A Taschen começou a sua vida editorial precisamente como editora de banda desenhada, toda uma série de autores (então contemporâneos) Tramber e Jano, Ben Radis, Serge Clerc, Yves Chaland, Daniel Torres, Martin Veyron, mas igualmente dedicando-se aos territórios do erótico com os irmãos Varenne, o Ranxerox de Tamburini e Liberatore, Wally Wood, Guido Crepax, logo, estes últimos gestos – isto é, a edição da obra de banda desenhada de Tom of Finland, a da obra de Eric Stanton (famoso autor de bandas desenhadas eróticas cujo fetiche primeiro é a humilhação masculina às mãos de femmes – literalmente, por vezes – fatales) e ainda o novo (e caríssimo!) Robert Crumb's Sex Obsessions - podem ser vistos como uma forma de revisitar as origens ou de fechar um ciclo ou de repesar a vida, etc.
A edição da banda desenhada do finlandês Touko Laaksonen, mais conhecido como Tom of Finland, já havia sido alvo de uma edição, numa pequena caixa de cinco volumes, também com a colecção completa da revista de banda desenhada Kake, havendo publicado 26 números entre 1968 e 1986, num formato “de bolso” equivalente à Gina ou à Weekend Sex, para não contrastar com a família de publicações pornográficas. Tratavam-se de revistinhas de uma vintena de páginas, com um desenho por prancha, usualmente sem texto (ainda que surja esparsamente uma onomatopeia, uma fala), e em que o artista revelava o seu virtuosismo em termos de iluminação, anatomia, movimento e torção dos corpos, as texturas dos tecidos e peles, quer a lápis e carvão, quer por vezes a tinta, e tudo, tudo, subsumido ao programa da excitação sexual: porno. Este é um só volume, de mais de 700 páginas, coleccionando toda as aventuras do protagonista, que vemos na capa, Kake, um Übermensch ultra-sexuado, que alimentaria as páginas da revista homónima, e as fantasias dos seus leitores.
É curioso como o Erotismo, usualmente na banda desenhada – modo repetido nos estudos dedicados ao tema, fanzines que reúnem trabalhos, exposições públicas, etc. -, é confundido com apenas uma das suas formas: as fantasias heterossexuais masculinas em torno de mulheres praticamente dispostas a qualquer ataque sexual da parte dos homens. Raramente se encontram experiências outras, de mulheres comandando o leme (ou se o comanda, é para sublinhar as fantasias masculinas, de resto, como no caso de “lésbicas para satisfação masculina”), ou de fantasias homoeróticas, estas as mais das vezes votadas ao silêncio da parte daqueles que mais pugnam pela discussão do “erotismo visível”, “aceitável”, etc. Mas, do outro lado da barricada (gostaria que não existissem estes termos bélicos, mas infelizmente há ainda combates a fazer), surgem muitas vezes autores com obras surpreendentes, poucos, mas de resto, numa percentagem idêntica à daqueles que, no interior do erotismo normativo, conseguem atingir um outro patamar de profundidade com as suas obras (Varenne, Crepax?): veja-se o exemplo de Nazario. Quanto a autores que, no domínio da autobiografia ou autoficção), exploram as crises e combates necessários da homossexualidade no mundo, criando ao mesmo tempo obras-primas em termos de narrativa existencial na banda desenhada, arrolem-se os nomes de Howrd Cruse e Fabrice Neaud, por exemplo.
Mas, em relação Tom of Finland, como se viu e como se vê, não é preciso estar com paninhos quentes, uma vez que a sua banda desenhada é, sem discussão e complexidades, pornográfica: não só as relações sexuais são explícitas, e de uma visibilidade extrema (a exacerbação e hipérbole dos corpos musculados, os pénis gargantuescos, a viscosidade dos uniformes acentuada), como o objectivo das histórias é ir directo ao assunto, representar o mais claramente o encontro sexual e, assim, provocar nos leitores o “frenesim do visível”, como Linda Williams chamou à pulsão escópica (i.e., “do olhar”) presente na pornografia. Não há desculpas, as aventuras de Kake servem para projectar todas essas fantasias: o tema da violência ou mesmo da violação, de Kake sobre os outros ou de outros sobre Kake, a mera circunstância de um encontro transformado numa desculpa para uma orgia entre vários homens (o máximo é de 10, no número 23), são apenas exemplos.
