preponderância da imagem sobre o texto mesmo no processo de produção e criação, o que parcialmente explica a inversão da ordem dos nomes dos autores na capa desta nova edição, mas, por uma vez, mais próximo dessa hierarquização). Há ainda uma série de buracos de informação na acção da narrativa, mas cuja vagueza poderá eventualmente contribuir para acentuar a natureza de mito que parece ser seguida, segundo uma outra leitura de Rui Zink. A existência de uma epígrafe, de uma dedicatória – ambas em torno de William Blake, cuja presença se sente igualmente no interior da obra, mormente por via dos nomes e funções actanciais das personagens, informada pela leitura sobretudo dos seus “livros proféticos” – e de episódios a que o investigador português chama de “cantos”, levar-nos-á a um cotejamento com o género literário mitificador por excelência, a saber, a epopeia. Podemos mesmo ver o início da viagem interestelar de Vânia como sendo in media res e, juntamente com as duas analepses internas, completando-se assim outros elementos do género.
Quando Vânia desperta do seu primeiro desmaio, já na superfície do “estranho” planeta (todos os planetas são estranhos na ficção científica), está amarrada a um poste. É libertada por uma “estranha” criatura, que se parece com um yeti, a qual procede à tentativa de violação da “heroína”. Esta defende-se, mas debalde, e a criatura consegue levar a sua avante. E no espaço de duas pranchas, e o que podemos ver como quatro “vinhetas” (sem filamentos), essa mesma criatura torna-se um homem – o texto explica-nos que rejuvenesce – graças à “vontade satisfeita, daquele subtil apaziguamento”. Que violar uma mulher seja subtil, deixo a questão em aberto. Que ela não demonstre qualquer raiva para com Uhr (aprendemos o seu nome pelo próprio), mas sim até alguma condescendência, só o posso entender como crença no mito psicologista (culpas as quais mal-atribuídas a Freud) de que todas as mulheres desejam ser violadas e que os homens se sentem sempre rejuvenescidos aquando do seu exercício de poder sexual: afinal, conquista-se, penetrando, um novo território.
Essa violação acontece uma segunda vez, ainda que metafórica e voluntariamente. Depois de atravessar os “arquivos do silêncio” cujas “grandes pantalhas” mostram a violenta história da civilização perdida de Orongo, a sua queda e renascimento sob os auspícios de Izar, a “última ordem” do tirano é que Vânia “conte ao povo de Loss a história do seu mundo”. Há uma troca de informações, ambas analepses, dos povos a que cada um dos narradores internos pertence, os computadores de Citânia e Vânia. As informações são extraídas da e com a heroína mais uma vez numa posição passiva, como que exposta (o “dentro para fora”). Independentemente de no fim da narração se escrever “assim falou Vânia”, apercebemo-nos de que parte dessa mesma narrativa foi imagética, um “pensamento vertiginoso”, isto é, sem as rédeas da razão. Abre-se então o espaço narrativo para a história da nossa civilização, em tudo idêntico à estratégia presente na Saga de Xam, quando a protagonista dá finalmente luz ao “híbrido”, a um só tempo espelho do nosso mundo e caminho para a sua transfiguração (psicadélica, pós-verbal, extraterrestre). Que esse episódio, “O rosto dos dias”, seja introduzido por dois pontos que se abrem ao domínio visual que vem a seguir e não a uma mera presença do texto verbal, é interessante, mas também ele devedor da experimentação da banda desenhada psicadélica francesa, e perfeitamente inserido na experimentação “esquecida” da banda desenhada portuguesa, se nos recordarmos dos parêntesis dos Apontamentos Sobre a Picaresca Viagem do Imperador de Rasilb de Bordalo Pinheiro.
