8 de julho de 2009

A fórmula da felicidade 1. Nuno Duarte e Osvaldo Medina, com Ana Freitas (Kingpin Books)

É curioso escutar-se sempre a expressão ou fórmula “família disfuncional”, para dar conta dos problemas ou crises que atravessam os membros desses agregados. Todavia, desconheço a existência real de famílias “funcionais”, e estou mesmo em crer que a própria unidade “família” serve para a construção e instalação de programas de disfuncionalidade” sobre os seus membros, absolutamente necessários para o desenvolvimentos dos mesmos integrados nesse terrível e inevitável caos que é a própria existência humana.
Dois livros recentemente lidos tratam precisamente dessas criaturas. Um é Bottomless Belly Button, do norte-americano Dash Shaw, o outro A fórmula da felicidade.
Uma vez que este é o primeiro volume de uma dilogia, e acreditamos que o segundo volume trará não só o desenlace daquilo que se já se promete como também apresentará seguramente inflexões e maior intricação, não me demorarei sobre a sua apreciação. Nuno Duarte já se havia ambientado ao mundo da banda desenhada, em primeiro lugar com Paris Morreu e depois com Virgin’s Trip, ambas as vezes com ou por Pepedelrey. Sendo argmentista de um punhado de projectos televisivos, sobretudo ficcionais, e de projectos de animação em curso, não haverá surpresa alguma em notar na sua capacidade de apresentar uma construção equilibrada e com um ritmo clássico e legível. Vitor, um pequeno génio matemático nascido algures num Alentejo rural, atravessa a turbulenta vida que lhe foi proporcionada pela mãe “despassarada”, refugiando-se nos números como escape e modo de entender o mundo. Na verdade, é a mãe quem lhe oferece um símile para o entender, sem se aperceber que com ele despertará uma senda única no seu filho; a história de “origem” que abre o livro é uma trouvaille magnífica. Depois seguem-se os adensamentos típicos da ficção, com um crescente naipe de personagens, relativamente esquemáticas e tipificadas, que nos levam quer a uma rápida cartografia de relações quer à clareza total do seu significado para o molde da personalidade de Vitor. Há um caso ou outro em que os episódios são demasiado curtos, digamos assim (o interesseiro Abraão e a sua proposta emerge e desvai-se em duas vinhetas, mas talvez venham a ser desenvolvidos no próximo volume; a discussão que leva à agressão de Vitor a Cláudia abdica das palavras, colocando responsabilidades na expressividade do corpo e nos eventos que não são totalmente claros e até se revelam estranhos ao que havia sido construído até ao momento), mas no cômputo geral, a estrutura e o ritmo entre a narração supra-diegética de Vitor e o que nos é revelado “em directo” constroem uma trama viva. Um aspecto curioso é a integração de pequenos momentos e pérolas de referências de uma cultura popular que pertencerá a toda uma geração de portugueses, como é raro suceder na ficção nacional, quer a de banda desenhada quer a literária. O papel da televisão, aqui, torna-se factor de adensamento de referências, de uma rede na qual nos instalamos com algum conforto (se correspondermos a essas mesmas referências, claro está). Um apêndice final no livro do matemático Filipe Oliveira explica a origem e desenvolvimento da fórmula matemática que dá nome e centro ao livro, mas suscita-me uma dúvida. Que o recurso a uma boa equação matemática possa suscitar uma empolgante trama narrativa, depois de Good Will Hunting ou de Π/Pi, não há dúvida, mas tratando-se de algo maravilhoso (no sentido literário deste termo) neste livro, será que a sua apresentação frontal é a melhor opção? Claro que o contrário seria empregar mais uma vez a fórmula de um McGuffin, o que seria mais clássico ainda... Todavia, devendo confessar desde já a minha inultrapassável incapacidade em sequer ler o primeiro termo da equação, terei de aguardar por perspectivas mais informadas e sapientes.
Osvaldo Medina parece entregue a um caso sério, ainda que protelado, em termos de produção de banda desenhada. Para além de outras experiências mais ou menos (in)visíveis (tiras de um humor duvidoso, um projecto que não viu a luz do dia), e animações, num curto espaço de tempo Medina entregou-se à produção de uma mão-cheia de livros. A tua carne é má, com Pepedelrey (cuja edição se encontra atrasada, mas prometida, após a sua exposição em Beja), este livro e o seu segundo volume, já em produção, e Mucha, escrito por David Soares, também já anunciado pela Kingpin. A sua capacidade de trabalho é a um só tempo reconhecida e admirada como assegurada pelos seus colaboradores, aqui nas cores, ali nas artes-finais. Assim sendo, não é de somenos notar nas pequenas diferenças estilísticas de projecto para projecto, que tanto têm a ver com a nova aprendizagem desta outra linguagem estática e dinâmica ao mesmo tempo da banda desenhada, como com a flexibilidade e adaptabilidade plástica do autor. As imagens criadas para A fórmula... parecem oscilar entre o estudo ou esboço e uma mais decisiva criação, mas as cores de Ana Freitas permitem um peso e presença das imagens mais conciso. No entanto, essa qualidade de apontamento, de esboço, tem tudo a ver com a trama em construção da vida de Vitor, permanentemente adiada na sua resolução final.
É-me totalmente desconhecido se a opção por utilizar animais neste livro, como se de uma fábula se tratasse, parte do escritor ou do artista. Todavia, não se trata de uma fábula de modo algum, já que estas são verdadeiras personagens, sem quaisquer desejos de serem tomadas como exempla ou modelos de comportamento geral, não exercem qualquer característica relativa ao animal cujos traços fisionómicos mimam, e não constroem (ou assim parece ser) um universo passível de aplicação ampla (o que ocorre nas verdadeiras fábulas, de Esopo a Orwell). Colocamo-nos a questão da mais-valia dessa decisão representacional, para além de um certo virtuosismo. Penso que a resposta não é simples, mas terá a ver com o mesmo princípio que opera sobre as Alices de Carroll: o intuito tem menos a ver com procurar no comportamento animal características dos humanos do que olhar os humanos e brincar com o exercício de identificar o pequeno totem animal pelo qual se pautam. Exercício que seguramente todos fizeram nas escolas (e noutros locais!), vendo uma cegonha na professora de Geografia, uma raposa no de Matemática, um hipopótamo na contínua da entrada.... Esperemos pelo segundo, com avidez.