Por outro lado, as criações de Tom of Finland são claramente subversivas: são muitas as histórias nas quais as figuras de autoridade (polícia, militares, marinheiros, Mounties do Canadá) participam, para cair ao mesmo nível horizontal das restantes personagens (se não fizerem desde logo parte do mesmo nível social); não se trata somente de uma fetichização dos uniformes, ou melhor, é isso, comportamento que se traduz por uma metonimização destes como instâncias das instituições que representam, podendo-se assim instituir uma relação directa com elas, e não com as pessoas, os indivíduos que estão ali de facto. Esse nível é horizontal por várias ordens de razão: é o mesmo nível social (amantes), é o mesmo nível actancial (actuam de igual para igual), o mesmo nível estético (os corpos misturam-se na figuração e no papel) e, perdoe-se a piada de mau gosto, porque se encontram ao “nível da cama”, o horizonte onde as linhas de facto se tocam. O homoerotismo de Tom of Finland é daquele que as características masculinas são acentuadas até a um máximo quase caricato, expurgando-se todo e qualquer traço que pudesse ser encontrado de feminino: não estamos perto aqui do homossexual representado como num território entre os “papéis masculinos” e “femininos” (de resto, os quais felizmente vão fazendo cada vez menos sentido, apesar da resistência generalizada), muito menos o “travesti” (que, como é visto em The Invisibles, apenas confirma uma percepção sobre o feminino a partir dos filtros da projecção do desejo e fantasia masculinas), mas mergulhando no “ultra-masculino”. Ainda que quase todos os homens sejam representados com feições delicadas, lábios grossos e redondos, belos, é a masculinidade que torna forma robusta. Por um lado, não é mais do que todas as fantasias também presentes, se melhor disfarçadas ou sublimadas numa direcção de espelhismo, nos super-heróis; por outro, e para citar de cor Jean Genet de Nossa Senhora das Flores, “macho que fode macho é macho a dobrar”. O poder masculino, portanto, fica sempre por cima.
Mas como explica a editora (no sentido inglês de editor) deste volume, Dian Hanson, Tom of Finland fez criar um espaço novo para a representação sexual homoerótica, até então nunca visto. Não se trata apenas da fetichização fantasiosa destes corpos imensos e ultra-masculinizados (os quais, na verdade, correspondem a uma evolução interna do estilo do autor, como se pode descobrir através de outros seus trabalhos), mas igualmente da introdução de uma certa ambiência de humor, alegria e liberdade. Todas estas personagens, mesmo naquelas histórias que se iniciam com fantasias violentas – violação, surpresa em ser-se apanhado, na prisão, na cela militar, etc. -, acabam por se beijar, acariciar, abraçar, descansar juntos e, sempre, sorrindo. Uma outra estratégia narrativa, também indicada nos textos periféricos é que a presença de Kake faz com que os homens com que se cruzem rapidamente se tornem tão desejosos de estar com ele como ele com eles, mesmo que haja uma resistência inicial (como se fossem heterossexuais). Nisto também não há diferença nas fantasias, em que nós sempre projectamos a ideia de sermos irresistíveis a quem desejamos possuir. E a existência de um parque onde se lê, à entrada “Men Only” apenas corrobora essa fantasia absolutamente liberta e feliz na expressão da sua sexualidade. Tom of Finland permitiu essa nova atitude, e se bem que não o fez sozinho, contribuiu em larga medida para a expressão sexual desta tribo de “bikers”, “leathers” e “bears” que mesmo os mais homófobos ou incautos conhecem, pelo menos do “Blue Oyster”...
Nota: o scan da imagem da capa é do livro lido, mas as imagens do interior foram retiradas do site da Taschen, uma vez que o livro é demasiado espesso para conseguir um bom scan.
1 de agosto de 2008
The Complete Kake Comics. Tom of Finland (Taschen)
Publicada por Pedro Moura à(s) 12:46 da tarde
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5 comentários:
Excelente análise, parabéns!
parabens.parece ser muito conhecedor deste tipo de BD.continue.
Kake, é um o melhor guadrinho adulto que eu li, pena não te-lo as vendas pelo Brasil.
Kake, é um o melhor guadrinho adulto que eu li, pena não te-lo as vendas pelo Brasil.
que puta de bd de merdaaa
vai cagar pa isso nao presta
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