No único momento em que parece que Vânia tem algo a dizer ou fazer, o narrador apressa-se a corrigir tal ideia: “Vânia está presente em todas as grande decisões da nova comunidade: sua experiência parece ser um sucedâneo da prologada dependência de Izar” (meu sublinhado). Ainda não é tempo para a “heroína” ser levada a sério pelo seu próprio valor. Depois de um massacre ou genocídio ecológico – as Aves, mesmo que sendo “do desespero”, não deixam de ser animais, criaturas vivas, dignas de alguma defesa ética, pressuponho, o que põe em risco, acrescendo-lhes os outros elementos debatidos, o valor deste livro enquanto “mensagem pacifista de carácter universal” – Vânia parte “já a caminho de outros limites”, onde, presume-se, possa contactar outros “estranhos” povos. E não precisa de fazer nada, basta-lhe ser e deixar-se ir... Esses limites esgotar-se-iam nesse primeiro livro (salvo uma história curta, que desconheço). Quiçá porque a heroína esgotara a sua capacidade revolucionária?
Nota posterior: ainda na continuidade desta aproximação entre as "artes plásticas" e a banda desenhada, em Portugal, talvez a experiência mais forte e, mais importante, sobrevivente (i.e., ainda cria sentidos novos) é O Peregrino Blindado, de Eduardo Batarda. Aí se concretiza e acaba um desses encontros felizes aludidos acima.
13 comentários:
vania näo foi um livro seminal, como tu dizes tem pontos que hoje chocam, mas há que ver a obra no seu tempo, há livros bem mais recentes que chocam pelos mesmos motivos;machismo grunho, em vania esse machismo ainda tem uma certa ignorancencia -inocencia ignorante
mas näo deixa de ser graficamente uma obra soberba e há que dá valor aos grandes desenhadores ,sobretudo quando há tantos autores que parecem ter a mäo cheia de polegares e criticos que näo distingem uma boa espontanea garatuja de um desenho mal-parido ,
( vania näo é o estilo de bd, nem sequer o tipo de desenho que eu hoje gosto,mas gostei quando o comprei em 79 nao podemos confundir gosto pessoal e estética do momento com qualidade) vania apareceu e desapareceu do mesmo modo,näo fez ondas, e a visäo bem ,tornou-se mito era quase uma versäo portuguesa do conceito metal hurlant, com um quase druillet (esse colossal desenhador que influenciou varias geracöes revolucionando estéticas -que seria da estética heavy metal se druillet näo tivesse existido? ) o quase druillet era eternus 9 ...um clone menor que o mestre mas mesmo assim importante , e outros "deja vu" (colegas :näo gosto quando os autores se deixam influenciar a ponto de se verem as influencias, dou muito valor à autenticidade) mas na altura,como ainda hoje as pessoas querem fazer como lá fora se faz,sempre estes estupidos complexos,mas nós ,os que eramos criancas na altura e crescemos com o tintin , a vampirella ,e as bds rascas de terror,quando vimos a visäo entramos em frenesi e fomos logo fazer fanzines ,acreditámos que ia ser possivel viver da bd ,e depois veio o lobo mau, jorge machado dias me perdoe isso sim era um jornal da bd: pujante ,papel mixuruca? e a qualidade dos autores?uauuu !tinha underground made in usa , muitos sul americanos,italianos , e depois? era um jornal portugues, nao podemos ser nacionalistas nem na radio nem na bd senäo passamos fome.
tal como há 30 anos o que prolifera säo os clones, e hoje já näo parece täo possivel( como há 30 anos se sonhava) viver da bd em portugal , existem os meios, é mais facil publicar, mas os generos estilizados e as galopantes mega lojas ,remetem-nos para "vendas guerrilla" -conceito estupido inventado por queques berlinenses que acham o acto de comprar em locais moveis e pseudo piratas muito subversivo ,é a guerrilla betinha para cócós entediados ...
a bd sempre com um pé no comércio e outro na merda , näo tem deixado muita margem de manobra nem aos autores nem aos editores que pretendem inovar...e depois o meio bdéfilo portugues é conservador,careta mesmo , e homeopatico,aqui näo há espaco nem publico ....
e voltando a obras portugesas de outros tempos... eu gostei foi do kollanville ..protopunk do lixo
ah a pravda näo usa calcoes usa apenas um cinto , mas é uma das minhas obras bd favoritas ,a pop art no seu maior esplendor, esqueceste-te da jodelle e da hypocrite
Como escrevi a propósito dos livros da Losfeld, "entre outros", abrindo espaço a esses títulos e mais alguns. Não me interessa a exaustão que, como o nome indica, nos deixa sem fôlego para dizer o que mais importa.