7 comentários:

CiEL disse...

Gostei de ler a crítica do Pedro Moura à "Fórmula da Felicidade", a qual é, como é apanágio do autor do blogue, incisiva e informada, apesar de, na minha opinião, poder ter algumas letras, e talvez até mesmo palavras, em excesso.

Não posso, no entanto, deixar de manifestar uma profundíssima desilusão ao vir a saber, por este meio e não directamente pelo meu colaborador, que o Osvaldo Medida tem andado a elaborar tiras de "gosto duvidoso", uma vez que estava ciente de que ele desenhava nesse formato apenas para o Tira Tira! e não para qualquer outro projecto.

Ou... esperem... Será possível que eu não tenha entendido a observação e a referência seja ao próprio Tira Tira!? Nããooo!

Não são poucas as pessoas que se referem às tira com o carimbo Tira Tira! como sendo de "mau gosto" - algo que não nos aborrece nem um pouco, dado estarmos conscientes de que balizar a nossa produção criativa por ditames de "moralidade" ou "higiene estética" redundaria numa aborrecida normalização; tirinhas bem-vestidas e bem-comportadas e muito asseadas pululam na imprensa "mainstream", umas com piada outras nem por isso; tiras “atrevidas” que não deixam de se preocupar com aquilo que o público “médio” considera de “bom gosto” também (próximo das letras da música dita “pimba” que são “marotas”, mas, ah, não é a sério, aquilo são só “trocadilhos”). Isto não significa que, a contrario, existe uma linha editorial que aponta para a “provocação” ou para o "mau gosto" gratuito, mas, tão só, que se acredita que há um lugar para o entretenimento “maduro” “para adultos”, na forma de cartoons/tiras, que não esteja estrangulado pelos gostos e critérios – qui sapit “duvidosos” – de editores com as calças agrafadas à cadeira da “moral” “desinfectada” de uma abstracção chamada “massas”, ou dos interesses comerciais dos anunciantes.