Eu não nego algum grau de beleza do livro, que o tem sem dúvida alguma. O aspecto que me importa apontar é a "centralidade" que lhe dão, e que é historicamente falsa. É verdade que vemos sempre o passado pelos olhos do presente, mas convém aprender a focá-los ainda assim com os melhores instrumentos.
O que dizes do Vitor Mesquita em relação ao Druillet é verdade, e poderíamos, mais uma vez exaustivamente, indicar quem começa como epígono de outro autor para ir depois desenvolvendo a sua própria autonomia. Hergé imitou Saint-Ogan. De resto, quem não imita o quê? Vivemos em cultura, e é-lhe própria a respiração e contaminação, não a separação estanque.
Por outro lado, essa beleza não reside no facto de serem "bons desenhos" (isto é, de acordo com quaisquer princípios julgados válidos por um dogma académico). O que chamas de "desenho mal-parido" pode por vezes encerrar uma verve bem mais profunda e viva que o "bonzinho". Vide Schuiten versus Panter.
Algumas pessoas que conheço, que viveram esses anos mais conscientes (em 1973 eu ainda era um zigoto) contam-me que todos compraram o Wanya, e que foi discutido, mas rapidamente deixado sobre a mesinha de café, precisamente como "coffee table book". Isto é, algo de belo para se ver de quando em vez numa leitura relativamente apressada e de impressões cutâneas.
O que eu fiz foi lê-lo. Esta é a minha leitura. Não serve ela nem para dar "bola preta" nem para dizer que não vale a pena recuperá-lo para a nossa História. Simplesmente para dizer, sim, é curioso, sim, é inovador, sim, foi diferente, mas olha como também sublinha ainda este preconceito ou aquele.
O problema não é o facto de se ser machista ou outro qualquer preconceito (quer dizer, é um problema, mas não o que me importa agora): o que me incomoda é parecer algo que não deveria partilhar essas posições, mas fá-lo; ao passo que dizer que a "Vampirella" - que citas - é machista é tão óbvio que nem merece ser debatido, penso. Ou sim?
Obrigado,
Pedro
näo é preciso ficares assanhado por seres um defensor de garatujas ,eu sou fan de garatujas, sou fazedora de garatujas,entendo o encanto delas ,muitas vezes prefiro esbocos a desenhos completamente acabados mas isso näo impede que maus garatujadores sejam tidos como grandes inovadores, e isso é treta ,a arte do desenho exige algum virtuosismo,pode-se ser artista sem se desenhar grande coisa,tu é que és o académico ,eu sou autodidacta, mas sim , a qualidade do desenho vista em termos académicos está correcta, o desenho é uma arte e como todas as artes exige algum virtuosismo- é importante ,acho uma crueldade e uma injustica denegrir bons desenhadores porque as pessoas estäo fartas de desenho lindinho e certinho,para exaltar alguns garatujadores ...sobretudo aqueles onde se nota uma dolorosa limitacao grafica quando é preciso ir mais além no desenho e o dito(a) näo consegue..
para mim só contam os factos
a arte do desenho é como a musica; é preciso dar ao espaco, ao silencio,um tom, um risco que faca vibrar esse vazio,dar-lhe sentido é aí que se ve quem garatuja bem
como nasci em 1962, sou de um tempo em que havia uma moda unisexo com modelos masculinos para as raparigas , sem o inverso para os rapazes excepto o cabelo comprido , na escola nao liamos autoras, nao falavamos de pintoras nem sequer de filósofas era tudo made by men( e ainda hoje é assim) e era um bocado deprimente levar com todas aquelas visoes daqueles tipos em cima como se nós as mulheres näo tivessemos historia , nem feito nada de importante, nem inventado nada,eles é que eram os activos e nós as passivas, alias as boas qualidades ficaram todas do lado deles ... ainda hoje se fala de coisas feitas por mulheres como se elas fossem de outro planeta , claro, se o genero masculino engloba toda a humanidade a mulher é o que?alien!
a gramatica näo é machista?o parlamento ?os ordenados? e em 1975?...ainda era um pouco pior...
voltando à bd
eu cresci a ler bd em frances , com 12 anos já conhecia o que melhor se fazia na bd adulta ,sim fui uma previligiada antes do tintin e da visäo ja eu tinha bagagem bdefila para poder apreciar muita coisa ..e era uma piteca acho que estás enganado pravda foi um livro central e importante no seu tempo(nao era o meu)
mas tu estás muito centrado no teu tempo e näo tens ideia do que acabas de dizer acerca dos machismos bdofilos, diz-me lá quais eram as bds näo machistas?quais eram os filmes nao machistas ou os livros ?praticamente nao existiam aos olhos deste tempo iam as garotas daquele tempo deixar de ler, ver filmes e etc porque eram todos machistas???!!!!aprendemos a filtrar que diabo, queriamos ver mais, ler mais, saber mais, nao eram machismos que nos iam barrar o caminho certo?
é que nem a bd infantil escapava ...as mulheres no asterix eram todas umas galinhas umas parvas que só pensavam em trapos e em chatear os maridos ,no tintin nao existiam, safava-se calamity jane claro que a vampirela era machista e daí? näo me fez mal ler bd machista deu-me até mais pica e mais consciencia do que eram as mulheres vistas por eles (carrrrrne) e fez-me procurar autoras ,porra falei na vampirela que era para dizer que paralelamente às perolas bd em frances lia tudo o que era publicado em portugal ,sobretudo bds rascas ,o riso mundial...livros de cowboys que paralelamente aos livros de terror ...tinham bons desenhadores,mas pronto ,tu nao estás virado para bons desenhos tens esse direito,eu sou grande apreciadora de bons desenhos -mas como viste no gambuzine sem uma boa historia nao me interessam , se forem clones muito menos
quanto a influencias claro que toda a gente as tem,...mas tem é que se livrar delas para fazer um caminho próprio
ve lá a qualidade e quantidade de mangakas por esse mundo fora e diz-me se a contaminacao é assim täo positiva...
porque é que um bom desenho tem que ser "bonzinho" porque raio é que ser bom tem que ser mau?
é para fazer greve aos bonzinhos que vamos ter de gramar como genios gente que nem o jornal da escola publicaria?
näo sei se essas pessoas da epoca que disseram que folhearam vania ou wanya e näo ligaram, näo seriam os invejosos do costume? se esse livro tivesse vindo de outro país näo estariam todos a esgadanhar-se para serem os primeiros a falar dele?em portugal nada pode ser tomado muito a sério, primeiro porque a inveja é uma doenca nacional e segundo porque alguns artistas portugueses säo sempre apaparicados e outros sempre ignorados sem que ninguem entenda porque...
misterios de um país nubeloso
Excelente crítica, Pedro!
As vezes que peguei nesse livro, acabei por não o comprar por saber que não ia lê-lo. As imagens eram, e continuam a ser, cativantes, mas não contam nenhuma história, e o texto muito menos. É ao fim ao cabo um livro pretencioso. Muito mais importante para a história da ba portuguesa foi o contributo de artistas contemporâneos destes autores, como Carlos Zíngaro, Victor Mesquita e a equipa da revista Visão. Não há necessidade de sermos condescendentes com os autores de Vânia, quando há tantos outros a merecer um olhar retrospectivo sobre a sua obra.
Cara T.G., não queria deixar de responder ao teu segundo comentário, mas confesso que não sei por onde começar.
Em primeiro lugar, não fiquei assanhado, e como conheço o teu trabalho, posso tentar imaginar de que lado da barricada estás, naturalmente. No entanto, não quero jamais deixar criar mal-entendidos, muitos menos neste espaço que dá azo a mais que muitos... Logo, não tanto corri em defesa como me prontifiquei a esclarecer uma posição.