Essa não-delimitação do conteúdo do Tira Tira! pelos factores anteriormente referidos de forma sumária, maxime uma “moral” social (que é suposto estar) claramente delimitada (de uma comunidade que, por exemplo, usa e abusa de “f***-se, c***lho!”, na rua e no café, mas que tem medo de escrever tais impropérios na legendagem de um filme), permite, quanto a nós, que uma grande diversidade e riqueza de temas socialmente relevantes, sugerindo reflexões aprofundadas e o questionar de preconceitos por parte dos leitores, sejam abordados nas nossas tiras: das questões sobre identidade cultural e multiculturalidade, à actualidade política ou às tentativas de apresentar objectos sexuais como algo divertido. Em que outro local poderíamos ver a verdadeira face de um Primeiro-Ministro quando se transforma em Hulk ou espreitar a intimidade do malvado Kim Jong-il? E em que outro local as personagens femininas são tão centrais, dominantes e vencedoras, numa notória contestação à falocracia capitalista que nos domina, nos oprime e nos empobrece? É uma pergunta meramente retórica.

Por fim, finalizaria por dizer ter alguma pena que o Pedro Moura, aparentemente, possa não apreciar o conteúdo – tão diverso – do Tira Tira!, pois sempre apontámos para uma audiência informada e, ousarei dizê-lo? – intelectual e intelectualizante, capaz de discernir e descodificar as nossas propostas mais complexas e ousadas.

Apresento os meus desejos de que continue com o bom trabalho que tem vindo a desenvolver.

Com os melhores cumprimentos,
CiEL

CiEL disse...

Que lástima, uma gralha no próprio nome do meu colaborador mais próximo. É Medina, claro.

Pedro Moura disse...

Caro Ciel,
Espero que não te aborreças com o “tu”, mas o nosso círculo é pequeno e poderemos tentar aproximarmo-nos desta maneira.
Em relação, para já, ao facto de eu ser excessivo com as palavras, não o negarei, mas é a única forma como me vejo a conseguir reflectir, para que 1. tente ser claro em dar a ver o que me leva a tomar uma certa posição ou o que me leva a certas considerações, 2. para vos dar, isto é, aos leitores, os instrumentos de desmontar e responder, também criticamente, a essas posições e considerações.
Dito isto, presumo que o tema seja o facto de ter considerado de “gosto duvidoso” as tiras do Tira-Tira. Repara que disse “duvidoso” e não peremptoriamente “mau”. Porque a questão é que me levanta dúvidas e não repulsa imediata. Concordo contigo que a esmagadora das tiras, em Portugal ou noutros locais, as que são publicadas na imprensa ou no mundo editorial mainstream, têm gravatinhas e arreios a mais. Só para que fique claro, abomino o “Gardfield”, o “Dilbert”, a Cathy” e esse tipo de trabalhos, mas deleito-me com as piadas de Max Cannon na sua série “Red Meat” (cujo humor viaja desde a cropofilia até à infidelidade marital... com hamsters), ou até as socialmente repreensíveis rábulas de Mike Judge, o que demonstrará, espero, que o meu gosto aterra muitas vezes em territórios “mal-comportados”. Eu levei algum tempo a explorar o teu site e, muito sinceramente, ri-me com poucas piadas. Não que me façam benzer ou que me choquem, mas porque não me fizeram cócegas no cérebro. As piadas “cocó-xixi” podem funcionar, por vezes, mas nem sempre encontrei esse humor. Gostei, das tuas, da do padre a esconder o miúdo, o da competição do Michelin e do Marlboro. A do Henrique na Coreia parece quase sobre a minha experiência pessoal nesse país (e a carne de cão que comi era mesmo biológica! Foi morto à paulada!) Mas as do Osvaldo são muito batidas e fracas. Era isso que queria dizer. Acompanharei sempre, e à espera de dar gargalhadas mesmo que o meu mini me pc não queria. Aliás, espero mesmo que isso aconteça.
Abraços,
Pedro

CiEL disse...

Caro Pedro,

Agradeço o comentário.

Antes de mais, falhou-me uma ligação lógica no primeiro comentário, quando referia haver muitas pessoas que se referem ao site como sendo de “mau gosto”. A ideia, que se sumiu a meio do texto, era dizer que preferia essa apreciação ao referido “gosto duvidoso”, pois parece que se fica assim sem ter a certeza se é bom ou mau. Gostas? Hmm, não sei bem, tenho dúvidas.