Não subscrevo o que dizes da inveja, pois se bem que é uma verdade - ademais, subscrita por um filósofo da nossa praça -, não a associo às pessoas que citei ainda que não nomeei. Não se trata de estratégias de silêncio da minha parte, trata-se de pertinência, pois não estamos num tribunal. "Lá fora" seria o mesmo, ainda que mais esbatido, porque onde há aqui um apreciador, há "lá fora" um pouco mais. Esse "lá fora", em todo o caso, deverá ser entendido como ou Estados Unidos ou França, porque não seria no México ou no Japão que "coisas estranhas" ganhariam ímpeto e sucesso... Mais, trata-se de discernimento. Se o livro não vendeu, não sei quais as razões, é preciso perguntar a um sociólogo que se debruce sobre o fenómeno da leitura e dos livros, que me parece se alterou radicalmente desde o 25 de Abril. De resto, o desiquilíbrio da atenção para com a banda desenhada nos nossos dias parece-me mais sustentar este livro do que o seu contrário. Subitamente é que foi "descoberto"? O Rui Zink havia-o utilizado na sua tese, existia/existe ainda a circular em feiras do livro... É preciso a Gradiva editá-lo para de repente se tornar "um marco"? Onde estava essse "marco" até agora? A reescrita e reabertura da História é um imperativo intelectual e, mormente, na história de uma arte, mas é preciso fazê-lo com zelo e discernimento, repito-o.
Há ainda toda uma série de questões que colocas que me parecem deslocadas. Por exemplo, o que dizes dos mangakas é falso. Sim, há de facto uma panóplia de maus exemplos de "contaminação", mas emerge igualmente um número substancial de coisas interessantes e boas e sustentáveis (e de parte a parte, pois há mangakas influenciados por um certo "ar ocidental"); a cultura é feita de polinizações, e se o Van Gogh não tivesse conhecido alguns dos mestres do ukiyo-e, havia sido algo diferente no seu percurso.
O que me mais alerta a atenção em relação a "Wanya", não obstante o seu inegável valor visual, mais que estético - e superficial, pois não se o emprega na linguagem da banda desenhada que encerra -, é o facto de apresentar personagens “feministas” que mais valeriam ser apelidadas de “fêmeanistas”, pois são apenas projecções masculinas do que se pensa/deseja/etc. Repito, que a Vampirella ou as representações das mulheres nas bandas desenhadas de, por exemplo, a Super-Mulher ou Diabolik, apresentem algo machista, acho que é claríssimo como a água. Logo, os instrumentos de desconstrução não são muito necessários, bastará um pau. Nestes casos que citei no artigo, é-se bem mais subtil.
Por outro lado, parece-me que há nas tuas palavras uma pouco velada inclinação nostálgica para com esse(s) tempo(s), que me parece obfuscar uma atitude desapaixonada para com a leitura, crítica, atenção, desta e de outras bandas desenhadas.
Em suma, ainda bem que esse livro está disponível numa edição mais cristalina. Comprem-no, leiam-no, discutam-no. E agora procurem fomentar uma política sustentável e inteligente de reedição de grandes autores de banda desenhada em Portugal. Para além dos citados por "Diário Rasgado", acrescentaria o nome de Isabel Lobinho, por exemplo.
Obrigado, Marco "Diário Rasgado" Mendes, pelas palavras.
Pedro
a web 0,2 vulgo plataformas de comunicacäo , blogs,my space etc é excelente para o karate verbal, infelizmente escrevo de enxurrada , sem reler( porque senäo volto atras e apago tudo) e passo por cima das virgúlas, vou tomar mais atencäo é seca ler um texto mal virgulado
näo sou do tipo nostalgico,näo acho que esses tempos foram maravilhosos (f...)nem ricos como hoje em termos de bd, gostava era de falar mais do tema bom desenho (com ou sem pimenta) versus garatuja(com ou sem alma)
vou pegar em alguem fora de portugal , pois näo quero que nenhum artista seja prejudicado mesmo que na minha opiniäo faca cagadelas de pássaro, se as conseguir vender,é bom .
por exemplo jule k de hamburgo fenomeno de popularidade galopante embora ninguem saiba porque
(é täo mau que se torna giro ??)
marco mendes é um grande desenhador e conta boas historias ,fazia falta na cena fanzista um tipo como ele se fizer um livro que eu compro logo, ou troco
o que fez de van gogh um grande artista foi a dor de alma ,mais do que as influencias dos japoneses aliás, alguns dos seus japonesismos säo muito kitsch
Bom, espero que não tenhas compreendido que tenha reduzido o Gogh APENAS aos toques de japonesismo... Se for assim, tenho que esticar todas as frases com "conquantos" e "poréms".
Não sei que tipo de sucesso terá a Jule K, uma vez que não conheço o seu trabalho, mas o estilo recordar-me-á o Beavis & Butthead do Mike Judge, fenónemo bem mais fácil de explicar pela cultura em que se inseria. Faz-me mais espécie haver fãs do Dilbert ou da Cathy. Esse é um tema tão bom como outro qualquer e tão enfadonho. Não me coloco como defensor ou paladino nem de uma coisa nem de outra. Desenhos à la Academie podem servir contos que nos puxam pelos nervos mais profundos, como o faz Fabrice Neaud, como podem ser incríveis mas desbaratados, vide Frank Hampson e o seu Dan Dare. E as garatujadas podem servir para elevar-mo-nos a obras irritantemente avassaladoras, como o fez Mark Beyer, como apenas para encher chouriço (abstenho-me de exemplos). E, por favor, dispenso mais exemplos, pois estes bastam, não me apetecem listas.
O que me importa, sempre importou, e cada vez mais importa e com exactidão, é procurar encontrar o equilíbrio do modo do cruzamento dessas mesmas linguagens gráficas - cujo número exacto é milhentas - com o que se pretende transmitir na banda desenhada em particular.
Sim, Marco Mendes fazia falta, como fazem falta TODOS os bons autores, que deveriam estar sempre na nossa mente, e num permanente diálogo. O Marco não se chateia nada se eu disser que não acredito em Messias.
É tudo.
Pedro
Mais um crítico - e uma éscrita crítica - que dá largas provas de não apreciar banda desenhada ou, poelo menos, de a nãoentender, seja de um modo académico ou intuitivo: senhor Pedro Moura, em que parte do seu texto (parágrafo, linha, palavra, demonstra ou prova que aquilo que merece a sua apreciação se trata de uma banda desenhada? Um leigo podia fácilmente pensar que se referia a um romance, um ensaio, um filme... O debate segue-se dentro de momentos...
P. S. - Identificar-me-ei mais á frente, se "isto" merecer debate.
Caro último anónimo,
Não entendo essa sua atitude. O prometer-me que revelará a sua identidade esconde a ideia de que se trata de alguém cujo nome, por si só, seria o suficiente para causar algum tipo de impressão e fascínio, como autoridade. Não nego que o possar ser, mas não me vou colocar em adivinhações. Parece-me, porém, que seria bem mais inteligente, com todo o respeito, entrar em diálogo comigo de um modo imediatamente aberto e honesto.
Quanto ao seu comentário, desconheço se acompanha ou não este blog, mas estou em crer que não. Não me sinto na obrigação de repetir ideias e posições em cada um dos posts deste blog, pois parto do princípio que os seus leitores sê-lo-ão relativamente habituais, pelo que depreendo estarem familiares com os instrumentos analíticos e críticos empregues nas leituras das bandas desenhadas. Assim sendo, não aceito de modo nenhum o que diz do meu "desconhecimento", e apenas revela que V. Exa. não me costuma acompanhar.
Espero que sim, que continue a discussão, com todo o gosto e prazer. Quiçá aprenderei algo mais, muito mais, consigo.
Disponha,
Pedro Moura
Eu comprei esse Album qunado saiu.
È uma desenho tipo preto no branco a tinta naquim. Eu tenho-o, mas aonde?
Caro Júlio,
Não estará naquelas caixas com os livros escolares dos miúdos, que se guardaram na arrecadação da casa de praia?
É procurar... :)
Pedro
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