Os comentários que ouvimos são tão díspares e o gosto dos leitores é tão variado, ou, até mesmo, radicalmente oposto, que seria impossível, mesmo que quiséssemos, trabalhar para o leitor “médio”. Até ao momento, é-me completamente impossível visualizar esse leitor.

As tiras que referes já são muito antigas, têm um ano ou mais. Se calhar não viste as mais recentes. A sofisticação do material tem aumentando aproximadamente 8% por mês, segundo um estudo independente.

Coisas como o Red Meat funcionam, em parte, para um público regular que aprecia o estilo, entrou no espírito e está em sintonia com o mesmo. Num registo diverso, vejo os Wulffmorgenthaler, que têm coisas excelentes e outras que são verdadeiros enche-chouriços. No entanto, às vezes parece que o público tende para adorar tudo indiscriminadamente.

O material Tira Tira! é tão diversificado que falha em hipnotizar o público do mesmo modo que essoutros artistas. Isto é, não corroemos as defesas críticas da audiência com um “estilo” que os embala para a apreciação do material. As “personagens recorrentes” ajudam, creio, mas ainda não me concentrei nisso. O Marlboro Man, por exemplo, foi um grande fiasco. 90% das pessoas “não perceberam”.

Bom, o teu texto é sobre “A Fórmula da Felicidade”, e o trabalho do Nuno Duarte, do Osvaldo e da Ana Freitas, de modo que não será justo estar para aqui a ocupar espaço com estes considerandos sobre o Tira Tira!

Mário Freitas disse...

Boas, Pedro

Obrigado pela crítica. Enquanto editor, é sempre satisfatório ver alguém tomar um pouco do seu tempo a analisar um "filho", como soi dizer-se. Depois de ter perdido a esperança de te ver comentar as minhas anteriores edições, nomeadamente o Pig, folgo em registar esta maior atenção sobre a Fórmula e os seus autores. É mais do que merecido.

Um abraço,

Pedro Moura disse...

Olá, Mário.
Obrigado. Creio estares num caminho consolidado para a edição de uma classe de livros de banda desenhada dignos e que poderão chegar a um público alargado. Se realmente não fiz comentários sobre as anteriores edições, foi porque a sua leitura não me havia suscitado notas interessantes... Poderei repensar a minha posição e, numa segunda leitura, tentar encontrar algo a dizer.
Até breve!
Pedro

Mário Freitas disse...

Olá, Pedro

Confeso que "Banda Desenhada digna" faz lembrar algo muito pobrezinho, mas que ainda assim "merece viver", como soi dizer-se. Eu não quero fazer BD digna; quero fazer BD de qualidade, que se distinga pela edição cuidada e, sobretudo e sempre, pela componente de entretenimento narrativo, que é, como quem diz, BD comercial sem quaisquer pruridos em tal. Isto não significará, jamais, que caia na boçalidade comercial, embora, e se queres a minha opinião honesta, esta não seja mais gravosa que a boçalidade experimentalista extrema.

Confesso-te que assumi que não tivesses lido sequer as minhas edições anteriores e acredito que não tenhas lido os 4 Pigs e os 3 CAOS. Sem qualquer juízo ulterior de valor, já te vi analisar outras ediçãoes que não tinham os experimentalismos gráficos que podes encontrar no Pig 2 ou 3.

O Pig 2, por exemplo, joga com a utilização do lettering como forma expressionista da voz das personagens, tornando-se mesmo uma extensão física delas, a ponto da sua desagregação representar a desagregação das próprias personagens. No Pig 3, o estilo gráfico vectorial do GEvan.. (dois pontinhos oblige) permite uma fusão ou incorporação das vinhetas no próprio cenário, utilizando-se situações desde correntes como guias de vinhetas numa prisão, relógios como vinhetas numa cena de pressa imensa do protagonista, ou uma cena de um reunião corporativa em que a forma e ritmo das vinhetas segue a lógica evolutiva de um gráfico empresarial.

Se inventei a pólvora com isto? Certamente que não. Mas são assim tantas as situações em que vemos a linguagem da BD ser usada para além do mero encadeamento narrativo sequencial? Também não me cheira.

Um abraço,